Livros e a aura de invisibilidade

A liberdade de pensar é à prova de fogo

Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
8 min readMay 17, 2016

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Na semana passada, o mundo lembrou um dos eventos deploráveis do Terceiro Reich: a “Bücherverbrennung”, ou “queima de livros”, que aconteceu entre os dias 10 de maio e 23 de junho nas ruas, esquinas e praças da Alemanha nazista. Insuflados pelo governo, centenas de cidadãos destruíram livros subversivos, assim considerados aqueles que se afastavam da ideologia nazista ou indignos da pureza da raça alemã. Por todos os lados da Alemanha, fogueiras foram acesas e, dentro delas, obras escritas por Thomas Mann, Freud e outros autores encontraram a morte.

Não foi a primeira vez que livros morreram, assassinados por pessoas invejosas e temerosas da sua capacidade de convencimento. Diria mais: no início de qualquer mudança de poder, os primeiros a serem destruídos são os livros. Eis um paradoxo interessante, ainda mais para um país que lê tão pouco quanto o Brasil. Se livros são considerados como objetos de prazer, e a leitura é uma atividade que (dizem) se liga à diversão e ao ócio, por qual motivo os livros são atacados tão logo uma mudança para pior está prestes a começar? O que existe, em um livro, capaz de deixar os tiranos com tanto medo?

Não só os tiranos, mas qualquer pessoa. Há algum tempo, observo um estranho fenômeno. Quando estou carregando um livro, uma aura de invisibilidade paira sobre mim; as pessoas evitam inclusive me encarar, como se isso atrapalhasse algo importante. Existe uma veneração em torno do objeto “livro”, uma regra não-escrita afirmando que, quem estiver com ele, não pode ser incomodado. É o mesmo princípio, misto de sagrado e pervertido, que faz com que livros sejam tão assustadores, pois ninguém sabe qual espécie de arma pode estar no seu interior. Apesar de imaginarmos que são objetos inertes, e até mesmo como possuidores de uma função estética, eles são seres vivos — a extensão natural do braço e da mente de um homem, na feliz comparação de Borges — e estão à espreita.

O sonho de um livro é mudar o nosso convencimento, e isto assusta: a possibilidade da imitação de vida contida naquelas páginas sair da prisão onde foi confinada e entrar na nossa rotina, modificando-a de forma irreversível. Nunca saberemos qual é o livro capaz de nos atingir em cheio e, assim, caminhamos por bibliotecas e livrarias à procura daquele que nos daria sentido. Algumas pessoas têm tanta sorte que conseguem achá-lo em um lance de sorte, outras passam a vida procurando até que o livro salvador surge, mas a grande maioria dos seres humanos está fadada a nunca encontrá-lo. Nunca terão a satisfação de achar a história perfeita, com o narrador ideal e o personagem imprescindível — a trama que esperaram a vida inteira para ler. Temos esperança, e isso nunca nos deixa desistir. Dessa forma, enquanto não surge a obra certa, vamos nos divertindo com as erradas.

Quando se queima um livro, também se queima a possibilidade dele entrar na mente de alguma pessoa desconhecida e modificá-la. É algo instintivo, mas as pessoas sabem que os livros estão ali como uma provocação aos seus pensamentos já consolidados. Em “A tempestade”, de Shakespeare, quando Caliban propõe a Estéfano que capture Próspero, afirma: “Lembra-te primeiro de te apoderar dos seus livros, pois, sem eles, é um tolo como eu”. Aquilo que não entendemos precisa ser destruído. Sem a sabedoria dos livros, somos todos tolos, enfadonhamente humanos.

Quando as pessoas queimam livros, mostram o medo de que a sua ignorância seja exposta. O livro abre novos caminhos onde antes só existia mata densa, e isso é sempre algo assustador. Revela alternativas e maneiras diferentes de ver a situação. Não é à toa que precisa ser destruído, pois não podemos ficar longe dos grilhões que nós mesmos criamos.

A Alemanha nazista não foi o único lugar que queimou livros. É um crime que existe desde o início da Humanidade; antes mesmo de surgirem os livros, eles já eram queimados. As primeiras queimas de obras aconteceram na Suméria, entre os anos 4.100 a. C. e 3.300 a. C. Babilônia, Assíria, Egito, todos queimaram livros. A biblioteca de Assurbanipal, rei da Babilônia, o primeiro colecionador inveterado de livros da história mundial (um dos textos que ele deixou gravado em pedra foi um elogio à sua capacidade de juntar livros no mesmo lugar), levou quase 200 anos para ser integralmente destruída, por fogo, pelo vento, por ação do homem e pela chuva. A literatura nasceu junto com a sua destruição e, se hoje conhecemos muitos livros, é por que a história dos exemplares queimados e destruídos já se perdeu.

Entre as obras que perdemos, dificilmente alguma machuca mais do que a queima do exemplar da “Ilíada” compilado e com anotações realizadas por Aristóteles em pessoa. Além de tal detalhe, este volume reunia figuras e desenhos feitos pelos maiores pintores da época, sendo um dos primeiros livros ilustrados que existiu. A edição da “Ilíada” foi um presente para Alexandre, o Grande, acompanhando-o nas suas batalhas, e era tão estimada pelo rei que estava protegida dentro de uma caixa coberta de enfeites e de jóias, outrora pertence a Dario, e que fora parte do tesouro deixado para trás pelo rei dos persas.

Mas também podemos colocar na lista de livros destruídos — e cujo conteúdo só nos resta sonhar — os nove livros de poemas de Safo de Lesbos, os cinco livros também de poemas de Corina de Tanagra (uma das mais importantes poetas gregas, vencedora de inúmeros certames, e que conseguiu emplacar uma série de vitórias sobre ninguém menos do que Píndaro), as 113 peças de Sófocles, as 64 tragédias de Eurípides, as obras completas de Agaton de Atenas (que escrevia compulsivamente, e era admirado por Platão e Sócrates), as 29 comédias de Aristófanes, as 101 comédias de Difilo de Sínope, os 500 livros de Crisipo de Solos, a obra completa de Duris de Samos (que, na sua época, era considerado o único escritor capaz de rivalizar com Homero), e muitos outros. Todas estas obras, e muitas outras, acabaram se perdendo em sucessivas fogueiras. A literatura é uma longa história de perdas irreparáveis.

Há evidências de que o próprio Platão queimou livros. Laércio, um dos biógrafos do filósofo, acusou-o de destruir obras de Demócrito, por inveja ou por medo de serem melhores do que as dele. Não só a História é contada pelos vitoriosos, a Literatura também é. Para cada livro que hoje lemos, centenas de outros morreram, desconhecidos. O mesmo Laércio conta que, quando era jovem, Platão queimou todos os poemas de Sócrates por entender que eles eram indignos do seu mestre. Na “República”, os poetas são mentirosos e loucos que devem ser expulsos da Cidade. Não é tão difícil de acreditar que, percebendo que as poesias de Sócrates estavam em contradição com a sua concepção de mundo, o filósofo tenha decidido eliminar este problema queimando os poemas indesejados. Inclusive Platão era um inveterado queimador de obras; suas cartas e escritos normalmente encerravam com a mesma expressão “Uma vez lido isto, queime”.

Na Roma Antiga, ficou famosa a queima de livros efetuada pelo imperador Augusto, possivelmente uma das primeiras feita por motivos políticos. Depois de juntar todos os livros que podia, Augusto separou-os em duas pilhas: em uma delas, estavam os livros que ele considerava edificantes, de moral sólida e ensinamentos essenciais, assim como as obras que continham profecias benéficas para o futuro de Roma; na outra, estavam os livros vulgares, imorais, aqueles que estavam destinados ao elogio do ócio e do prazer, bem como as obras com profecias predizendo a queda de Roma. Augusto mandou queimar a pilha que não estava de acordo com os seus interesses, pois tais obras poderiam condicionar o destino das pessoas.

Não são poucas as pessoas que defendem a destruição realizada por Augusto, dizendo que, se os livros ruins e pessimistas ficassem em contato com o povo romano, este acabaria por se ajustar a eles e se acomodar, e que o Império Romano durou tantos anos graças a esta conduta do Imperador. É um argumento para justificar a queima de livros: a possibilidade deles mostrarem fatos e aspectos humanos que preferíamos não conhecer. É melhor ficar com a verdade ruim que possuímos ao invés de questionar aquilo que nos cerca. A arte — e a literatura em especial — tem o poder de nos afastar do comodismo do pensamento único.

Quanto mais perseguidos os livros, mais refulge a sua capacidade de resistir ao discurso daqueles que pretendem destruí-los. Também na Roma Antiga, ficou famoso o caso ocorrido com o senador Cremúcio Cordo, grande crítico do governo do imperador Tibério e responsável por vários livros satíricos. Tibério mandou queimar a produção literária do senador e, alguns meses depois, as obras continuavam vagando pela cidade. Era impossível acabar com os livros. Foi quando Tácito refletiu sobre a destruição dos livros que desagradavam ao poder:

“Quanto a seus livros, deliberaram os senadores que fossem queimados pelos edis. Entretanto, eles sobreviveram ocultos e passaram de mão em mão. Por isso, é lícito zombar da tolice dos que acreditam, com o poder de que dispõem hoje, ser capazes de sufocar até mesmo a lembrança nas gerações futuras. Ao contrário, sucede que o talento perseguido adquire ainda maior autoridade. E os reis estrangeiros, bem como quanto lhes seguiram o cruel exemplo, só o que conseguiram foi atrair a vergonha para si mesmos e a glória para os perseguidos.”

Tácito pega o caso de Cremúcio para exemplificar como os livros lidam com o poder, e como o verdadeiro poder pertence mesmo é às obras literárias, não aos governos. O historiador observa uma grande verdade: quanto mais se tenta destruir livros, mais se fala a respeito deles e mais as histórias lutam para sobreviver. A tentativa de destruir obras literárias só traz descrédito para os governantes. Foi o que aconteceu na “Bücherverbrennung” dos nazistas e em todas as outras destruições de livros. Ainda que algumas obras tenham morrido mesmo e nunca chegaremos a conhecê-las, as sobreviventes levam adiante a semente dos antepassados mortos. Os livros são todos irmãos entre si, e fazem parte da mesma tradição.

No epílogo de “Metamorfoses”, Ovídio falou que sonhava garantir a sobrevivência da sua obra “do fogo, da espada, da mão divina e do tempo”. Ele tinha noção do valor daquilo que escrevera. Por mais que tentem destruir livros e impedir o trânsito do livre pensamento que uma obra artística propicia, ainda assim eles encontram um jeito de sobreviver. Quando pensamos na queima de livros, não nos entristecemos propriamente pela perda dos livros, pois isso não aconteceu, e sim pelo obscurantismo das pessoas, capazes de pensar que, para uma verdade ser certa, a outra precisa ser eliminada.

É algo que está acontecendo cada vez mais no Brasil e no mundo: a ilusão de que o pensamento divergente pode ser tolhido, ridicularizado, cerceado, esmagado. A única maneira de vencer o diferente é desconstruí-lo com argumentos, não com força bruta, e a queima dos livros na Alemanha mostra isto. Hoje, quando lembramos destes fatos do passado, sentimos uma relativa vergonha por existirem pessoas capazes de pensarem assim — que destruindo livros ou exterminando opiniões alheias, a verdade pode mudar. Não vai acontecer. Assim como Tibério tentando destruir Cremúcio, não interessa o quão intensamente tentamos destruir o pensamento de quem pensa diferente de nós mesmos, isto só reforçará os seus argumentos contrários. A liberdade de pensar é à prova de fogo.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contosO homem despedaçado.

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