Como ser um artista — ou uma pessoa — fenomenal

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
9 min readMar 15, 2016

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Se algum dia me perguntassem qual a característica que separa um ótimo artista do fenomenal, eu responderia ser a compaixão. Não importa a técnica, não importa a verossimilhança e aparência de verdade, não importa o aspecto social ou mesmo o componente humano exposto nas vísceras da obra, mas o essencial mesmo em um artista é a compaixão, esta capacidade que uma pessoa possui de entrar na pele da outra e transformar a dor dela na sua.

Um artista fenomenal não precisa perdoar os seus semelhantes ou doutriná-los paternalmente sobre onde eles erraram. Não necessita agir bonito e muito menos ser agradável com o seu público. Ao contrário, ele só precisa mostrar que não estamos sozinhos no meio deste mar insensato de gente que encheu, enche e ainda encherá o planeta. Não interessa o quão profunda e difícil de explicar seja a nossa dor, o quão indevassável seja o nosso abismo interno, não precisamos virar para trás para saber que o artista nos compreende e, com a sua mão invisível pousada sobre o nosso ombro, está nos acompanhando, como se fosse Virgílio a guiar Dante pelo Inferno. Vocês nunca caminharão sozinhos, é o que promete este homem ou mulher que, através da arte, se dispôs a perder tempo andando ao nosso lado, segurando o lampião do bom senso enquanto nos conduz por entre as agruras da condição humana.

A compaixão não é condição essencial somente para os artistas, mas para todos. As melhores pessoas que conhecemos provavelmente não são aquelas que possuem mais dinheiro, bens materiais e inteligência, mas as mais dotadas de compaixão. É indispensável uma grande observação do ser humano para saber que, por mais diferente que ele seja de nós mesmos, ainda assim possui a sua própria dose de verdade, que pode ser articulada das mais diferentes maneiras, algumas inclusive grosseiras, outras diáfanas e sutis. Os artistas fenomenais não são somente os que observam o mundo, mas aqueles que sabem usar esta observação para transformar em obra e, assim, mostrar a sua compaixão pelas características que nos constituem como indivíduos, entre elas, o direito à expressão e ao livre pensamento.

Nos últimos dias, tornou-se um hábito enfadonho — às vezes divertido — receber pregações políticas e econômicas nas minhas caixas de e-mail. Reflexos do tempo em que vivemos. Algumas pessoas cobram posições, e inclusive afirmam que um dos deveres da arte é estar inserida na sociedade do seu tempo para modificá-la. Acho um argumento risível: o dever do artista é modificar a sociedade ATRAVÉS da sua arte, e não fazer proselitismo vulgar. Para o artista, a arte vem antes da sociedade, e não o contrário (apesar dos sociólogos e parte da teoria crítica — lembro aqui de Antonio Candido — dizerem o contrário).

Para mim, é um silogismo básico: sou um ser humano, por conseguinte sou um ser político; assim sendo, todos os meus textos são políticos. Se os outros não possuem capacidade de ver isto, não é problema meu, mas da leitura distorcida que fazem. Uso com frequência duas figuras literárias para responder tais questões, não interessando o seu grau de virulência. A primeira é Sheherazade, de “Mil e Uma Noites”: se ela ficasse o tempo inteiro tentando convencer o sultão a não matá-la, não interessa a justeza dos seus argumentos, teria morrido no primeiro dia. Foi através da arte de contar histórias que ela prorrogou a vida, não por causa da ponderação e da lógica da sua causa. A segunda é Jesus Cristo, e aqui trato o Novo Testamento como texto literário, não religioso, uma das formas mais interessantes de ler tal obra: quando Pilatos pediu para que ele dissesse o que era Verdade, Jesus — mesmo adorando um púlpito para contar parábolas e fazer sermões — preferiu ficar calado. Pois não existe uma Verdade única e, em assim sendo, por sermos pessoas diferentes, cada uma possui a sua noção sobre ela.

Baleia, em desenho do Deus Dará

No entanto, ainda que existam muitas verdades, a compaixão é única. Sempre foi e sempre será. Foi a compaixão pelos seres humanos que fez Anton Tchekhov escrever alguns dos seus contos mais lancinantes, como “Angústia” e “O beijo”; o mesmo sentimento guiou os passos de Fabiano e — como esquecer? — de Baleia pelo Sertão em “Vidas Secas”, do Graciliano Ramos; a compaixão por todos que passam a vida esperando algo indefinido, correndo o risco de perder aquilo que está ao lado, norteia “A Fera na Selva”, do Henry James; o farol que ilumina os poemas de Neruda, de Alfonsina Storni e de Florbela Espanca é a sensação cálida de transmitir para o outro não a possibilidade de redenção, mas o de estar próximo, prestes a amparar o braço do leitor quando ele cambalear, permitindo-lhe que siga em frente com suas virtudes e pecadilhos.

Podemos transferir isto para outras formas de arte: as expressões repletas de sentimentos das esculturas de Antonio Caneva, ou as cores cortantes de Van Gogh, ou a catedral musical laboriosamente erguida por Johann Sebastian Bach (e, no melhor estilo dos acampamentos romanos, derrubada a cada final da composição, para depois ser reerguida de forma diferente) mostram que os artistas fenomenais não buscam só a recompensa estética de concluir uma obra conforme sua visão, mas aquilo que está por trás, a essência de cada ser humano. É por encontrá-la que o único sentimento possível é a compaixão, e neste momento volto a citar este extraordinário personagem esférico a quem deram o nome de Jesus Cristo, e as palavras no suspiro lamentoso que antecedeu seus últimos momentos: “Pai, perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem”. Nenhum de nós sabe direito o que está fazendo, e o artista fenomenal consegue ver os seres desengonçados e perdidos que se escondem por trás da nossa capa de segurança.

Em um ensaio presente no livro “A arte da poesia”, chamado de “O artista sério”, Ezra Pound inicia afirmando que, no passado, a preocupação era saber se as artes podiam ser uma benção ou uma atitude criminosa, e, por sua vez, em 1913, estavam preocupados em saber se as artes deviam ser morais, se deviam ou não conter um ensinamento para e sobre a sociedade em que estão inseridas.

Em um primeiro momento, ele afirma que as artes, tais como a literatura e a poesia, são também uma ciência, cujo assunto é o homem, a Humanidade e o indivíduo: “com as artes, aprendemos que o homem é cheio de caprichos, que um homem difere do outro. Que os homens diferem entre si como as folhas das árvores. Que não se parecem uns aos outros como se fossem botões feitos em uma máquina”. Saber que os homens sentem e pensam diferente é a melhor forma de entender o que acontece no nosso mundo, mas cumpre à arte respeitar o divergente, mas mostrar as consequências do agir desta forma. Dentro da extraordinária compaixão que move um artista fora de série, está o medo sobre o que o outro pode experimentar se persistir naquele caminho.

Em seguida, Ezra Pound diz que o importante é o artista ser verdadeiro consigo mesmo, pois, em tendo compaixão de si, ao entender como funcionam as nuances que o levam a sentir medo ou alegria, será capaz de se solidarizar com o outro. O verdadeiro artista não pensa na sociedade, nos ganhos pessoais ou na fama, mas pensa em como pode se conhecer melhor e, em tal processo, acaba ajudando outras pessoas:

“Quando um artista falseia o seu informe sobre a natureza do homem, sobre sua própria natureza, sobre a natureza de seu ideal de perfeição, sobre a natureza de seu ideal disto, daquilo ou daquiloutro, de deus, se é que deus existe, da força vital, da natureza do bem e do mal, se é que existem o bem e o mal, da força com que ele acredita ou deixa de acreditar nisto, naquilo ou naquiloutro, do grau com que sofre ou se alegra; quando o artista falseia seus informes sobre esses assuntos ou sobre outro qualquer, de modo a poder conformar-se ao gosto de sua época, às exigências de um soberano, às conveniências de um código preconcebido, esse artista está mentindo. Se mente por deliberado propósito de mentir, por descuido, preguiça, covardia ou por qualquer outra espécie de negligência, mesmo assim está mentindo, e deveria ser punido ou desprezado na medida da gravidade de sua ofensa.”

O dever de qualquer pessoa é ser verdadeira consigo mesma e, desta maneira, por conhecer a sua verdade particular, não tem necessidade de sair por aí espalhando seus pensamentos como se fossem a única visão de mundo existente. Muita presunção nossa imaginar que sabemos aquilo que é melhor para o outro se não somos nem ao menos capaz de entendê-lo! A pessoa não precisa sair por aí falando, fazendo desabafos pungentes em redes sociais ou cooptando pessoas para o que ela pensa, pois ela simplesmente SERÁ aquilo que pensa, sem a necessidade de discursar para provar a sua visão de mundo, e os outros que se ajustem às próprias verdades desde que respeitem a minha.

Nos últimos tempos, tenho recordado muito de um pequeno conto de Aleksandr Kuprin (1870–1938), escritor russo quase desconhecido, mas de vida agitada: foi estivador, repórter, sacristão, pescador, artista de teatro, operário e militar. O conto está na “Nova Antologia do Conto Russo”, lançado pela Editora 34, e se chama “O inquérito”.

Nesta curta história, o subtenente Kozlovski — um homem jovem, bem apessoado e de excelentes condições financeiras — recebe a incumbência de julgar um soldado que teria roubado um par de botas do seu companheiro. No curso da investigação, Kozlovski descobre que não existem provas contundentes para condenar o acusado, mas resolve pegar o seu depoimento. Percebe que Baigúzin — o pretenso ladrão — é um tártaro pobre e, pior ainda, possui em torno de 12 anos, passa fome e está vestido de forma precária para atravessar o inverno russo. Existia toda uma diferença social entre ser russo e ser tártaro na época. No decorrer do interrogatório, sente crescer uma identificação com o acusado, pois ambos se encontram no ponto inescapável de possuírem cada qual a sua mãe. É a figura da mãe que estabelece o laço entre os dois, e é um sentimento mútuo tão forte que o outro acaba confessando o crime. Com tal concordância sobre o delito, Kozlovski é obrigado a determinar a sua punição: cem chibatadas.

O subtenente passa a noite acordado, em um misto de vergonha e desespero, imaginando o que o outro estava sentindo ao saber da inevitável dor que lhe aguardava. Pergunta para outros soldados se não existe alguma punição alternativa, e se depara com a indiferença alheia. No dia seguinte, toda a companhia se reúne para assistir a punição de Baigúzin e, entre eles, um soldado especialmente grosseiro, que menciona, com crueldade, que as chibatadas atuais são fracas, que na juventude dele, sim, eram violentas. Envergonhado, Kozlovski escuta a sua sentença impiedosa sobre Baigúzin ser lida em voz alta e, em seguida, ser executada. Ele sente cada chibatada como se fosse em si mesmo; quando chega na décima chibatada, e eram cem, a sua agonia parece nunca terminar. Os dois personagens estão sendo punidos, um por ter dado a ordem, e o outro por sofrer as consequências dela.

Ao chegar na última chibatada, Baigúzin está desmaiado e, quando é carregado para longe do pátio, o soldado que assistia a tudo com prazer reclama que a punição foi muito frágil, que ele teria chicoteado de maneira muito mais cruel. É o estopim para Kozlovski brigar aos gritos com este soldado, ordenando que ele se calasse, e ser removido do pátio aos arrastos pelos seus colegas, que temiam uma briga.

Muitas questões levantam-se desta história, quase todas de maneira sutil, e podemos ler a narrativa de inúmeras formas. No entanto, outra característica muito interessante da arte é a sua capacidade de condensar todos os dramas humanos em uma única cena. Pois o drama de Kozlovski é um microcosmo das nossas questões existenciais: quando nos solidarizamos com o outro, sentimos a mesma dor dele, somos solidários com a sua agonia e partícipes involuntários das suas vitórias. É mais fácil não entrarmos na pele e nos sentimentos das demais pessoas, pois isto nos machuca também. Ter compaixão pelo outro não é desmerecê-lo, mas, ao contrário, é reforçar o nosso estatuto como seres humanos. A mão que agride também acaba se machucando, conforme Kozlovski percebe, no seu duplo papel de ser executor e vítima ao mesmo tempo.

O maior medo que temos é de sentir compaixão pelo outro. Por isso, as pessoas fenomenais — e, entre elas, os artistas — são aquelas que não possuem medo de sentir a dor de outro indivíduo, que são capazes de compreendê-lo e entrar na sua pele, no seu sistema de valores. É um procedimento doloroso, o que explica o fato de, nos dias em que vivemos, existirem pouquíssimas pessoas a quem possamos considerar como fenomenais. Ainda assim, as poucas que existem fazem a Humanidade inteira ser justificada. São os nossos Trinta e Seis Homens Justos, de acordo com a simbologia judaica: as pessoas que carregam a nossa cruz.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contosO homem despedaçado.

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