Antes mesmo que a chuva chegasse

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
3 min readFeb 26, 2016

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Texto de Gustavo Machado
Fotos de Fernando Kluwe Dias

Primeiro veio aquele vento quente. Depois, um clarão fino cortou ao meio o céu escuro. Pensei num talho ligeiro e fundo de adaga. Mas era longe, tão longe que o som da descarga custou a chegar às orelhas. Um barulho de coisa rompida com violência, de estilhaço voando. Como se alguém rasgasse um lençol do tamanho do meu campo. O cheiro forte de terra me chegou antes da chuva. Nunca gostei daquele vento quente me lambendo as orelhas feito uma mulher velha e bêbada. Enquanto sentia os cabelos da nuca se eriçando, pensei naquele chão seco, quase sem pasto, que logo estaria chupando com sede a água fria que desabava em pingos grossos, pesados.

Vento quente tem cheiro de terra, eu pensei, minhas botas de borracha fazendo croc-croc-croc no barro vermelho, ressecado e duro da trilha. Logo a chuva vai fazer uma lama cor de sangue, pensei e apressei o passo, que não convinha ficar de baixo dum temporal daqueles que chegava se enroscando nuns novelos sujos que espichavam e engordavam, engordavam mais e espichavam de repente.

Quando embarquei na caminhonete num pulo, sem nem raspar as botas, a chuva já tinha me pegado bem no topo da minha careca precoce. Então desabou o céu e a água começou a cair como se a despejassem de baldes gigantes. Fui cortando campo pela trilha bem sulcada por caminhonetes e mais caminhonetes imemoriais. Coisa esquisita a cabeça da gente: bem nessa hora me deu uma vontade tão forte de fumar, a mais forte desde o começo do verão, quando eu tinha parado. Senti um desejo estranho de coçar o peito e as costas pelo lado de dentro. Eu tinha de voltar a fumar em algum momento, e decidi que seria ali, no meio da tormenta. Enfiei os dedos pelo quebra-sol do carona e tirei um maço pela metade. O maço da emergência. Acendi com o isqueiro elétrico velho da caminhonete e traguei com vontade, como se estivesse me alimentando. A Mariana vai me matar quando sentir o cheiro, eu pensei, rindo feito uma criança.

Passei pelo portão grande da casa apertando os olhos pra enxergar pelos vidros embaçados. Tenho de trocar as borrachas, eu pensei, esfregando a palma suja da mão no vidro que já esfriava. Preciso entrar logo, Mariana tem medo de tempestade, era o que vinha na minha cabeça enquanto descia da caminhonete, já abrigado no galpão azul clarinho que ficava uns trinta metros depois da casa.

Os cachorros estavam agitados. Tentei fazer festa, mas eles não queriam. Corriam na chuva em direção à casa, chegavam na metade do caminho, voltavam e repetiam a operação. Acho que tentavam me contar alguma coisa. Tive um mau pressentimento quando um passarinho, assustado com os latidos ou com a chuva, passou raspando pela minha cabeça.

Enfiei minhas tralhas na sacola de campo e estava tirando a espingarda do baú que eu tinha na traseira quando vi, de relance, na quina dos fundos da casa, o bico de uma outra caminhonete. Nunca fui um sujeito afobado. Mas, por algum motivo que nunca vou entender, engatilhei a arma e parti com a certeza de que estava prestes a ver uma coisa muito dura. A coisa mais medonha do mundo. Apertei os lábios sentindo um travo amargo na boca e fui andando, na chuva, em direção à casa. Eu já sabia, de algum modo. Já sabia lá no meio do campo. Já sabia mesmo antes que a chuva chegasse.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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