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Dias azuis, dias de verdade

Por Gustavo Machado

Editora Dublinense
4 min readJan 22, 2016

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Por aqueles dias eu lecionava desenho de paisagens urbanas ao ar livre. Ministrava aulas de até quatro horas, com intervalos de quinze minutos. Acomodava-me com doze alunos em algum parque, praça ou recuo de calçada em que pudéssemos ver a mistura de gente, fachadas, equipamentos públicos, veículos e vegetação. Enquanto eles trabalhavam, eu fazia palavras-cruzadas ou cochilava, recostado sob a sombra de alguma árvore gorda.

No currículo não escrito que me fora imposto pelo delegado do Ministério da Educação e Cidadania, um homem com as narinas estreitas de uma cobra de desenho animado, eu deveria garantir que meus jovens artistas em formação registrassem, em seus blocões, as conquistas que os cidadãos vinham acumulando nos vinte e tantos da administração municipal.

Vivíamos numa cidade feita para todos, em um lugar onde ninguém era simplesmente qualquer um e onde qualquer um tinha voz e vez. A vida era cada vez melhor, mais limpa, pulsante. Os abismos sociais haviam desaparecido, dando lugar a um ciclo de prosperidade hegemônica. Não havia mendigos convivendo com carros de luxo porque não havia nem mendigos nem carros de luxo. Nem sujeira.

Pelas grandes avenidas, e mesmo nas ruas mais estreitas dos bairros, convivíamos com os inspetores de cidadania, garotos e garotas voluntários, e uniformizados, que passavam os dias orientando os cidadãos sobre noções de boa conduta coletiva: não falar alto, evitar os meios de transporte individuais, evitar objetos ou trajes que denotassem ostentação ou desdém, evitar o apelo estrangeiro ao consumo irresponsável de supérfluos. Eram muito eficientes, proferiam palestras-relâmpago e quase nunca usavam a força física. Que cidade!

Tínhamos bondes elétricos, ciclovias, energia solar, centenas de pontos de internet gratuita que permitia acesso a todos os sites oficiais. As favelas haviam dado lugar a sólidos conjuntos habitacionais compostos por torres de trinta e cinco andares com cem apartamentos em cada um; elas cercavam as divisas físicas da cidade, a área antes chamada de periferia, dando uma ideia de segurança, como se fossem, mais que cerca, uma quilométrica muralha.

Nessas minhas aulas, os alunos deviam registrar, em seus croquis, os motivos pelos quais nossa cidade havia inspirado as demais capitais da República e até das colônias, que nos tinham como paradigma arquitetônico e urbanístico. Tinham de expressar, subjetivamente, o quanto nossas relações humanas haviam se desenvolvido, como éramos soberanos e felizes pela confirmação de nossas livres escolhas políticas.

Claro que meus alunos não registravam nem dez por cento desse portento. Porque não conseguiam reproduzir, uns; porque não conseguiam enxergar nem sentir nada disso, outros. Porque cada um dos doze via uma cidade diferente, o que é muito natural. E porque tinham um medo terrível de ver a cidade errada. Então eu mesmo, artista visual renomado, tinha de completar as lacunas e melhorar as suas obras. Eles não gostavam muito disso, mas preferiam a adulteração consentida à reprovação acadêmica que lhes interromperia a carreira e, pior, faria com que retrocedessem pelo menos um degrau na escala dos subsídios estatais que recebiam.

Depois da minha edição, o material recebia um empolgado texto de curadoria. Mais que descrição técnica, era uma ode a tudo que vínhamos conquistando com a vitoriosa soma das nossas vontades. Com tudo isto a ser visto e vivido, eu ainda preferia os dias de chuva.

Nos dias de chuva as aulas eram canceladas. Então eu ia com meu cachorro a um dos três cafés que permitiam animais, colava o rosto na janela e esperava que a cidade de liquefizesse.

Quanto mais se prolongava a chuva, mais real e convidativa ela se tornava. Como uma mulher que nos revela sua nudez despindo-se com vagar, num lento e entorpecedor ritual.

Assim, borrada e despida, a cidade voltava a ser minha. Eu a desenhava assim, em cenas de nudismo, em pequenas folhas de um caderno de rascunhos. Depois, antes de pagar a conta, rasgava um a um dos desenhos em pedaços muito pequenos que ia largando, em frações também diminutas, nas lixeiras cor-de-laranja que guiavam o caminho feito por mim e pelo meu cachorro. E torcia para que o sol custasse a voltar. Um dia, notei que o retorno dos dias azuis demorou mais que o normal.

Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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