Como ter um ótimo relacionamento com as críticas

Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
9 min readJan 20, 2017

--

Sou uma pessoa sem receio de críticas. Afinal, a minha autocrítica é tão severa que o mais contundente comentário exterior não faz nem cócegas nas admoestações que já dirijo internamente contra mim. Não raro concordo com as eventuais críticas dirigidas aos meus textos ou condutas, e ainda acrescento novos elementos para validar mais o ponto negativo apontado. Ao contrário do que se pode imaginar, não é um pensamento masoquista ou um desprezo às minhas próprias capacidades, mas uma estratégia de sobrevivência: preciso acreditar que meus textos estão eivados de problemas, pois isso me impede de abaixar a guarda; preciso crer que cada texto não é um produto acabado, mas uma obra em constante formação; preciso confiar que posso melhorar, pois pensar assim impede a acomodação. Assim, cada palavra precisa ser pensada, cada ideia precisa ter o seu alcance milimetricamente delimitado, cada ironia precisa encontrar o exato tom entre ácido e doce. E em nenhum momento posso revelar o cuidadoso andaime do meu pensamento, não posso deixar que os leitores vejam as arestas que escapam por trás do pano; tenho que fazê-los caminhar pela catedral do texto admirando somente os vitrais e a curvatura da abóbada sem que notem o elaborado trabalho que ergueu uma ideia a partir do vazio.

Conheço muitas pessoas que se atordoam com críticas. Pessoas que choram, se prendem em um mutismo orgulhoso, que se desesperam ao não se saberem integralmente amadas. Mesmo respeitando a sua maneira de encarar as críticas, entendo que ninguém pode ter tamanha força sobre a minha pessoa. Sei de antemão que não sou perfeito, e sequer almejo dita perfeição; gosto das minhas incongruências, elas são divertidas, e até mesmo os erros são interessantes.

Escrever é perigoso nos tempos atuais. Uma palavra proferida com distração pode repercutir como a pedra arremessada em um lago e levantar um tsunami. Para quem escreve muito, então, o perigo mora em cada frase. A frequência aumenta a chance de equívoco, assim como permite o surgimento de mais críticas e comentários desabonadores. Nas últimas semanas, as caixas de comentários nos meus textos foram preenchidas por xingões e críticas. Isso sem contar as mensagens deixadas no meu perfil no Facebook e — o auge da vontade de criticar — as críticas que surgiram nos meus painéis de imagens no Pinterest. “Não leia os comentários”, dizem vozes prudentes na internet, mas eu não tenho medo da opinião alheia e ela não me desanima. Se os críticos soubessem o quanto concordo com as vituperações e insultos direcionados aos meus textos perceberiam que estou ao lado deles, e não contra. As críticas sobre as quais vale a pena refletir, eu respondo; as que não passam de impropérios vazios, eu descarto.

O que não me impede de achar boa parte das críticas engraçada. O texto mais “polêmico” que escrevi é simultaneamente o mais inocente: uma resenha sobre o filme “Jane Eyre” (2011). Uma vez a cada dois ou três meses, esse texto é acessado centenas de vezes durante um dia inteiro, e os insultos se acotovelam no meu e-mail. Eu chamo essa ocasião de “Dia Oficial de Odiar o Gustavo”. Boa parte são xingões quase recreativos, direcionados à minha mãe, à minha eventual descendência e sobre a minha sexualidade; outros me atribuem características, chamando-me de “machista”, “misógino”, “niilista”, “misantropo”, “complexado”, “insensível” e por aí segue. Já reli o texto algumas vezes e não entendo o que ele faz para despertar tamanho ódio. A pessoa precisa preencher um cadastro no blog para poder realizar um comentário, e sempre me encanta imaginar o tempo que alguém perdeu para ter a honra de me insultar. Poderiam ter escrito textos inteiros em resposta ao meu, nesse mesmo intervalo levado para arquitetar insultos que me deixassem com vontade de chorar em posição fetal, mas cada um sabe a melhor forma de desperdiçar energia criativa.

Foi por causa desse texto que recebi uma incrível ameaça de morte. Uma leitora, “Anônima”, deixou um comentário no qual, após os insultos de praxe, disse que sonhava com o dia em que eu estivesse dando uma palestra e, em certo momento, ela levantaria e me jogaria um coquetel molotov, vendo-me explodir em chamas. Era a época dos protestos de rua, pouco antes da Copa do Mundo, e o clima instável deu ideias incendiárias para a minha leitora. Ainda assim, achei a ameaça genial e fantasiei como seria o momento em que uma mulher levantasse na plateia, jogando a garrafa cheia de querosene e com um pavio aceso na minha direção, enquanto gritava “Por Jane Eyre!”. Achei uma morte poética.

Malvados

Claro que nem toda crítica precisa acabar com um coquetel molotov. Algumas podem acabar com algo mais mortífero, como um relacionamento amoroso. Foi o que aconteceu com H. G. Wells e Rebecca West. Em 1912, a mulher — que logo se tornaria uma grande escritora feminista — escreveu uma longa crítica no jornal contra “Marriage”, de autoria de Wells, extrapolando os limites da obra literária e inclusive chamando o escritor de “a solteirona dos romancistas”. O mundo literário inteiro divertiu-se com aquele ataque virulento, menos H. G. Wells, que considerou tão interessantes os argumentos expostos na crítica que convidou Rebecca para jantar. Esse jantar evoluiu para uma relação que, entre idas e vindas (Wells era casado e tinha 26 anos a mais), se estendeu por 10 anos, inclusive gerando um filho, Andrew.

É improvável que, nos tempos atuais, algum criticado tenha tanto espírito esportivo a ponto de marcar um encontro com o seu crítico. Apesar desse pensamento binário, as críticas podem ser devastadoras e violentas, mas contém um núcleo de opinião que merece ser debatido. Contudo, nos tempos em que vivemos, as pessoas consideram a crítica como um ataque aos atributos de personalidade, quando, na realidade, elas são um alerta até amistoso sobre os defeitos alheios.

Também não são poucas as críticas que são praticamente convites para duelos, nos quais, se eu aceitar a provocação que me foi dirigida, teremos um embate. São críticos que pretendem atingir o reconhecimento por meio da validação tácita do criticado, que entra na arena com os olhos cheios de sangue, atraindo também atenção para o esquálido argumentador no canto oposto. Não perco tempo aceitando duelos com pessoas que não me despertam medo; sempre procuro cachorros maiores do que eu.

Quanto maior a obra, mais intensa precisa ser a crítica para chamar atenção. No caso de “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, o crítico perfeito surgiu mais de 200 anos depois da morte do autor. Em 1757, o jesuíta Saverio Bettinelli, amigo de Voltaire e de Rousseau, decidiu escrever um livro falando sobre o classicismo como forma de arte e repudiando os valores estéticos da Idade Média. Para atingir esse objetivo, resolveu escrever uma crítica sobre “A Divina Comédia”, mas falando do ponto de vista de Virgílio, o poeta que serviu de guia para o escritor florentino.

O livro se chamou “Cartas virgilianas” ou “Cartas de Virgílio” (tenho somente a tradução para o inglês), em que Virgílio “discute o seu relacionamento” com Dante, atacando de forma violenta “A Divina Comédia”, como percebemos pelos trechos abaixo, narrados por um Virgílio exercendo o seu “direito de resposta”:

Mas versos belíssimos, que de quando em quando encontrava, davam-me um tal prazer que quase os perdoava… oh, que pecado, gritei, que tão belos trechos restem condenados em meio a tanta obscuridade e extravagância! Oh, que imenso esforço foi para nós arrastar-nos por cem cantos e catorze mil versos, por inúmeros círculos e buracos, entre mil abismos e precipícios com Dante, que estremecia a cada temor, dormia a cada trecho e, mal despertava, já começava a me incomodar, a mim, a seu duque e ao condutor, com demandas o mais estranhas possíveis! (…) Mil grotescas disposições e tormentos não dão certamente um grande crédito a tal Inferno, nem à imaginação do poeta. Todos, além disso, mostram-se sempre falantes e loquacíssimos em meio aos tormentos ou à beatitude, e nunca se cansam de nos contar as suas estranhas aventuras, de digladiar dúvidas teológicas ou de pedir notícias de mil toscanos amigos ou inimigos, e sei lá mais o quê… Seria isso um poema, uma obra divina? Poema tecido de prédicas, de diálogos, de perguntas, poema sem ações ou só com ações de quedas, de passagens, de subidas, de idas e de voltas, e que só faz piorar quanto mais se segue adiante? Catorze mil versos de sermões assim, quem poderia lê-los sem desmaiar de cansaço ou de sono? Nada faltou a Dante, senão bom gosto e discernimento na arte. (…) E destes territórios inteiros temos cerca de uma centena, se bem os contei, entre os cinco mil que formam todo o poema. Os versos sozinhos, ademais, ora sentenciosos, ora delicados, ora plangentes, ora magníficos e sem defeito, ousaria dizer que chegam a mil. Portanto, restam treze mil versos defeituosos e ruins.

Esse livro de Saverio Bettinelli teve inesperado sucesso na época em que foi lançado, e foi inclusive elogiado por Rousseau. Não serviu para tirar o mérito de “A Divina Comédia”, mas mostrou que mesmo uma obra literária admirada por todos não estava imune a eventuais discordâncias. Considero meritória uma crítica que, ao invés de partir para a agressão gratuita contra o outro lado, ou desejar a sua morte, escreve um livro inteiro para desancá-lo, usando de muita graça e persuasão.

Nos meus anos de vida, nunca recebi uma crítica que me desanimasse ou me deixasse em pânico. Sempre as considerei mais engraçadas do que danosas. Minha autoestima não é muito elevada, não por causa de críticas alheias, e sim por causa dos meus patamares irreais de exigência. As críticas sempre me pareceram benéficas e amigáveis demais, mesmo quando faziam planos para acabar com a minha vida.

Nunca passei por uma sensação como a experimentada por Flannery O´Connor. Em 1961, um professor de inglês mandou uma carta para a escritora americana, afirmando que, durante um ano, seus noventa alunos e mais três professores tinham lido e esmiuçado o conto “É difícil encontrar um homem bom” em busca de um sentido único, que esclarecesse toda a história. Era uma carta polida e cuidadosa, em que o professor explicou todas as discussões surgidas em sala de aula, elencando hipóteses de interpretação para a história, com o intuito de esclarecer uma dúvida aparentemente singela: em qual momento o conto deixava de ser real e se tornava um devaneio do narrador?

A intenção do professor era conseguir uma explicação definitiva vindo da pessoa responsável pelo conto, ou seja, a sua autora. A resposta de Flannery O’Connor foi dura, apesar de educada;

Prezado professor:
A interpretação dos seus noventa alunos e três professores é fantástica, e está muito longe das minhas intenções. Se a interpretação fosse válida, o conto seria pouco mais que uma brincadeira, e só teria interesse para a psicologia da anormalidade. Eu não estou interessada na psicologia da anormalidade.

Flannery O’Connor

Após uma breve digressão sobre o sentido dos personagens, em especial o Desajustado e a avó de Bailey, a escritora arremata a carta criticando a maneira com que seus leitores tentavam entender a história:

O significado de uma história deve crescer na medida em que o leitor reflete sobre ele, mas não pode ser captado em uma única interpretação. Se os professores costumam tratar uma história como se fosse um caso de investigação para o qual qualquer resposta é crível desde que seja aceitável, acho que os alunos nunca vão aprender a gostar de ficção. Muita interpretação certamente é pior que pouca, e não há teoria que supra a falta de sensibilidade.
Não pretendo ser antipática. É que estou em estado de choque.
Flannery O’Connor.

Não existe nada que irrite mais um escritor do que ser obrigado a explicar a sua própria história e fechá-la em uma única camada de entendimento, impedindo o surgimento de outras interpretações. Flannery O’Connor ficou chocada ao perceber que os leitores tentavam chegar a uma moral da história unívoca, quando a riqueza dela era ser o oposto. Foi uma das poucas ocasiões em que um escritor saiu da posição de vidraça, virando pedra para agredir os seus leitores.

Se existe algo inevitável na vida, é ser criticado. Respiramos, logo seremos criticados. O que fazemos com as opiniões desabonadoras é a verdadeira questão. Podemos nos encolher de medo imaginando que, a qualquer momento, alguém nos jogará um coquetel molotov; podemos convidar quem nos critica para jantar e entender melhor o seu ponto de vista; também existe a viabilidade de pegar a crítica e disfarçá-la, colocando uma obra literária ao seu redor, ou podemos inverter a gangorra e criticar aqueles que se imaginam além de qualquer ataque. O importante é respeitar as críticas, tentar aprender o que despertou a fúria do outro e, se for o caso, se as ofensas forem vazias, descartá-las sem perdão. Assim como nem sempre estamos certos, os críticos igualmente podem estar errados, e, no final do dia, “os cães ladram, mas a caravana passa”.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

--

--

Editora Dublinense
Coleção Dublinense

A Editora Dublinense é um projeto editorial eternamente em construção. Organizada em três selos: Dublinense, Não Editora e Terceiro Selo.