Como se não houvesse chão
Quando me dou conta, estou lá: de volta ao meu sonho recorrente
Por Gustavo Machado
Estou de volta ao meu sonho recorrente. Ou o mais recorrente entre os recorrentes. Aquele que sempre volta de surpresa; retorna em angulações escorregadias de um mesmo roteiro.
Ele vem como costuma vir: disfarçado, insidioso. Começa com um prelúdio qualquer até que me dou conta de onde estou. Estou lá. Caio neste universo já conhecido como uma mosca que, mesmo experiente, quando se dá conta caiu na teia já conhecida. Já caiu muitas vezes e sabe que vai morrer de novo É assim quando volto a estes sonhos asfixiantes: homem-mosca. Viro o prisioneiro reincidente que reencontra companheiros num milésimo regresso ao lado de dentro das grades.
É tão real que nem parece sonho. Mas é. Sei que estou sonhando um desses sonhos ao me perceber subindo e descendo de elevadores sucessivos que não me levam até onde preciso chegar. Desço por um deles do centésimo primeiro andar, atravesso correndo, suado, um longo corredor que me leva até outro. Embarco, escolho aleatoriamente um entre centenas de botões disformes num painel de linóleo que vai do chão de Paviflex ao teto com pé-direito muito alto. As portas abrem e fecham muito depressa e não consigo sair.
Quando finalmente saio, corro a uma única janela que me espera na metade do corredor longo, longo, que vai afinando e afinando. Do lado de fora há um quadrilátero oco.
Vejo que o prédio todo é um mezanino que abraça centenas de andares com uma espécie de fosso no meio. Não é bem um fosso, está mais pra um abismo. Me estico, espicho o corpo para o lado de fora — não me ocorre sentir medo da queda — e não consigo ver o fim. É como se não houvesse chão.
Da minha janela, vejo a janela gêmea que há do outro lado. Então volto ao corredor e me esgueiro pelos seus apertos, dobro à direita — penso num ponteiro perseguindo outro –, mesmo o prédio sendo quadrado, pelo que eu havia visto pela janela, a próxima curva aponta para esquerda. Então começa um labirinto de curvas e voltas nesse corredor apertado, sem janelas nem portas. Ando cada vez mais rápido. Direita, esquerda, direita, direita, direita, esquerda. Agora quase corro. Arfo, temo estar cheirando mal. Nem desistir eu posso por que não há saída e sinto que o caminho de volta também não daria em lugar algum. Então dobro uma última vez e me assalta um sentimento de contramão.
Agora ando num corredor que me garante estar num outro ambiente, inédito ao menos nesta edição do sonho. O chão é acarpetado, limpo; as portas são vermelhas e muito adornadas, com marcos exagerados, rodapés altos e largos, lembram um hotel antigo. Entro numa delas.
Um cheiro bom de perfume discretamente adocicado. Perfume e maquiagem. É um olor quente, convidativo, mastigável. Parece uma suíte presidencial daquelas usadas por antigos oficiais do Partido Comunista Tcheco. Ou russo. Ou albanês. Tudo ali é de uma elegância decadente, algo rústica aqui e ali, mas no todo aconchegante. Eu me jogo de costas num gostoso e gigantesco colchão de molas e fico me balançando de olhos fechados. Se não há ninguém ali, a suíte deve ser minha. Daí ouço barulho, ergo-me e vou andando pé-por-pé até que vejo uma mulher.
Ela está sentada de costas para a porta pela qual entro. Ela está nua, bebe alguma coisa diretamente de uma garrafa. Tem à sua frente um livro que lê em voz alta. Interrompe a leitura quando me aproximo.
“Já é noite?”, ela quer saber, girando de leve o pescoço e se voltando a mim.
Digo que não tenho certeza, explico que a única janela que fui capaz de encontrar é confusa e não deixa ver o céu direito.
“Deve ser noite”, ela comenta, blasé. Então volta a me dar as costas e retoma a leitura.
“Não é só impressão. Aos poucos vamos nos habituando a viver nas mais adversas circunstâncias. Tornamo-nos cada vez mais habilidosos como sobreviventes e já nem esperamos mais uma luz no fim do túnel. Andamos por onde nos permitirem que andemos. Andamos mesmo sob a terra.”
“Mesmo num inverno falho, morno, a noite sempre nos abraça de um jeito que inspira desejo e respeito. Abraça-nos de um jeito que só ela sabe abraçar. Vale a pena esperar por ela”.
Ela interrompe novamente a leitura, mas não me olha. Imagino que tenha os olhos cravados no livro.
“Então? Gostou?”
Não sei o que dizer. Preciso ver a capa do livro. Aproximo-me um pouco mais. Mais. Toco o ombro da mulher, quero espiar o que há diante dos seus olhos. Mas mal nossas peles se experimentam e sou devolvido não ao elevador, mas à minha própria cama. Respiro sonoramente no silêncio entrecortado apenas pelas longínquas buzinas. Quero saber se ainda é noite. Vou até a janela e espicho o corpo pra fora sem medo da queda.
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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.