Ainda não chegamos em 1808

Por Gustavo Machado

Coleção Dublinense
3 min readDec 11, 2015

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Do balcão da padaria, acompanho pela tela aparafusada sobre a máquina de café o bate-boca que faz do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados um espetáculo encenado por maus atores de uma companhia de arrabalde. Que horror! Parecem uns cangaceiros brigando pela divisão do butim, diz um velho sentado ao meu lado. E tudo isso pra quê? Como se adiantasse trocar de presidente, como se fosse pelo interesse do país que eles estão brigando, ele fala.

Aplico uma dentada no meu sanduíche Farroupilha bem crocante, mastigo, desgrudo farelos do bigode e ensaio um início de conversa com o homem. Ele cheira a alguma coisa que me lembra o antigo perfume Lancaster. Um cheiro bom de velho bem cuidado. Como quase sempre acontece comigo, escuto muito mais do que falo. Com a voz firme, o velho aperta os olhos como se acertasse o foco e me conta ser advogado aposentado. Apresento-me. Apertamos as mãos; sinto vergonha porque a minha tem um pouco de manteiga. Ele não liga, acho.

Enquanto os parlamentares se xingam, suados, lustrosos, o homem diz ter trabalhado em Brasília durante muitos anos, que chegou lá bem antes da redemocratização. Ou melhor, auge da ditadura. Mesmo? Mesmo. Eu não gostava nem dos milicos arrancadores de unha nem dos comunas que só queriam chegar ao poder pra trocar as cores das fardas, diz o homem. E quem era a sua turma, então? Uma turma pequena, uma turma de gente que tinha mania de pensar por si, ele diz, discretamente orgulhoso de si mesmo. E continua. Eu mesmo fui advogado de preso político, tinha muita gente boa vitimada por prisões arbitrárias, explica. Diz ter sido investigado pelo SNI e que sua licença profissional chegou a ser suspensa. Fala-me de bons e maus generais, de moralistas que eram também contumazes sodomitas, da Anistia, da campanha pelas Diretas, da Constituição de 1988. Mastigo e ouço, enquanto, pela televisão, vemos a altercação daqueles homens ensalsichados em camisas e ternos muito pequenos para eles. A definição da imagem é tão boa que tenho impressão de ver até os perdigotos disparados de lado a lado da discussão cada vez mais raivosa.

Uma quinta-feira no Congresso [Agência Câmara]

Com a inclusão digital, as coisas estão mais transparentes, eu comento. Acho que tem uma mudança de cultura acontecendo, complemento. Bobagem, brinca o homem, bebericando um copo de leite gelado: não pode beber café de uma lesão no esôfago que está tratando. Mas os parlamentares eram diferentes, não eram? Ele ri.

O homem me garante: essa gente aí, se xingando pra ver quem rouba melhor, essa gente somos nós. O Congresso Nacional é psicanálise pura, é um espelho, diz. Estamos todos ali, numa perfeita, justa e representativa amostragem. São nossos líderes. Mas já foram melhores, não foram?, eu insisto. Sabe qual foi a única coisa que mudou no Congresso desde o meu tempo? Não sei. Os cortes de cabelo desses homens. O resto é a mesmíssima coisa. Podem chegar lá bem intencionados, mas terminam compactados num processo industrial de egoísmo, de faroeste sem revólver. Sabe de uma coisa, meu rapaz? No fundo ainda nem chegamos a 1808. Somos um amontoado de gente da pior espécie que foi estocada num fim de mundo. Ainda não existimos como nação. Tomara que algum outro navegador chegue aqui e volte a nos comprar com uns apitos e uns espelhos. Pelo menos seria uma chance de começar de novo. Não acha? Não estou certo.

O dono da padaria muda de canal. Diz que está ficando enjoado com aqueles vermes. Deixa um documentário sobre um mercado negro de caríssimos suvenires feitos com mãos de gorilas. Eu e o velho ficamos quietos. Apiedados dos gorilas. Ou dos brasileiros. Ele pede mais um copo de leite gelado. Eu, uma segunda xícara de café. Talvez estejamos, cada um de nós, bolando planos de refundação nacional. Talvez só estejamos cansados.

Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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