Obra de Ricardo Giuliani

A febre dos bandidos mortos

de Gustavo Machado

Editora Dublinense
3 min readOct 9, 2015

--

O endosso ao que se espera de uma justiça feita pelos próprios meios não é a doença, é a febre. Estamos ficando burros e convictos na nossa burrice.

poucos dias, o instituto Datafolha publicou pesquisa que garante: para 50% da população que vive nas grandes cidades brasileiras, bandido bom é bandido morto. Apesar de referendar o que já se supunha, o anúncio provocou espasmos.

Um prato cheio à divagação. Ideias idiotas costumam procriar com a fertilidade dos coelhos. Sociólogos, antropólogos e outros pesquisadores oficiais que vivem no Planeta Academia teceram suculentas abordagens para fenômenos como “genocídio social”, “derrota do Estado”, “supremacia de uma sociedade sexista e racista”. Eu, como representante das camadas menos diplomadas, penso menor: o endosso ao que se espera de uma justiça feita pelos próprios meios não é a doença, é a febre. Estamos ficando burros e convictos na nossa burrice.

Parece uma boa ideia?

Todo senso comum flerta com o retrocesso; desta moléstia, aí sim, estamos padecendo. Que cada um compre a sua arma, já que o Estado não garante que cheguemos ao final do dia com vida. Parece uma boa ideia? Então, melhor ainda, por que empenhar um dinheirão do erário em todo um aparato que envolve promotores, juízes, defensores públicos se podemos resolver as coisas de forma mais sumária e prática?

Na mesma lógica, também não precisamos de gente cara legislando se vamos ter uma única lei vigente e conhecida por todos: é permitido revidar na mesma moeda. Não havendo juízes nem legisladores, quem precisa de presídios e governos para administrá-los? É fácil. Com uma única ideia, cortamos o que há de pior no Estado, todos os focos de ineficiência e corrupção. E ainda por cima ficamos autorizados por nós mesmos ao cometimento daquela forma tão pura de Justiça, a vendeta.

Em lugar de um caríssimo processo eleitoral que só faz surgirem novos maus representantes, deixemos que surja entre nós um padrinho. Aqueles que costumam prosperar nos buracos negros em que o braço do Estado não alcança. Um homem que nos lave a honra ou que nos permita fazermos por nós mesmos o que cada qual entenda como um razoável acerto de contas. Não nos enganemos, porém: ele dificilmente será glamoroso como o Don Corleone de Mario Puzo e Francis Ford Coppola. Será mais um Idi Amin Dada, um Pablo Escobar ou, ainda mais sem graça, um simples dono de boca-de-fumo.

Querer morto aquele que extingue ou arranha a vida é um reflexo espontâneo que nem ao menos pode ser tolhido. Querer que morra, sim. O desejo de revide é tão natural quanto, eventualmente, justificável. Deitá-lo numa linha de produção industrial com amparo moral, porém, é descer uns quantos degraus na escala civilizatória. Talvez um passo importante seja não dar passo algum, nem que por uns instantes. É parar e pensar: que tipo cotidiano gostaríamos de ter e o que estamos fazendo, além de pagar impostos, para materializá-lo ou afastá-lo cada vez mais. Quando tem muita gente pensando antes de agir, sobra cada vez menos espaço para os bandidos, estejam eles vivos ou mortos.

Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

--

--

Editora Dublinense

A Editora Dublinense é um projeto editorial eternamente em construção. Organizada em três selos: Dublinense, Não Editora e Terceiro Selo.