Palermo, Beirute

Leandro Demori
Coleção Disparo
Published in
4 min readSep 26, 2014

--

Em 8 de outubro de 1964, o agente do Departamento Antidrogas dos Estados Unidos Albert Garofalo meteu o pé na porta de uma casa na periferia de Marselha. Dentro estava o químico Joseph Cesari, o mais famoso refinador de heroína da Europa. Nascido em 2 de janeiro de 1915, o ex-navegador e ex-barman que mal sabia ler e escrever era conhecido como Monsieur 98%, em referência à pureza da droga que extraía de um pacote de ópio cru. Havia mais de uma década que um laboratório não era descoberto na capital do crime organizado francês.

A queda do principal químico da época não acabou com o tráfico. O mercado americano demandava cada vez mais, e os gângsteres da América – principais compradores do produto – buscaram saída nos braços seguros dos compadres italianos: a Cosa Nostra importou os refinadores franceses e fez da Sicília um laboratório. A heroína gerou riqueza e violência nunca vistas. Em poucos anos, Palermo tinha pelas ruas tantos cadáveres quanto Beirute em guerra.

Parecem destinadas a biografias como a de Joseph Cesari as histórias sobre meio século de luta contra as drogas. Os Estados Unidos, idealizadores do combate armado, vêm mostrando que a estratégia foi abandonada. Ano após ano, estados americanos liberam o consumo da maconha, o primeiro dos produtos antes proibidos a ser etiquetado em lojas. O maior jornal do país, o The New York Times, é a mais recente fronteira ultrapassada: defendeu em editorial no dia 27 de julho o adeus às armas.

Não só os americanos estão interessados nas possibilidades econômicas e sociais da regulamentação. Acostumado a legislações vanguardistas que destoam da maior parte dos vizinhos, também o Uruguai aprovou, no ano passado, lei que normatiza a venda legal da erva. Mesmo parecidos, os modelos americano e uruguaio são diferentes em questões fundamentais – e vêm em bom momento para serem dissecados e corrigidos.

Nos EUA, cada Estado é livre para legislar sobre o caso. Em alguns deles, é necessário apresentar atestado médico – na Califórnia, a obrigação gerou um mercado de prescrições obtidas em qualquer esquina, seja para aplacar a dor de uma quimioterapia, seja para soterrar a dor da existência. Em outras regiões, como no Colorado, o consumo não precisa de desculpas: entra-se em uma loja, escolhe-se a variedade, paga-se.

O usuário passou a ser consumidor, com direitos e deveres.

Washington, por hora, atua somente na fiscalização, ocupando-se de questões como evitar a venda a menores de 21 anos, como faz com tabaco e álcool.

O Uruguai optou por uma lei nacional, estatizante. Pelas normas, já vigentes no país, cabe apenas aos palácios do poder monopolizar a produção e o comércio – as exceções são o plantio controlado em casa e a autorização para clubes de cultivo, como existem na Espanha, limitados, no caso uruguaio, por número de participantes e quantidade produzida.

O modelo estatal uruguaio segue uma tradição iniciada com o manejo do álcool. Dos anos 1910 até os anos 60, somente o Governo produzia e vendia grapa, rum e cachaça.

O monopólio de Montevidéu sobre um produto agrícola – a maconha é um produto agrícola – pode trazer problemas típicos de mercados fechados. Sem concorrência, a falta de qualidade é o mais evidente deles, mas não o mais danoso. Governos tendem a tomar medidas desastrosas quando pretendem cercear o consumo. Olhando para o futuro, é fácil imaginar que outras drogas serão regulamentadas e vendidas livremente no país, caso o experimento com a cannabis dê certo. Como seria esse futuro, regido por esta mesma lei?

É inevitável olhar para o norte. Nos EUA, há um revival de heroína. O aumento do uso da droga – marginalizada nos anos 1980 – encontra componente político: para diminuir a procura por opioides sintéticos, o governo americano obrigou alterações na fórmula do principal produto farmacêutico disponível, o OxyContin. A mudança pretendia evitar que as drágeas fizessem seu poderoso efeito (até quatro vezes maior do que um analgésico comum) após moídas e fumadas, cheiradas ou injetadas. As boas intenções empurraram os consumidores para o mercado negro, de volta à ausência de qualidade, aos crimes e às prisões. Ninguém parou de dançar quando o Governo desligou a música.

Leandro Demori é jornalista e escritor, autor do livro Cosa Nostra no Brasil, a história do mafioso que derrubou um império.

>>> assine minha Newsletter | Siga-me em TwitterFacebook
Unlisted

--

--