Como um mafioso siciliano foi parar no Dops durante a ditadura militar no Brasil

Leandro Demori
Coleção Disparo
Published in
5 min readDec 15, 2014
Arte ZH sobre foto Revista Manchete / Reprodução

Um ar gelado invade o avião quando o policial abre a porta em pleno voo. Os motores à hélice roncam alto. O barulho é assustador. A mulher desmaiada no chão é reanimada aos berros pelo delegado. Maria Cristina é uma jovem de vinte e poucos anos de estatura média, cabelos louros e encaracolados, bela e de aspecto frágil. O delegado não acredita no desmaio, mas ela sente náuseas insuportáveis — está grávida de quatro meses. Em pé, agarrada mais uma vez pelos cabelos, Maria Cristina é colocada junto à porta aberta da aeronave. Como se fosse um pêndulo, seu corpo é empurrado para fora; os pés estão o tanto quanto podem firmes no chão, a parte de cima do torso fica suspensa no vazio. Ela é balançada e ameaçada de ser jogada em queda livre caso o marido — que assiste a tudo algemado e imóvel — não confesse seus crimes.

Aquele 2 de novembro de 1972 mudaria para sempre a história de Maria Cristina de Almeida Guimarães e de toda sua família. Um ano e meio antes, a jovem paulistana havia se apaixonado por um empresário italiano que conhecera na praia de Copacabana. Alto, bem vestido, com voz de tenor e um carisma raro, Tomas Roberto Felice se tornara o amor de sua vida antes que ela descobrisse seu verdadeiro nome. O investidor estrangeiro era, na verdade, Tommaso Buscetta, mafioso siciliano de primeiro nível da hierarquia da Cosa Nostra.

Tommaso foi iniciado na máfia ainda na adolescência, quando provou seus dotes criminais ao roubar dos nazistas — instalados em um acampamento no centro de Palermo — mantimentos controlados pelos esforços da II Guerra: pão, manteiga, leite, combustível. Foi aceito como soldado da Cosa Nostra após matar um homem. “Não lembro nem mesmo o nome”, revelaria anos mais tarde. Morou no Brasil em três períodos, dos anos 1950 até os 1980, passagens de uma vida que parece escrita por um roteirista policial.

Em 1972, Tommaso caiu nas mãos do DOPS.

Uma diligência comandada pelo delegado Sérgio Fleury flagrou o italiano na praia de Itapema, em Santa Catarina, enquanto tomava banho de sol. O homem que o governo italiano queria atrás das grades desde a explosão de um carro-bomba que matara sete policiais em 1963 era finalmente algemado. Com ele, Maria Cristina e duas crianças.

Os detalhes da prisão foram omitidos pelo DOPS, e o testemunho oficial do prisioneiro ao delegado, se existiu, desapareceu dos arquivos com o fim da ditadura militar — e eu os busquei incessantemente por anos. A história, contada por Tommaso, segue os procedimentos das centenas de torturas descritas por outras vítimas ao longo de décadas. É verossímil.

Ao ser preso, o siciliano não reagiu. Suas filhas menores teriam sido trancadas no bagageiro de uma viatura por cerca de 10 horas antes de serem embarcadas, junto com o casal, em um avião militar de paraquedistas com destino desconhecido aos detidos. Tommaso teria permanecido calado durante quase todo o tempo — falou somente quando a porta da aeronave foi aberta e Maria Cristina ameaçada de ser jogada em queda livre. Declarou apenas chamar-se Tommaso Buscetta, o que teria acalmado o delegado. Suas digitais e fotos de identificação foram tiradas no dia seguinte, 3 de novembro, mas ele só seria fichado em São Paulo no dia 10, uma semana após a prisão, período fantasma no qual garante ter sido torturado pelos agentes brasileiros.

“Fui pendurado no pau-de-arara por horas no sol ardente. Depois me deram choques elétricos nos testículos, no ânus, nos dentes e nas orelhas. Arrancaram as unhas dos meus dedos e me deixaram dias com um capuz na cabeça para que eu perdesse a noção do tempo. Comia o que jogavam no chão da cela, com as mãos. Vivia como um porco”.

A humilhação terminou quando, após um banho, o criminoso foi apresentado para a imprensa. Sem arrancar sua confissão, o DOPS decidiu expôr toda a família de Maria Cristina. Em uma foto que rodou o Brasil e foi destaque nas maiores revistas e jornais da época, o italiano aparece cercado por criminosos franceses (acusados de pertencerem, com Tommaso, a um bando de traficantes de heroína) juntamente com Maria Cristina, seu pai Homero e seu irmão Homero Júnior. Suspeitos tratados como criminosos. Na imagem também está retratada a mãe de Maria Cristina, Nadir Pirondi, uma senhora contra a qual jamais foram encontrados indícios de tráfico de drogas ou qualquer outro crime.

A abertura dos arquivos e as discussões sobre as brutalidades praticadas pelo regime militar são históricas para o país. Neste momento, é importante deixar claro, no entanto, que não há diferença entre bons e maus quando direitos básicos são violados. Heróis e bandidos se tornam apenas vítimas mediante tortura. Homens e mulheres que lutaram por um país diferente nos anos de chumbo conseguiram eliminar do cotidiano — ou quase — a prática do linchamento oficial contra a classe média. Mas nas cadeias, nos camburões e nas favelas, a tortura atravessou a redemocratização e permanece viva. As mortes por autos de resistência e os espancamentos e humilhações são heranças presentes. Parcela imensa da população, acossada pela violência, ainda acredita que o crime precisa ser punido a chutes e pontapés — quando o que nos falta são tecnologia e inteligência policial. Uma sociedade que usa Internet, que manuseia computadores e smartphones, que lida com o que de mais fino a mente humana conseguiu produzir, ainda crê que o crime se combate com a sola de um coturno.

Tommaso foi expulso do Brasil em rito sumário, sem direito à defesa, por um decreto presidencial publicado no Diário Oficial no dia 17 daquele mesmo novembro de 1972. A vida da família de Maria Cristina desmoronaria após a humilhação pública. Homero e Nadir se separaram. Seu irmão, Homero Júnior, seria assassinado pela máfia anos mais tarde. Maria Cristina passaria as décadas seguintes entre presídios, hospitais e tribunais do júri até a morte do marido, em 2000, na cidade de Nova York.

Leandro Demori é jornalista e escritor, autor do livro Cosa Nostra no Brasil, a história do mafioso que derrubou um império.

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