A melancolia das obras que jamais conheceremos
Gustavo Melo Czekster
Existe uma relativa melancolia em saber que, não interessa quanta energia tenhamos ou quanto dinheiro venhamos a possuir, muitas coisas jamais veremos, e isso vai desde um por do sol em Madagascar até a sombra de uma estrela cadente cortando a aurora boreal. Cada dia que passa, uma imensidão de sensações e de experiências são jogadas fora. No entanto, se escolhemos ter esta vida ao invés de outra, é por que — nos consolamos em silêncio — as possibilidades poderiam ser piores ou menos confortáveis. É a mesma hipótese de ser assaltado nos tempos atuais: “ufa, que bom que não aconteceu nada mais grave”, como se um assalto não fosse suficientemente grave. Nós nos consolamos com as perdas diárias que sofremos, até o momento em que perdemos tudo de vez. Ficamos até contentes em sermos “somente” assaltados se continuamos vivos. A vida é um constante perder coisas — e uma infindável tentativa de se ajustar ao mundo que nos foi imposto.
A esta altura do campeonato, podemos dizer que, infelizmente, nunca conheceremos as obras do maior artista de todos os tempos. Boa parte da Antiguidade clássica afirmava que existiam artistas e, além deles, existia Apeles de Cós, colocando-o em um patamar inacessível aos demais mortais. Não são poucos os relatos e histórias que chegaram até nós sobre as obras deste pintor, mas nenhum deles foi tão acurado quanto o feito por Plínio o Velho no seu “História Natural”.
Tão importante foi Apeles na sua época de vida que Alexandre o Grande o incluiu na sua comitiva, transformando-lhe no seu artista oficial. Uma das muitas histórias que formam a lenda de Apeles conta que, em certa ocasião, ele participou de um concurso artístico tendo por objeto a representação de cavalos. Ao perceber que os demais artistas estavam manipulando os juízes, Apeles pediu para que um cavalo entrasse no salão onde eram exibidos os quadros. O cavalo passou pelas obras e, ao chegar diante do desenho feito pelo artista, relinchou alegremente ao reconhecer-se — ou ver o semblante de um amigo — nele. O pintor ganhou o concurso graças ao cavalo com noções estéticas.
Além disso, Apeles de Cós granjeou a admiração de pessoas tão diferentes quanto Ovídio, Petrônio e Estrabão. Os relatos sobre a sua obra dão conta que o último quadro sobrevivente, “Afrodite Anadiômene”, morreu em chamas quando Nero e Tigelino incendiaram Roma. Como o quadro estava dentro do palácio de Nero e, em seguida, repousava em meio às chamas que consumiam os subúrbios romanos, é possível incluir Apeles de Cós na longa lista de assassinatos cometidos pelo Imperador. Antes disso, o quadro feito em conjunto pelos pintores Apeles e Protógenes morreu dentro do palácio de Júlio César, também queimado, em um incidente que nunca ficou bem esclarecido, e a circunstância do mesmo pintor ligar dois imperadores romanos por intermédio do fogo diz muito a respeito dele.
Apeles dominava a ingrata arte da linha. Para ele, o traçado de uma linha era o suficiente para conter a obra inteira. Ser capaz de transmitir a intensidade de qualquer coisa por intermédio do desenho de uma linha era uma característica que o destacava de qualquer outro artista. Basta imaginarmos o extraordinário poder de síntese de um pintor que pode fazer um traço com a forma que bem desejar. Dizer o máximo com o mínimo é a maior de todas as artes.
Uma história famosa envolvendo Apeles de Cós aconteceu quando uma tempestade o levou até Alexandria. O bobo da corte, pretextando lhe enganar, convidou-o para uma festa reservada nos aposentos de Ptolomeu, que não gostava de Alexandre o Grande e, na época, governava o Egito. Quando chegou lá, o rei, temido pelos seus ataques repentinos de fúria, exigiu que Apeles lhe contasse quem o convidara para a festa sem autorização. O pintor pegou um carvão apagado dentro da lareira e desenhou, na parede, uma simples linha. Não tinha chegado ao seu fim e o rei já reconhecera o semblante do bobo da corte.
Outra história muito conhecida é o insólito duelo travado entre Apeles e Protógenes, considerado um excelente pintor. Certa feita, Apeles viajou até Rodes para conhecer o homem de quem tanto falavam. Ao chegar ao seu estúdio, não lhe encontrou, mas um cavalete ostentando a tela ainda em branco. Quando a criada perguntou qual era o seu nome para dizer ao amo, Apeles desenhou uma linha no quadro e disse “este”, pedindo-lhe para que mostrasse para Protógenes.
Quando o rodesiano chegou ao seu estúdio, a criada contou o acontecido e, ao olhar a sutileza trêmula da linha, no mesmo momento ele identificou Apeles de Cós, pois nenhum outro seria capaz de traçado tão perfeito. Então, desenhou uma outra linha sobre a outrora feita, dizendo para a criada que, se o homem aparecesse, era para lhe perguntar se era o homem naquele pintura a quem estava procurando. No dia seguinte, ao voltar no estúdio, Apeles recebeu o recado e enrubesceu ao perceber que fora reconhecido. Cortou as linhas com uma cor diferente, sem deixar espaço para um traçado mais fino, e foi embora da cidade. Quando Protógenes viu o desenho, reconheceu a sua derrota e correu até o porto, onde conseguiu encontrar Apeles. Decidiu, ainda, que a tela onde as linhas foram pintadas seriam preservadas para a posteridade, e assim foi, tanto que o quadro tornou-se objeto de especial veneração pelos artistas que o contemplavam. Essa foi a obra que morreu queimada no palácio de Júlio César.
Entre todos os detalhes que Plínio o Velho destaca sobre Apeles de Cós, nenhum é mais significativo do que a sua visão sobre uma obra de arte bem feita. Para Apeles, não seria aquela que melhor expressasse a realidade, mas a obra capaz de possuir a maior graça, um atributo que só poderíamos alcançar através do estudo exaustivo da técnica. Escreve Plínio o Velho:
“Excepcional em sua arte era a graciosidade, em uma época de excelentes pintores. Embora admirasse a arte destes, elogiando muito a todos, dizia que lhes faltava aquela espécie de encanto seu, o que os gregos chamam kháris [graça]; tinham alcançado todo o resto, mas, naquilo apenas, ninguém estava à sua altura. E reclamou para si uma outra glória ao admirar a obra de Protógenes, imensamente laboriosa e excessivamente meticulosa; disse, de fato, que em tudo estava à altura daquele ou aquele era melhor, mas que lhe era superior apenas nisto: sabia quando tirar as mãos do quadro, preceito memorável: é danoso, muitas vezes, o excesso de zelo.”
É um preceito prudente até os dias atuais — tudo em excesso soa artificial, opulento, um tanto ridículo. Quando leio livros em que o autor está visivelmente “enrolando” para aumentar o suspense, sempre recordo da frase pejorativa com que o Imperador da Áustria comenta uma sinfonia de Mozart em “Amadeus”: “And there are simply too many notes, that’s all. Just cut a few and it will be perfect.”. Se a pessoa precisa de muitas notas para dizer o que pretende, algo está errado aí — com exceção, claro, de Mozart, mas nem todos nós somos Mozart.
Se hoje me sinto melancólico por saber que nunca contemplaremos um quadro de Apeles de Cós, cuja obra foi sepultada pela passagem dos anos e pela inveja de homens pequenos, também me causa indizível tristeza pensar nos livros que nunca leremos.
Existem muitos exemplos na literatura. Jamais leremos as obras escritas por Sherlock Holmes, de Conan Doyle, nas quais ele explana o seu espírito dedutivo, com títulos instigantes como “A arte da investigação”, “Sobre as diferenças das cinzas do tabaco”, “Sobre a escrita enigmática” e “A utilidade dos cães no trabalho do detetive”. Nunca leremos o Necronomicon, livro maldito escrito por Abdul Al-Hazred de acordo com H. P. Lovecraft — mas, neste caso, ainda bem, senão acabaríamos com o Universo e despertaríamos os Old Ones. Em compensação, ainda bem que nossos olhos foram poupados das obras listadas por Rabelais em “Gargantua e Pantagruel” na Biblioteca de St. Victor, a “primeira e única biblioteca imaginária da Europa”, conforme colocado no capítulo VII: não sei se o mundo seria um local melhor se pudéssemos ler “Ars honeste petandi in societate” (em uma tradução livre, “A arte honesta de soltar puns em sociedade”), “The practice of iniquity” (“A prática da iniquidade”), “De modo cacandi” (novamente em tradução livre, e com respeito aos meus leitores, “As formas de defecar”) e “Campi clysteriorum per paragraph” (“Como colocar supositórios, por parágrafos”, em tradução livre).
No entanto, a melhor lista de livros que nunca leremos foi providenciada por John Donne, mais conhecido por suas poesias e pela obra “Meditações”. Na semana passada, chegou aos meus olhos (veio por via digital, através de “amigos do alheio literários”, para ficar em um eufemismo) uma cópia de “The courtier’s library, or, Catalogus librorum aulicorum incomparabilium et non vendibilium”, escrito por John Donne. É um livro caríssimo — o exemplar físico custa mais de 100 libras — e as versões digitais não são, digamos, autorizadas.
Nesta obra, escrita entre 1603 e 1611, mas publicada somente em 1650, Donne faz uma lista de 34 obras imaginárias que teriam sido escritas por outros autores. Exercendo ao máximo a sátira, mas ainda assim sendo sutil, o escritor inglês faz resumos de obras que não existem no nosso mundo e que, portanto, jamais leremos. Aproveita, ainda, para cravar facas de ironia por toda a produção literária do período na Inglaterra e nos seus colegas escritores. Entre as obras imaginárias, estão “On shortening the Lord’s prayer”, de Martinho Lutero, “Hercules, or the method of purging Noah’s Ark of excrement”, de John Harington, “The imitator of Moses — the art of preserving clothes beyond forty years”, de Topcliffe, “On the diametrical current through the Center from pole to pole, navigate without a compass”, de André Thevet, “One book on false knights”, por Edward Prinne (“slightly enlarged by Edward Chute”) e “On the privileges of the Parliament”, pretensamente escrito por Richard Tarleton, um famoso palhaço da época. Também possui uma interessante análise de como se poderia retirar a partícula “não” dos Dez Mandamentos.
John Donne era um defensor incansável da leitura e da troca de experiências literárias. Em uma carta incluída no mesmo volume, ele afirma “o conhecimento enterrado em livros perece e torna-se ineficaz se não for constantemente aplicado e refrescado pela companhia ou por algum amigo que permite que ele venha ao exterior de si. Esse processo de troca vivifica o conhecimento. Após o seu recebimento, as cartas dos nossos amigos são colocadas em uma caixa em nosso gabinete, ou em uma prateleira da nossa biblioteca”. Ao criar um catálogo de obras inexistentes, Donne conseguiu fazer a mais vibrante troca de ideias sobre livros que podem existir: aqueles que ainda não existem, mas podem ser criados por qualquer alma de boa vontade e um pouco de empenho.
Nunca veremos as obras de Apeles de Cós, nunca leremos os livros imaginados por John Donne. Podemos sonhar com a perfeição ou o conteúdo delas, e é nisto que reside a única força capaz de dobrar o Tempo: a capacidade de criar, dentro da cabeça, a nossa galeria particular de obras sonhadas ou visitar a biblioteca imaginária com os livros que nunca chegaram a existir. Dessa maneira, preenche-se uma das funções mais interessantes da arte: não se exibir para olhos afoitos, mas permitir, por meio do incoformismo e do sonho, que qualquer pessoa chegue na sua própria experiência artística.
Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.