Paraty: centro histórico visto do píer de Ilha das Cobras

Limites do paraíso

Ronaldo Bressane
Coleção Disparo

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Vai à Flip? Roberto Saviano, o mais bravo jornalista do mundo, não vai. Ligue os pontos

1. O prefeito de Paraty, Carlos José Gama Miranda (PT), o Casé, foi alvejado por um tiro na cabeça quando saía da prefeitura, às 19h de terça-feira, 19 de maio, ao lado de seu assistente, que também foi acertado na cabeça. O atirador estava em uma moto e fugiu; como usava o capacete fechado, não pôde ser identificado. Ambos tiveram a sorte de serem atingidos de raspão. De acordo com as pessoas que ouvi durante o mês de maio, o suspeito por tentar ou mandar assassinar a pessoa que representa o supremo poder da cidade — ou o próprio povo, segundo o sistema democrático — seria:
• alguém da família do ex-prefeito, filiado ao PTB (dias antes, Casé teria entregue um dossiê sobre os descalabros da administração de José Carlos Porto Neto ao Ministério Público);
• um vendedor ambulante inconformado por ter sido destratado pela prefeitura;
• alguém de dentro da prefeitura (“alguém” ouviu “alguém” dizer: “ele está saindo”);
• alguém do PT local (“afinal, ali só tem bandido”);
• o vice-prefeito, em manobra junto com a família do ex-prefeito para ascender ao poder;
• o gerente de uma das facções do crime organizado que disputam pontos comerciais na cidade;
• o próprio Casé, em gesto heroico para melhorar seus índices de popularidade junto à população pobre (de alguns populares escutei as expressões “teve o que mereceu” ou “a culpa é dele” ou “bem-feito”).
O prefeito, dono da cachaçaria Paratiana e sócio do melhor restaurante da cidade, tem domicílio fixo e conhecido no bairro do Caborê; contudo, vários populares ouvidos afirmam que ele vive em São José dos Campos. Até 29 de junho, o crime não foi solucionado.

2. Para chegar à paradisíaca praia do Sono ou você pega uma trilha de uma hora ou passa por dentro do condomínio Laranjeiras a bordo de uma Kombi que cheira a peixes; durante o trajeto, as janelas estão trancadas. No condomínio há 150 casas e somente uma família mora ali durante o ano. O condomínio é um dos mais luxuosos do Brasil e conta com lagos belíssimos, marina onde se ancoram cerca de 50 embarcações e carrinhos de golfe para levar seus habitantes pra lá e pra cá. Banqueiros, políticos, fazendeiros, empresários, proprietários de empresas de mídia e artistas são donos, mas usufruem de suas casas — a maioria de arquitetura neoclássica, imponente e ruim — por apenas um mês ao ano. O lugar é “habitado” sobretudo por funcionários, invariavelmente filhos dos caiçaras antigos donos dos lotes onde se construiu Laranjeiras — hoje vivendo apertados numa vila próxima: todos elogiam os “altos” salários faturados no condomínio. É expressamente proibido pisar o pé na grama de Laranjeiras; enquanto esperava pela Kombi que me levaria ao ponto de ônibus para voltar a Paraty, sentei-me no gramado para amarrar meus tênis e fui impedido pelos porteiros, que, após me afirmarem, sorrindo, que a grama da praia é “propriedade particular”, gentilmente me conduziram até um banquinho dentro da guarita.

3. Dois dias depois do atentado ao prefeito, no bairro Mangueira, em uma escaramuça entre funcionários do Comando Vermelho (que domina a Ilha das Cobras) e representantes do Terceiro Comando (responsável pelo vizinho bairro da Mangueira), uma menina de 6 anos foi alvejada por uma bala perdida. Nesses bairros, que juntam 20 mil pessoas (metade da população da cidade), há duas quadras de esportes e cerca de 100 templos evangélicos. Estava prevista para a sexta-feira após o atentado a chegada de um destacamento do Bope, enviado pelo governador Pezão (PMDB); mas isso não ocorreu. A menina foi levada ao único hospital da cidade (o ex-prefeito construiu um outro hospital em uma zona pantanosa, portanto o prédio foi abandonado), e felizmente recuperou-se. (Nenhum jornal noticiou o fato.) Na noite do domingo de carnaval de 2015, uma outra escaramuça entre CV e TC ocorreu em plena Praça da Matriz; um rapaz morreu e 10 pessoas foram feridas. O suspeito do tiroteio só foi preso depois do atentado ao prefeito. Paraty é hoje a terceira cidade mais violenta do Rio de Janeiro, só perdendo para Búzios e o Rio: com as UPPs, as lideranças do tráfico carioca procuraram outras praças.

4. O centro histórico de Paraty é separado dos bairros Ilha das Cobras e Mangueira por um aeroporto onde pequenas aeronaves pousam em finais de semana, feriados e a alta temporada; é usado principalmente pelos proprietários das casas de Laranjeiras. Muitos paratienses detestam o aeroporto e sugerem demoli-lo, porque divide a Paraty próspera da Paraty pobre e populosa. É possível observar nas ruas do centro histórico turistas do Brasil e do mundo consumirem maconha e cocaína quase sempre compradas em Ilha das Cobras ou Mangueira, bairros nos quais, no entanto, a droga favorita é o crack — como de resto em todas as periferias do espoliado litoral brasileiro, bem como na Vila Oratório, onde residem muitos funcionários do condomínio Laranjeiras.

5. Em 1845, quando o tráfico de escravos já era ilegal, 50 mil africanos aportaram na discreta baía de Paraty. A cidade viveu de ouro, café, cana, escravos — hoje sobrevive do turismo. Porém, em 2015, não há perspectiva para a construção de uma mera faculdade de turismo no município, que pleiteia junto à Unesco a chancela de Patrimônio Universal da Humanidade — só não a recebeu ainda pois até este momento não dispõe de saneamento básico, obra que está sendo tocada pelo atual prefeito: por enquanto, o esgoto segue sendo despejado no rio Perequê-Açu e no mar. Esta segunda-feira, Roberto Saviano, um dos melhores jornalistas do mundo, jurado de morte pela Camorra italana por conta de Gomorra, clássico contemporâneo sobre a máfia e o tráfico de drogas, cancelou sua participação na Flip, que ocorreria sábado. Motivo: falta de segurança.

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Ronaldo Bressane
Coleção Disparo

Escritor, jornalista, editor, professor de escrita criativa, tradutor. Leia mais textos meus em http://ronaldobressane.com.