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A minha Lista de Restos de Leitura de 2016

Gustavo Melo Czekster

12 min readDec 28, 2016

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Por maior que seja a tentação, não acabarei 2016 fazendo uma longa lista de lamentações, chorando por pessoas mortas ou vilipendiando tudo que acontece de errado no país e no mundo. Falta-me competência (e vontade) para tanto, o mundo tem pessoas mais dignas de realizar tais tarefas. Não irei me juntar a este caudaloso rio de lágrimas, de desesperos e de dentes cerrados. É melhor encerrar outro ciclo de translação da Terra parafraseando as palavras finais de Puck em “Sonho de uma noite de verão”, de Shakespeare:

“Se vos causamos enfado por sermos sombras, ousado plano sugiro: é pensar que estivestes a sonhar; foi tudo mera visão no correr dessa sessão. Senhoras e cavalheiros, não vos mostreis zombeteiros; se me quiserdes perdoar, melhor coisa irei vos dar. Puck eu sou, honesto e bravo; se eu puder fugir do agravo da língua má da serpente, vereis que Puck não mente. Liberto, assim, dos apodos, eu digo boa noite a todos.”

Ainda é melhor acabar o ano arrancando um inesperado sorriso ao invés de mais sofrimentos e misérias.

Portanto, irei compartilhar algumas considerações sobre as leituras mais inusitadas feitas no decorrer desse vistoso ano de 2016. Se acaso pudesse colocar nome a esta elencação, escolheria “Os livros que li para contar para vocês”, mas, como toda lista, seria um nome insuficiente, posto que não leio nada para satisfazer ninguém (sem contar que parece muito com o nome de alguma canção de Roberto Carlos). Chamar a lista de “leituras bizarras de 2016” seria igualmente insultuoso, posto que existem alguns autores ótimos nessa lista e, se lembro algo dos livros, é por que eles me tocaram de formas estranhas. Por outro lado, não posso considerar como os “melhores livros de 2016”, uma vez que não foram.

Na falta de um nome adequado, o melhor é a forma mais prosaica possível, como “Lista de Restos de Leitura de 2016”. Toda leitura deixa um resíduo na cabeça do seu leitor e, infelizmente, nem sempre os livros resultam em bons restos: alguns deixam pedaços de histórias, outros o fantasma de uma risada abortada, e outros ainda despertam inquietações que dormiam tranquilas na nossa cabeça até despertarem graças a uma frase incômoda. A leitura nunca é inocente, sempre deixa um rastro.

Aqui está a pequena lista de miscelâneas que grudaram na minha memória em livros lidos em 2016 e que — possivelmente — jamais lerei de novo. Tempus fugit. Restos que passaram a fazer parte do meu muro de leituras, assim como as asas abandonadas de um mosquito se juntam, sem querer, ao cimento de uma construção.

* Como conversar em qualquer situação, com Imogene B. Wolcott:

Por caminhos misteriosos, e que por si só mereciam um texto próprio, chegou às minhas mãos um exemplar de “What to talk about — the clever question”, de Imogene B. Wolcott. O propósito do livro, manifesto já no seu título, é impedir que as conversas acabem por falta de assunto. Então, a autora propõe uma série de questões para os mais diferentes interlocutores, imaginando situações em que a conversa corra o risco de acabar.

No início do livro, a regra de ouro: “Esqueça-se de quem você é e se concentre somente na pessoa com quem está conversando.” Wolcott acredita que as habilidades sociais são aprimoradas através da conversação e, para tanto, o silêncio jamais pode acontecer. O interlocutor deve enfrentar o silêncio como se fosse um inimigo, e preencher todos os lapsos da conversa com mais e mais sons. Na minha opinião, levando-se tal dica às últimas consequências, o resultado seria mais aterrorizante do que o imaginado — uma conversa que nunca termina. Não poderíamos deixar o interlocutor se afastar ou encerrar o assunto, pois seria uma derrota e, assim, teríamos que estar sempre criando mais e mais assuntos.

A parte mais engraçada do livro são justamente as sugestões de perguntas. Por exemplo, quando conversar com um farmacêutico (todas as traduções são minhas): “você vende remédios para as pessoas doentes ficarem bem ou para prevenir eventuais doenças?” ou “o que você faria se um homem entrasse na farmácia para comprar tabletes de uma solução de mercúrio?”. Imagino um farmacêutico sendo submetido a uma série de questões estapafúrdias, precisando atender outras pessoas enquanto alguém ansioso para testar seus dotes sociais não o deixa se afastar. O mesmo pode ser dito quanto às sugestões de perguntas para engenheiros: “Por que aço é usado para reforçar concreto?”. Parece o tipo de conversa casual que uma pessoa pode ter com outra…

Um destaque especial vai para as conversas que não se ligam à profissão dos interlocutores, cuja lista de perguntas é assustadora: “você é feliz?”; “você já amou alguém e, se sim, com qual intensidade?”; “qual é o futuro da Palestina?”; “você prefere viver por muito tempo, mas infeliz, ou viver pouco e ser feliz?”. Perguntas quase impossíveis de serem respondidas e, imaginem, com um interlocutor que nunca vai cansar de perguntar.

O inferno não são os outros, podem ser as perguntas dos outros. Foi o que ficou da leitura de “What to talk about”, de Imogene B. Wolcott. Além da sensação incômoda de que existem pessoas que, sem saber, seguem os preceitos desse livro, e nunca deixam o silêncio em paz.

* Como caminhar no cemitério, com Elias Canetti:

É frustrante descobrir que aquilo que pensávamos ser uma característica particular nossa, na verdade, é algo compartilhado por boa parte da Humanidade, algo tão óbvio que ninguém conversa sobre o assunto. Nesses casos, é possível escutar o estrépito impassível do castelo de cartas das nossas ilusões ao desmoronar.

Precisou Elias Canetti surgir do interior de uma livraria para derrubar minha presunção. No livro “Sobre a morte”, após uma série de aforismos e reflexões sobre assunto tão funesto, um texto curto: “Sobre os sentimentos gerados pela visita a cemitérios”. Nele, o escritor búlgaro fala sobre sermos atraídos pelos cemitérios das cidades que visitamos, e de como eles passam a sensação de estarem nos esperando, não importa o quão pequeno ou distante. No meio do texto, Canetti fala sobre passeios em cemitérios, de como calculamos os anos de vida de cada nome inscrito na lápide e tentamos adivinhar como foi a sua morte, quanto tempo durou o seu casamento, quantos anos de vida cada pessoa partilhou com um eventual filho, como eram as dinâmicas familiares (pessoas enterradas com sogras, irmãos, pais).

Achei que somente eu fazia isso, entrelaçando histórias e pessoas mortas, sempre motivado por lápides indiferentes. No entanto, Elias Canetti confidencia o mesmo vício, a ideia de existir histórias enterradas que continuam se oferecendo aos nossos olhos, repletas de mistérios e inquietudes incapazes de ser sufocadas pela terra.

Consolei-me pensando que talvez eu e Elias Canetti partilhássemos a mesma característica tétrica, o que seria uma ótima companhia. No entanto, conversando sobre esse assunto em uma mesa de bar (também conversamos sobre passeios em cemitérios em mesas de bar), os presentes me disseram que tinham a mesma atitude quando caminhavam em lugares de repouso final. Ainda acharam divertido que eu pensasse ser o único a acalentar tal pensamento.

Hoje sei que todas as pessoas fazem isso quando caminham em um cemitério. Não é um detalhe especial meu. Contudo, cresce minha inconformidade. Vocês podiam ter a decência de me comentar isso antes, e não me deixar passar vergonha na frente de Elias Canetti.

* Da importância de ter um amigo escritor para fazer um panegírico decente, com Emile Zola:

Em “Tagarelice espirituosa — as cartas de Maupassant”, de Brigite Hervot, encontra-se transcrito o panegírico que Emile Zola fez em honra a Guy de Maupassant por ocasião do seu funeral em 07 de julho de 1893. É uma peça poderosa, um discurso que enaltece tanto o amigo perdido quanto saúda seus dotes literários. Transcreverei trechos:

“Amei muito Maupassant porque ele tinha de verdade nosso sangue latino, e porque pertencia à família das grandes honestidades literárias. De fato, não se deve limitar a arte: é preciso aceitar os complicados, os refinados e os obscuros; mas parece-me que esses são apenas o deboche ou, se quiserem, o deleite de um momento, e que devemos sempre voltar aos simples e aos caros, como voltamos ao pão cotidiano que alimenta sem nunca enjoar. A saúde está aí, nesse banho de sol, nessa onda que nos envolve por todos os lados. Talvez a página de Maupassant que admiramos tenha lhe causado um esforço. O que importa se esse cansaço não aparece, se fiamos reconfortados pela naturalidade perfeita, pelo tranquilo vigor que dela transbordam! Saímos dessa página revigorados, com a alegria moral e física que um passeio sob a plena luz do dia nos dá.”

E Zola ainda fornece uma noção do que é ser realmente imortal: não escrever muitas obras, mas fazer cada página como se fosse a mais importante de todas. Uma lição que vale para qualquer obra e para qualquer realização humana.

“Sem dúvida, Maupassant, que em 15 anos publicou quase vinte volumes, podia viver e triplicar esse número e encher só ele uma estante de biblioteca. Mas posso dizer isso? Às vezes, invade-me uma melancolia diante das grandes produções de nossa época. Sim, são longas e conscienciosas tarefas, muitos livros acumulados, um belo exemplo de obstinação pelo trabalho. Entretanto, são também bagagens muito pesadas para a glória, e a memória dos homens não gosta de carregar tal peso. Dessas grandes obras cíclicas nunca restou mais do que algumas páginas. Quem sabe se a imortalidade não é antes uma novela ou trezentas páginas, a fábula ou o conto que os alunos dos séculos futuros transmitirão como o exemplo inatacável a perfeição clássica?”

Escritores fazem os melhores panegíricos. O problema agora é achar o autor ideal para escrever o meu. Ninguém disse que seria uma tarefa fácil.

* Sobre como bagunçar a cabeça de um leitor, com Benedetto Marcello:

Algumas leituras chegam com pretensão de seriedade, mas logo revelam a sua natureza pândega. Bom exemplo é “O teatro à moda”, de Benedetto Marcello, um panfleto publicado em Veneza em 1720 e que continha uma série de descrições sobre as peças teatrais e as óperas, assim como a função desempenhada por cada um dos seus funcionários.

Logo no início do panfleto, uma admoestação: o primeiro capítulo se chama “Do escritor do livro ao seu próprio autor”. Benedetto Marcello divide a autoria em duas pessoas, um sendo o escritor do livro — responsável pela escritura — e o outro seria o seu autor, encarregado das ideias que deram origem aos escritos. Uma pessoa conversa com a outra, repleta de ironia sutil: “Eu só poderia endereçar esse livro a vós; afinal, ele já era de sua propriedade antes mesmo que eu o terminasse.” Ao final do capítulo, uma despedida afetuosa e sarcástica: “Enquanto isso, ó meu amigo fiel, recebei de bom grado este meu presente como algo dado por alguém que sem vós não pode viver, e estejais saudável, se não quiserdes me ver doente. Adeus.”

Porém, o capítulo que mais chamou minha atenção foi destinado ao advogado do teatro:

“O advogado do teatro deixará que o empresário faça os ensaios em sua casa. Fará os contratos dos cantores, dos instrumentistas, dos operários de cena, dos figurantes, do urso e do libretista. Ele também servirá de juiz para decidir quais balés e quais intermezzi devem ser utilizados. Também intervirá para aplacar as brigas entre cantores e empresário por causa de dinheiro. A cada récita, deixará entrar de graça vários amigos para garantir os aplausos etc. etc. etc.”

Como leitores atentos, vocês devem ter percebido o grande mistério desse texto, e não está no final, com o advogado arrumando uma plateia de amigos para aplaudir o espetáculo. Está no “urso” que se insinuou entre os funcionários da peça teatral e exige um contrato somente seu. Esse “urso” não aparece em mais nenhum momento do livro; não tem uma explicação, uma nota de rodapé, uma errata, nada. Simplesmente está ali, e a sua presença traz o imponderável e o impossível para dentro de um manual de regras teatrais.

É difícil não pensar o quão fácil é enlouquecer um leitor, agregando em uma lista um elemento dissonante. É igualmente difícil não pensar no seu oposto: e se todos os livros já escritos no mundo possuem pequenos buracos negros de incompreensão no seu interior, estabelecidos por um autor que esconde um mistério no melhor lugar, diante dos nossos olhos insensíveis ao maravilhoso? E se os “ursos” estiverem espalhados nos livros e obras de arte por aí, e ninguém nunca prestou atenção?

Talvez eu releia toda a minha biblioteca sob essa nova ótica. Tão fácil enlouquecer um leitor, tão fácil.

* Como enxergar a verdadeira lua, com Aldous Huxley:

Quem leu as obras de Aldous Huxley sabe que, a cada dez ou vinte páginas, ele suspende o fluxo da narrativa e se dedica a descrever a lua de forma apaixonada. É algo que lhe fascina, e o sinal do excelente autor é a sua capacidade de escrever o mesmo assunto de tantas formas diferentes que sempre soa como algo novo.

Foi assim que, por um exercício de criação literária, dediquei algum tempo de leitura a contemplar a lua enquanto lia em voz alta a descrição que Huxley lhe fizera. Receio ter perdido a inocência, pois não posso mais olhar tal corpo celeste sem que as imagens do escritor acorram à minha mente. Não consigo mais ver a minha lua, mas a de Huxley:

“A lua é uma pedra; mas é uma pedra altamente numinosa. Ou, para ser mais preciso, ela é uma pedra sobre a qual e pela qual os homens e mulheres têm sentimentos numinosos. Assim, existe um luar suave que pode nos dar uma paz que ultrapassa o entendimento. Há um luar que inspira uma espécie de pavor. Há um luar frio e austero que fala à alma sobre a sua solidão e seu isolamento desesperado, sua insignificância ou sua imundície. Há um luar amoroso propiciando o amor — amor não apenas por um indivíduo, mas por vezes até pelo universo inteiro. Mas a lua brilha na superfície do corpo tanto quanto, através das janelas dos olhos, no interior da mente. Ela afeta a alma diretamente; mas pode afetar também por caminhos obscuros e tortuosos — por meio do sangue.”

A lua mudou. Ainda é a mesma, mas, desde que li as descrições de Huxley, ela não é mais um frio satélite natural que orbita em torno da Terra. Ela é carne e palavras, dor e pulsão. Se existe algo que a arte pode fazer — e nos assusta — é isso: mostrar a verdadeira face dos objetos e coisas que estão ao redor. A arte é o maior enigma do mundo, cristalizado por Jorge Luis Borges em um dos seus contos: “olhei todos os espelhos e nenhum me refletiu de volta”. Afinal, nenhum cego pode se sentir refletido.

Pensando nas obras estranhas que li no decorrer do ano de 2016 e que deixaram marcas, elas são mais numerosas do que posso imaginar, e não cabem nos estreitos limites de uma lista. Mas posso garantir algo para 2017: as estranhezas virão à tona. Quando menos esperarmos (e eu estou incluso em tal lista, pois, como meu primeiro leitor, sou o primeiro a me chocar), a memória irá ressuscitar um conhecimento que estava morto e enterrado, o qual passará a assombrar as nossas leituras na forma imorredoura de um texto. Assim somos nós: ressuscitadores de fantasmas, magos necromantes juntando pedaços de livros mortos com a mesma habilidade de Victor Frankenstein.

De nidhiart.tumblr.com

Assim, feliz 2017 para todos, e o meu desejo: olhem a lua, enlouqueçam lendo, façam perguntas impossíveis, caminhem em cemitérios e, se tudo o mais falhar, tenham sempre à mão um escritor decente para fazer o seu panegírico.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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