A leitura como ato de guerra

Gustavo Melo Czekster

Coleção Dublinense
10 min readFeb 9, 2017

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Pergunta que sempre me fazem é como arrumo tempo para ler. Creio que a resposta seja frustrante: eu não sei. Não penso em livros como questão de tempo ou de comprometimento, mas como algo integrado à vida. É uma óbvia questão de espaço — e com frequência me angustia a proporção acelerada com que os livros chegam à minha biblioteca e a rapidez com que as prateleiras antes salvadoras tornam-se abarrotadas — , mas não um sacrifício como muitas pessoas parecem acreditar. Como qualquer coisa na vida, a leitura não precisa consumir largos períodos do cotidiano, mas pode tornar o tempo elástico o suficiente para caber dezenas de livros no seu interior. Alguns dizem que a leitura vence as noções de espaço, de realidade e até mesmo amplia a vida, mas, para mim, ler é algo que dilata o tempo ao invés de desperdiçá-lo.

Com o passar dos anos, alguns procedimentos para deixar mais tempo para a leitura se tornaram inevitáveis, mas por causa de fatores darwinianos e não por minha vontade. Só os fortes sobrevivem. Em torno de 20 anos atrás, constatei o óbvio: não conseguiria ler todos os livros que desejo. Minha vida é curta demais. Para evitar perda de tempo que poderia ser melhor empregado, fiz cortes. Comecei eliminando as leituras de jornais; eles eram mal escritos, as notícias são enfadonhas na sua repetição e, em geral, tinham informações que não me acrescentavam muito. Hoje leio poucos suplementos de jornais, e todos ligados às novidades e análises do mundo cultural, graças aos quais estabeleço metas de espetáculos, filmes, exposições e livros. Para não me tornar um completo alienado do mundo, fiz um pequeno clipping de notícias que abastece meu e-mail com os assuntos que me importam.

Também cortei boa parte dos programas de televisão, pois eram eivados de clichês e de ideias soníferas. O clichê — a repetição ad nauseam da mesma ideia, tornando-a previsível — estava tão disseminado que até mesmo o ângulo da câmera ao explorar os cenários era evidente. Com o aumento progressivo das leituras, boa parte dos filmes do cinema e seriados de televisão também se tornaram previsíveis. Raros são os que conseguem me surpreender, mas uso os filmes e seriados mais para ver as nuances de criação de personagem. Ainda assim, depõe muito contra a cultura atual o quão previsível e datada ela se transformou, a ponto das risadas que damos de um filme agora serem ridículas quando revemos a obra poucos meses depois, demonstrando a vacuidade da ideia original.

É um movimento não cultural, mas da indústria cultural. Quanto mais vezes consumimos algo, mais gastamos. Não se realiza mais um material artístico para ser refletido e perdurar, mas somente para ser vendido várias vezes. É algo que explica a beleza apenas aparente das obras — elas são feitas para durar um pequeno lapso de tempo na nossa atenção, não para indagar questões profundas. Não usam varas curtas para cutucar onças; preferem fotografar os antílopes à distância.

No passado não era assim. A cultura não era parte do entretenimento, mas algo sério. Os artistas não produziam obras para ficarem ricos ou famosos, mas para que elas enganassem o tempo e vencessem os limites da vida do seu autor. A própria leitura era um ato coletivo. Como existiam poucos livros, as pessoas se reuniam em torno de uma pessoa, que lia a obra enquanto todos prestavam atenção. Em geral os atos de leitura aconteciam em igrejas; somente o padre tinha acesso à Bíblia, e a lia em público para as demais pessoas, conduzindo também as suas interpretações do texto sagrado. Aliás, a própria ideia de ter uma Bíblia ou consultá-la era uma heresia, pois somente os padres tinham acesso às palavras de Deus. Foi Santo Agostinho quem escreveu pela primeira vez sobre as benesses da leitura silenciosa, ao comentar sobre os hábitos de São Ambrósio — de quem era tão fã que tentava imitar — que lia para si mesmo mexendo os lábios, mas sem proferir som.

Hoje vivemos no império da leitura silenciosa. Raramente vemos leituras coletivas, a não ser em saraus, onde elas são tão mal realizadas que geram mais desgosto do que alegrias (pois ler em voz alta também é uma arte, infelizmente desprezada pelos poetas e prosadores ao achar que a palavra escrita basta para um texto).

No entanto, existem histórias impressionantes sobre leituras coletivas feitas em ambientes inesperados, como, por exemplo, fábricas. Colocavam alguém para ler um livro enquanto os operários trabalhavam, e isso ajudava a passar o tempo e dava alívio para a rotina estafante. A mais inesperada das leituras coletivas aconteceu provavelmente na fábrica americana H. Upmann. Os operários — enroladores de charuto provenientes de Cuba — escolhiam por votação o livro que lhes seria lido enquanto trabalhavam. Gostavam tanto de “O conde de Montecristo” que decidiram mandar uma carta para Alexandre Dumas, pouco antes da sua morte em 1870, pedindo-lhe autorização para usar o nome do personagem em um charuto. Dumas aceitou, e até hoje o charuto Montecristo é apreciado ao redor do mundo.

Tão disputada era a leitura em voz alta que existiam grupos de leitores que disputavam a primazia entre si, como foi o caso dos joglars (que podem ser chamados de “menestréis”) e dos trovadores na Europa do século XI. Eram pessoas especializadas em leitura, que costumavam aparecer nas casas de nobres e até mesmo nas estalagens e tavernas para oferecer os seus serviços de leitor. A diferença crucial entre esses dois sistemas de leitura em voz alta é que os joglars eram especializados em quadras e versos populares, ou em uma literatura que podemos chamar de entretenimento, enquanto que os trovadores liam (ou faziam, pois alguns deles também eram autores) literatura clássica, em especial os versos latinos de autores como Virgílio e Homero. Uma distinção feita entre ambos é que o joglar era o intérprete de uma obra, ao passo que o trovador podia ser um intérprete ou um autor.

Os joglars eram estimados pela sua capacidade de se vergar ao interesse do público, podendo contar histórias pícaras, divertidas e de costumes, e com uma vantagem em relação aos trovadores — eles faziam leituras musicadas. Alguns deles também se vestiam como palhaços ou faziam acrobacias, ou seja, era uma leitura com muitos detalhes para chamar a atenção do espectador. Existia ainda uma diferença temática: os joglars falavam histórias eróticas, sendo que quase todos possuíam nomes de duplo sentido sexual. Eram entertainers no sentido mais amplo da palavra. Por sua vez, os trovadores, que se ocupavam do estilo clássico de leitura, acompanhados somente de músicas sóbrias, eram mais comedidos e circunspectos. Preferiam continuar fiéis ao texto escrito, sem muitos improvisos ou distrações, considerando a leitura não só como entretenimento, mas também como instrução e elevação de ideais.

Os dois sistemas de leitura em voz alta entraram em colisão. Alguns trovadores contrataram malabaristas para se apresentarem durante as suas leituras; alguns joglars fizeram composições próprias. No entanto, ambos tinham uma função muito importante, que era manter o povo calmo e sob o domínio dos poderosos: usando as leituras, tanto joglars quanto trovadores mostravam as vantagens de estar sob o jugo de quem lhes pagava, ou seja, o nobre, rei ou senhor feudal. Alguns deles inclusive passavam mensagens políticas cifradas entre diferentes reinos, atuando como espiões. Existem registros de joglars que funcionaram como fatores de rebelião de alguns povoados, algo quase impensável hoje, mas que demonstra a importância da leitura no aspecto social, econômico e político.

Talvez por isso a leitura seja a inimiga número um do poder e da tirania, o que explica a queima de livros como um gesto desesperado para impedir o surgimento de leitores. Contudo, nos tempos atuais, a lei do mercado ditou um novo tipo de queima de livros: com o surgimento maciço de obras que visam a arrecadar dinheiro, faltam aquelas que levam além o conceito de arte e despertam mais inquietações do que certezas.

Em um universo repleto de livros, é muito mais fácil esconder obras relevantes — ou evitar que elas venham ao mundo. Isso transforma o ato de ler livros como o exercício da rebeldia por excelência: estamos cercados de atrações que tentam tirar a nossa vontade de ler. Existem televisões, seriados, filmes impregnados de computação gráfica, videogames com altíssimo nível de perfeição, jornais com manchetes sedutoras. Nesse contexto, ler livros — sem abrir mão de outros prazeres — pode ser a única maneira de manter a sanidade em um mundo que tende à dispersão e à falta de foco.

Ainda existem locais de resistência; pontos em que a ignorância dos que gritam alto para impor argumentos não consegue entrar. Um ainda tímido movimento de renovação do prazer da leitura está se espalhando por cidades do mundo. Começou quatro anos atrás, em Seattle, nos Estados Unidos, e se chama “Silent Reading Party”. No bar do Hotel Sorrento, reuniu-se um grupo de pessoas que trazem os seus livros favoritos de casa, sentam-se confortavelmente nas cadeiras e, durante duas horas, em silêncio total, leem as obras. O máximo de barulho permitido são as bebidas sorvidas e o rumor das páginas virando. Ninguém faz comentários, ninguém tece opiniões, ninguém mostra conhecimento — todos se entregam à leitura compartilhada em um espaço público.

Silent Reading Party em Nova Iorque

A justificativa é interessante: mesmo em casa, nem todas as pessoas dispõem de um lugar adequado para ler, o que acaba acontecendo na “Silent Reading Party”. Além disso, existe muita interferência do cotidiano — família, celular, vizinhos, obras, trânsito — que transmite inquietação para um leitor e atrapalha a sua imersão na obra. Sem contar que, como toda boa festa que se preze, sempre existe a possibilidade de conhecer pessoas interessantes irmanadas por um único ponto em comum, no caso, a leitura. Quem nunca se apaixonou pelo livro lido por outra mulher antes de gostar dela que jogue a primeira pedra.

Começou em Seattle, mas já se espalhou para Nova Iorque e para São Francisco, além de ter pulado a América do Norte e também aparecer em Roma, integrada ao movimento do Slow Food (enquanto esperam as comidas, as pessoas entregam-se à leitura dos livros ao invés de conversar entre si). Em Nova Iorque, aconteceu em um bar de Williamsburg, e uma cellista proporcionou acompanhamento sonoro não-invasivo para os leitores, enquanto que o bar entrou com um vinho especial para o momento.

Quanto mais tentam sufocar a leitura, mais ela viceja, e existe subversão nesse ato. Quando deixou de assistir telejornais ou opto por não ler jornais, estou na contramão da sociedade de informação; perco em atualidades, mas ganho em alegrias e redescobertas pessoais. Foi o que aconteceu com Caio Asínio Polião, um dos romanos mais ilustres que existiu e, possivelmente, um dos mais ignorados. Não irei me deter em toda a sua biografia, mas destacarei alguns pontos. Nos seus 61 anos de idade, Caio Asínio estava ao lado de Júlio César quando ele atravessou o Rubicão; em conjunto com Caio Curião, perdeu a sangrenta batalha do Rio Bagradas para o rei da Numíbia, aliado de Pompeu, e fugiu com um grupo de soldados, deixando mais de 8.000 mortos para trás; teve que aguentar o desgosto de descobrir a traição de sua esposa, Quíncia, com Dolabela, o líder da oposição ao seu cargo de tribuno; participou ativamente da guerra na Hispânia; na guerra entre Otaviano e Marco Antônio, primeiro se juntou a Marco Antônio, mas, em seguida, ajudou a costurar a paz entre eles na Paz de Brundísio.

Caio Asínio Polião teve uma vida de muita agitação militar para dedicar os seus últimos dias ao estímulo da leitura. Foi o criador da primeira Biblioteca Pública de Roma, transformando-a em um espaço onde os leitores podiam se agrupar para consultar livros. Tentando deixar o local confortável, encheu-o de obras pilhadas de outros povos ou de artistas locais, transformando a leitura em uma atividade de prazer estético mais do que uma obrigação. Após fundar a biblioteca e decorá-la com muita arte, o guerreiro aposentado transformou-se em um renomado crítico literário e historiador, tendo escrito “História Romana”, que não chegou até os nossos tempos, mas foi livro de cabeceira de muitos escritores da época, inclusive Plutarco.

Na qualidade de estimulador da leitura, Caio Asínio Polião costumava organizar leituras públicas na sua casa, ocasião em que os escritores apresentavam os seus trabalhos enquanto os convivas deliciavam-se com um banquete. Como Horácio era um dos seus melhores amigos, é muito provável que boa parte dos poemas do autor romano foram lidos em primeira mão na casa de Caio Asínio.

A leitura pública mais polêmica na casa do antigo militar foi feita por um Virgílio no ápice do seu ímpeto criativo, que apresentou, em premiére mundial, os trechos iniciais da “Eneida”, colocando o troiano Enéias como fundador mitológico de Roma. Tão esperada era essa leitura que a família de Augusto compareceu em peso para prestigiá-la, e o escritor foi muito elogiado.

Ao final da leitura de Virgílio, Caio Asínio Polião resolveu fazer uma apreciação crítica da “Eneida” — a primeira na História da crítica literária. Não temos o teor exato de todas as palavras que ele falou sobre a obra, somente de uma frase que sobreviveu a mais de 2.050 anos desde que tocou as pedras do seu salão de banquete, em uma Roma que, orgulhosa, era o centro do mundo ocidental: “Enganam-se os que dizem que a leitura é uma brincadeira; na verdade, ler é sempre um ato de guerra”. Isso foi dito por um militar que passou a vida toda envolvido em batalhas, e considerava a leitura como estando no mesmo patamar de intensidade. Uma guerra que nunca cessa: contra o obscurantismo, contra a preguiça de pensar por conta própria, contra o tempo — e contra a nossa inefável mortalidade.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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