Aqueles que não podem morrer em paz

Gustavo Melo Czekster

Coleção Dublinense
9 min readSep 29, 2016

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Não faz muito tempo, eu disse que a melhor parte de ir para o mundo dos mortos será parar de escrever. Não me interpretem mal, não tenho problemas com a literatura e nem penso em morrer tão cedo, mas imagino a morte como um espaço sem necessidade de escritores, um grande silêncio em que as histórias que ficam se esboroando como ondas nas paredes do meu crânio enfim encontrarão o seu término. Um lugar em que as histórias serão felizes, cada uma do seu jeito, sem mais precisar de um veículo humano e falho a carregá-las por aí como uma bagagem excedente. Pois a minha memória é formada por histórias que vivi, que escrevi, que sonhei e que ainda não tive tempo de escrever, e todas elas ficam se batendo na caixa craniana como carrinhos em um parque de diversão.

É evidente que a vida logo tratou de desmentir meu idílio impregnado de utopia, pois, passeando por uma livraria, acabei me deparando com a prateleira de livros espíritas e várias obras ditadas por escritores diretamente do além. Não vou entrar no mérito da justiça ou não de tal agir dos colegas mortos: eles tiveram seu tempo na Terra, e me parece injusto que estejam estabelecendo uma concorrência predatória do além-túmulo, onde não precisam comer, respirar ou trabalhar, podendo passar o dia a escrever e a burilar o estilo. Isso sem contar que eles podem pedir dicas literárias para outros escritores mortos, o que deixa a competição ainda mais desanimadora. Quando vi a prateleira, logo imaginei uma mesa no outro lado da existência tomada por escritores a redigir furiosamente nas suas máquinas, sendo assessorados por um time de notáveis como Machado de Assis, Olavo Bilac, Guimarães Rosa… E sem ganhar nada, só pelo prazer genuíno de escrever sem dar atenção para críticos ou veleidades do mercado. Se já é difícil escrever no mundo atual (e ter leitores mais ainda), imaginem este tipo de concorrência vinda do além.

Eu não quero continuar escrevendo por toda a Eternidade. Por favor, depois que eu morrer, não me chamem. O que eu tinha para escrever, farei em vida, não pretendo ficar o resto dos Tempos azucrinando a paciência alheia.

Talvez eu faça como Arthur Conan Doyle. Nos seus últimos anos de vida, o criador do detetive Sherlock Holmes fascinou-se pelo espiritismo, em especial depois do falecimento da sua esposa, filhos, netos e até mesmo cunhados. Estava em profunda depressão, e foi o Espiritismo que acabou lhe dando forças. Conan Doyle passou a frequentar sessões espíritas com assiduidade, tornando-se um dos seus maiores defensores. Escreveu livros e textos sobre o assunto.

Arthur Conan Doyle e Harry Houdini

A sua briga com o mágico Harry Houdini, com quem mantinha uma forte amizade, acabou se tornando épica. Houdini não acreditava no Espiritismo, dizendo que os sons, luzes, batidas e eventos estranhos ocorridos nas sessões espíritas eram truques bem elaborados. Conan Doyle discordava e, tentando convencer o amigo, costumava levá-lo a sessões espíritas, mas Houdini aproveitava essa ocasião para tentar expor a religião ainda nascente como uma farsa. A amizade acabou com brigas e reclamações mútuas quando o escritor inglês afirmou que o mágico não fazia truques, mas tinha mediunidade em grau moderado. Ou seja: Houdini era aquilo que combatia, e não queria que os outros soubessem.

No meio de toda essa defesa do Espiritismo e pregações públicas pela sua validade, chegou um momento em que Conan Doyle constatou que também iria morrer. Neste caso, se o Espiritismo fosse uma farsa como diziam, o mercado seria inundado de obras falsas atribuídas a ele, que sequer poderia negar, posto que estava morto e era um defensor ardoroso de tal prática religiosa. Ao mesmo tempo, o escritor pensou em unir o útil ao agradável e usar a própria morte como uma maneira de provar a existência em definitivo do Espiritismo.

Conan Doyle bolou um plano intrincado, ao melhor estilo dos desenvolvidos por Moriarty. Ele chamou três amigos de confiança e deu para eles uma palavra chave que somente ele e os três conheceriam. Após a sua morte, tais pessoas deveriam ir nas sessões espíritas e, se algum espírito se identificasse como Conan Doyle, deveria fornecer a senha. Acaso dissesse a palavra secreta, ali estaria a alma do escritor pronta a contar as suas peripécias no outro lado da vida.

Até hoje não se sabe qual seria a palavra chave. Depois da morte de Conan Doyle, seus amigos andaram por sessões espíritas procurando-o, mas nenhum dos médiuns informou a senha correta. Muitos problemas podem ter ocorrido, desde Conan Doyle estar falando a palavra chave na sessão espírita errada até ele ter esquecido dita palavra, não se sabe o que resta da memória depois que morremos. Conan Doyle tentou enganar a Morte e provar a existência do Espiritismo, mas acabou conseguindo — por via indireta — o silêncio eterno, eis que ninguém lança obras se identificando como o famoso criador do detetive residente no número 221B da Baker Street, pois não foram oficialmente chanceladas pela palavra chave apta a demonstrar a autoria.

Mesma sorte não teve Dante Alighieri. A morte acabou surpreendendo o escritor florentino antes da hora, deixando-o com um grave problema a resolver: a “Divina Comédia” estava concluída, mas ninguém sabia. Dante terminou a sua obra máxima e morreu antes de anunciar tal fato ao mundo, o que deixaria a “Divina Comédia” no rol das grandes obras literárias que nunca foram finalizadas. Isso não era nada justo.

Para um escritor, é terrível a ideia de ser interrompido no meio do ato de escrever uma história. Só consigo imaginar o pavor de Dante Alighieri que, depois de quase 20 anos dedicado à escritura incessante da “Divina Comédia”, depois de arquitetar 100 cantos, milhares de versos hendecassílabos em terceto e elaborar toda uma história que fizesse sentido e tivesse personagens inesquecíveis, é surpreendido pela malária em uma das estradas próximas a Ravena e morre, deixando inconcluso o trabalho para o qual tanto se dedicou.

É Boccaccio quem conta a história de como Dante Alighieri deu um jeito de colocar o ponto final na “Divina Comédia”. À medida que a obra chegava ao final, talvez com medo que algum incidente acontecesse com suas anotações, Dante passou a enviar os cantos encerrados para o seu patrono, Cangrande della Scala. Foi assim que o homem recebeu toda a obra, com exceção dos últimos 13 cantos do “Paraíso”, que Dante morreu antes de enviar.

Imaginou-se que a obra tinha sido definitivamente perdida pela morte prematura do seu autor. Os filhos e discípulos de Dante procuraram os cantos restantes entre os papéis que o florentino deixara para trás, sem achar nada, e ficaram “enraivecidos porque Deus não lhe permitira viver no mundo o bastante para ter a oportunidade de concluir o pouco que faltava de sua obra”.

Dante não podia sossegar enquanto não terminasse a sua obra máxima e resolveu se atribuir o papel de “deus ex-machina” do próprio livro. Em uma noite, Jacopo, terceiro filho de Dante, sonhou que o pai entrava no seu quarto, vestido com uma bata branca e com a pele ostentando uma leve luminescência. Segundo o depoimento dado a Boccaccio, Jacopo perguntou ao pai se ele ainda estava vivo — uma pergunta típica de quem é pego de surpresa no meio da noite — e Dante respondeu, em tom exasperado, que estava sim, na vida verdadeira, não a nossa. Isso lá é pergunta que se faça para um fantasma?

Em seguida, o filho do escritor perguntou se ele conseguira terminar a “Divina Comédia”. Dante sorriu: “sim, eu a terminei”. Levou Jacopo até o seu antigo quarto de dormir, colocou a mão em um ponto da parede e disse “aqui está o que vocês procuram há tanto tempo”. Quando o jovem acordou, chamou seus irmãos e eles quebraram a parede, descobrindo um nicho com os 13 cantos finais do livro envoltos em um pano que começava a mofar. Mais um pouco e a “Divina Comédia” teria sido perdida de vez.

Boccaccio encerra a narrativa com uma frase admoestatória: “Assim, o trabalho de tantos anos de Dante Alighieri foi concluído”. Mesmo morto, o maior escritor italiano não conseguiu descansar sem concluir a sua obra mais importante, e encontrou uma maneira de deixar os Campos Elíseos para vir terminar com a história que outrora começara. O dever maior de Dante não era com a vida ou com a morte, mas com a narrativa, e ele não podia deixá-la incompleta.

Existe algo de vaidade aí: alguém vencer a Morte por um motivo tão egoísta quanto provar a existência do Espiritismo ou concluir um livro. É preocupante imaginarmos que existem pessoas determinadas a não morrerem enquanto não terminarem com as tarefas que deixaram inconclusas, mas também existem pessoas que não se permitem morrer enquanto não virarem lendas.

Esse foi o caso de Simonetta Vespucci, a musa — ou, dependendo do ângulo, maldição — do pintor renascentista Sandro Botticelli. Não vou entrar nas invejáveis credenciais pessoais dela, que foi prima de Américo Vespúcio e amante de Juliano de Médici. O que realmente a transformou em alguém inesquecível foi o fato de que, mesmo tendo só 23 anos quando morreu de tuberculose, o fantasma de Simonetta Vespucci nunca mais parou de atormentar Botticelli.

Antes, um parênteses: aos 16 anos, ela foi escolhida, pelos nobres e artistas da época, como a mulher mais bonita de todo o Renascimento. Transformou-se na musa dos maiores pintores de então: quadros foram feitos usando-a como modelo, assim como esculturas. Juliano de Médici, em um torneio de justa, entrou na arena ostentando um banner com uma imagem de Simonetta como Palas Atena. Ao vencer o torneio, ordenou que a mulher fosse coroada como “A Rainha da Beleza”.

Botticelli a conheceu e, como não podia deixar de ser diante de beleza tão inspiradora, apaixonou-se perdidamente. Nunca concretizou de forma física este amor, pois Simonetta era amante de um Médici, e não era nada prudente envolver-se com tal família. Ainda assim, Botticelli inspirou-se nela para começar uma série imensa de pinturas cujas personagens femininas tinham os traços de Simonetta Vespucci, sempre nos mais variados cenários mitológicos. Basta colocar o olho em uma obra do pintor de Florença e veremos algum traço da mulher a nos contemplar mais de 500 anos atrás.

Contudo, a musa do Renascimento morreu de tuberculose, ainda jovem. Outras mulheres assumiram o posto de mais bela da época, tornando-se seu modelo de beleza, mas não para Botticelli, pois a imagem de Simonetta continuou a lhe perseguir. O pintor passou a ser assombrado pela recordação da outra, que, de tão persistente, ele só conseguia exorcizar fazendo aquilo que melhor sabia: pintando.

Foi assim que as figuras femininas de “A primavera” (1482) e “O nascimento de Vênus” (1483), algumas das obras mais famosas de Botticelli, ostentam efígies de Simonetta Vespucci, a musa persistente. Se hoje conhecemos os traços fisionômicos dela, isso se deve graças à precisão do pintor que, para afastar o fantasma da bela mulher, desenhava-a de forma compulsiva.

Existem críticos que consideram tal insistência uma lenda ou uma limitação técnica do pintor de Florença, mas não se pode olvidar que todas as mulheres que ele retratou possuíam traços que remetem a uma única mulher. Tão grande se tornara a sua obsessão que, ao morrer, Sandro Botticelli pediu para ser enterrado aos pés da tumba de Simonetta Vespucci, na Igreja de Todos os Santos, em Florença. A mulher venceu a morte para que um do maiores artistas do período imprimisse o seu rosto à tinta e névoa em meio aos seus quadros.

Muitas pessoas evitam falar da morte ou possuem verdadeiro terror dela. Desculpem o spoiler, mas, no final da vida, sempre morremos, com exceção daquelas pessoas que conseguem burlar a Morte usando imaginação e criatividade, tudo para não deixar a sua passagem pelo planeta desaparecer em vão. Para não termos que deixar assuntos pendentes para depois da morte, nada mais oportuno do que aproveitarmos bem a vida e todas as suas possibilidades. Portanto, se alguém quer escrever uma “Divina Comédia”, faça de uma vez; se quer ser a musa inesquecível de alguém, lute para chegar a tal status, faça com que a graça seja maior do que a beleza; se alguém quer evitar o mau uso do seu nome e da sua reputação, tomem providências agora. Não deixem para outro dia o que se pode fazer hoje, pois, um dia, será realmente o último, e deixar tarefas, palavras ou sentimentos incompletos é algo abominável.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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