Anticonselhos para ter estilo

Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
8 min readJan 12, 2017

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Vira e mexe me pedem conselhos para escrever bem, e essa solicitação me arrepia, pois não sei sequer se escrevo, o que dizer então de algo tão subjetivo quanto “escrever bem”? Em geral respondo com uma evasiva, “escrever é como andar de bicicleta, cada um tem o seu jeito, mas todos chegam lá”, o que não serve como iluminação, mas é suficientemente hermético para parecer correto. Quase todo escritor tem uma lista de procedimentos que toma quando está escrevendo, assim como cada artista tem o seu próprio método, desde Fídias, que ia até uma pedreira escolher pessoalmente o material que usaria nas esculturas, até Rodin, pegando a pedra que estava mais disponível, até Michelangelo, mandando as estátuas falarem.

Pedir dicas para escrever bem equivale a dar dicas de como viver de forma adequada: escolher uma religião? Ter um emprego milionário? Casar com a mulher mais linda ou mais inteligente? Algum de nós pode dizer que existe uma fórmula para viver bem? Uma das pessoas mais felizes que conheci era o seu Roger, um pedreiro que passava a semana toda trabalhando pesado para, no domingo, comer churrasco, jogar futebol e tomar uma cerveja gelada. Ele me garantia que era a melhor cerveja do mundo, e tenho certeza de que, dentro do seu universo de conhecimentos e de vida, a felicidade estava realmente dentro daquela garrafa.

Mesmo diante da dificuldade de conceito tão subjetivo, continuam pedindo conselhos, e nessa hora eu gostaria de ter a clareza de um William Faulkner. Perguntado pelo entrevistador da Paris Review sobre o que responderia para alguém que leu seu livro sete vezes e não entendeu nada, o escritor americano respondeu “Leia oito”. A resposta mais simples é a mais correta. Se deseja escrever bem ou viver melhor, que tal escrever mais e viver de forma a se sentir bem? Nada de exercícios milagrosos, dietas incríveis, dicas que destravarão os romances que dormitam no seu interior; só o bom e velho trabalho braçal para chegar a um objetivo, errando e acertando, sempre sem saber se está sendo bem sucedido ou um fracasso ambulante.

Apesar de não acreditar muito em dicas de como escrever bem, eu gosto de lê-las. Conheço vários manuais e listas de regras, tanto que estudei o “Decálogo do perfeito contista” do escritor Horacio Quiroga na minha dissertação de mestrado. Não faz muito tempo, li “Sense of Style”, do Steven Pinker (traduzido no Brasil como “Guia de Escrita”), em que ele analisa justamente as dicas e conselhos de como fazer boa literatura dados por excelentes escritores, concluindo que, acaso analisadas pelo seu aspecto linguístico, elas são falhas e equivocadas.

Em determinado momento do livro, Pinker pergunta-se por qual motivo precisamos de uma lista de dicas de estilo fornecida por alguém que consideramos apto de nos ensinar. Ele sintetiza em três itens o motivo pelo qual precisamos ter estilo em tudo o que fazemos, não só no ato de escrever:

1) O estilo garante que a mensagem correta chegue aos ouvidos do destinatário. Quanto mais clara e precisa for uma pessoa, maiores as condições de obter sucesso no que deseja. Basta pensar em quantas reportagens ou publicidades passam as mensagens erradas por pura inaptidão técnica para apurarmos os riscos de não se ter estilo.

2) O estilo demonstra preocupação e carinho com a compreensão do outro. Quando a pessoa cuida a mensagem antes de dizê-la, burilando-a, aparando arestas, deixando-a eficaz e interessante, o destinatário percebe que foi objeto de um carinho invisível e se sente importante. O estilo traz confiança também para o emissor, que sabe ter feito o seu melhor na hora de tomar uma atitude ou escrever algo.

3) O estilo traz beleza ao mundo, e aqui transcrevo — tradução minha — as palavras de Steven Pinker: “Para um leitor, uma sentença concisa, uma metáfora surpreendente, um aparte espirituoso ou uma formulação elegante estão entre os maiores prazeres da vida”. E qual seria o mal de trazer um pouco de beleza ao mundo?

É importante ter estilo não só nos escritos (e Steven Pinker diz que vivemos em uma sociedade cada vez mais dependente da palavra escrita, desde textos no Facebook até comentários em blogs, desde cadastros em sites de relacionamentos até pedidos de emprego), mas em tudo que fazemos. Saber que podemos manter a compostura e a dignidade, mesmo que todos ao nosso redor estejam distantes disso. Responder deselegância com mais deselegância não deixará o mundo o lugar melhor. No entanto, responder uma agressão com uma atitude nobre ainda é a melhor forma de desarmar alguém.

Ou com ironia. Afinal, quem domina as artimanhas do estilo, também sabe usar a ironia como uma faca aguda a espicaçar a memória alheia. Não falo desta ironia um tanto grosseira que lemos por aí, com piadas e insinuações que se pretendem engraçadas ou cool, mas a ironia de verdade, aquela que não deixa resposta e, ao mesmo tempo, enfurece e faz rir. A ironia é algo que surge quando alguém possui um estilo bem definido, pois, quando se sabe quem é, não precisamos temer o resultado de mil batalhas, e estou citando — ironicamente, claro — Sun Tzu e o “Demolidor”, de Frank Miller.

Em 1814, Jane Austen mandou uma carta para James Stanier Clarke, bibliotecário do Príncipe Regente, pois tinha o objetivo de dedicar “Emma” para o Príncipe e, na época, era necessário pedir autorização. Os dois mantiveram uma breve troca de cartas, em que James Stanier Clarke — extrapolando as suas funções — ousou oferecer tramas para que a escritora inglesa desenvolvesse, inclusive sugerindo personagens, como um sacerdote inglês que deveria ser “descrito comprando a própria mãe, como eu fiz, por que o grande sacerdote da paróquia onde ela morreu não deu a seus restos mortais o devido respeito. (…). Leve seu sacerdote para o mar, como amigo de algum nobre personagem naval numa corte”. Um tom quase professoral dado para alguém de talento muito superior.

A escritora agradeceu a sugestão, e o bibliotecário se alvoroçou imaginando ter capacidade de influir nos desígnios criativos dela, pois respondeu com outra dica de tema:

“O Príncipe Regente acabou de viajar para Londres e, como teve a graça de me indicar como capelão e secretário inglês particular do Príncipe de Cobourg, aqui permaneço com Sua Alteza Serena e um seleto grupo até o casamento. Talvez, quando uma obra sua apareça novamente impressa, a senhora possa escolher dedicar seus livros ao Príncipe Leopoldo: algum romance histórico ilustrativo da augusta Casa de Cobourg seria agora mesmo muito interessante.”

Era demais para a paciência de Jane Austen, e ela respondeu com elegância, mal e mal contendo a mordacidade:

“Você é muito, muito gentil em suas sugestões sobre o tipo de composição que poderia me valorizar no momento, e estou totalmente consciente de que um romance histórico baseado na casa de Saxe-Cobourg poderia valer mais para o propósito de lucro e popularidade do que as cenas da vida doméstica em cidades do interior como as que trato, mas não poderia escrever um tal romance mais que um poema épico. Não poderia sentar-me seriamente para escrever um romance sério por qualquer outro motivo que não fosse o de salvar a minha vida e se fosse indispensável realizá-lo, e nunca relaxar e rir de mim mesma ou de outras pessoas, e tenho a certeza de que seria enforcada antes de terminar o primeiro capítulo. Não, devo manter meu próprio estilo e continuar à minha própria maneira.”

A última frase de Jane Austen revela a verdade definitiva sobre listas que aconselham procedimentos para os outros: cada um tem o seu próprio estilo de vida. Não temos como mudar, somente aperfeiçoar aquilo que já somos. E, nesse sentido, o melhor não é uma lista de procedimentos a tomar ou a observar, mas de atitudes que devem ser evitadas a qualquer custo.

Uma das listas mais interessantes que conheço, e que igualmente serve como lição de vida, foi feita por Carlos Drummond de Andrade na crônica “A um jovem”, presente em “A bolsa e a vida”. Logo no início, dirigindo-se a Alípio, o escritor afirma: “Ontem à noite, ao sair você de nosso apartamento, aonde fora em busca de sabedoria grega e só encontrou um conhaque e um gato por nome Crispim, assentei de reduzir a escrito o que lhe dissera. Aula de ceticismo? Não. Ele se aprende sozinho.”

Em seguida, após dizer que não se sente capaz de dar conselhos, mas somente anticonselhos, ele escreve, sem esquecer o veio poético que brota ao natural de suas palavras, “pouco resta fazer quando não nascemos para os negócios nem para a política nem para o mister guerreiro. Nosso negócio é a contemplação da nuvem.”

Depois de tal preâmbulo, Drummond fornece as regras que, no seu entendimento, formam um escritor ideal:

I — Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar.

II — Ao escrever, não pense que vai arrombar as portas do mistério do mundo. Não arrombará nada. Os melhores escritores conseguem apenas reforçá-lo, e não exija de si tamanha proeza.

III — Se ficar indeciso entre dois adjetivos, jogue fora ambos, e use o substantivo.

IV — Não acredite em originalidade, é claro. Mas não vá acreditar tampouco na banalidade, que é a originalidade de todo mundo.

V — Leia muito e esqueça o mais que puder.

VI — Anote as idéias que lhe vierem na rua, para evitar desenvolvê-las. O acaso é mau conselheiro.

VII — Não fique baboso se lhe disserem que seu novo livro é melhor do que o anterior. Quer dizer que o anterior não era bom.

VIII — Mas se disserem que seu novo livro é pior do que o anterior, pode ser que falem a verdade.

IX — Não responda a ataques de quem não tem categoria literária: seria pregar rabo em nambu. E se o atacante tiver categoria, não ataca, pois tem mais que fazer.

X — Acha que sua infância foi maravilhosa e merece lembrada a todo momento em seus escritos? Seus companheiros de infância aí estão, e têm opinião diversa.

XI — Não cumprimente com humildade o escritor glorioso, nem o escritor obscuro com soberba. Às vezes nenhum deles vale nada, e na dúvida o melhor é ser atencioso para com o próximo, ainda que se trate de um escritor.

XII — O porteiro do seu edifício provavelmente ignora a existência, no imóvel, de um escritor excepcional. Não julgue por isso que todos os assalariados modestos sejam insensíveis à literatura, nem que haja obrigatoriamente escritores excepcionais em todos os andares.

XIII — Não tire cópias de suas cartas, pensando no futuro. O fogo, a umidade e as traças podem inutilizar sua cautela. É mais simples confiar na falta de método desses três críticos literários.

Gosto destas regras pela sua imobilidade. Observando bem os conselhos de Drummond, percebe-se que o melhor é não fazer nada e manter-se estático: a poesia é quem serve ao poeta, e não o contrário. O ser vem antes do fazer. Existe aí uma grande lição sobre estilo e sobre maneiras de se comportar, de agir e até mesmo de escrever, o ponto que une seu Roger, Horacio Quiroga, Steven Pinker, Jane Austen e Carlos Drummond de Andrade: o importante é ser fiel a si mesmo e sempre tentar melhorar nossos atributos. Essa devia ser a nossa regra de ouro, ao invés das dicas milagrosas de outras pessoas que atingiram essa meta.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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