E quando chegarmos ao jus primae noctis?

Os maus homens públicos resgataram da Idade Média a mesma lógica do Direito Divino

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readOct 30, 2015

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Texto de Gustavo Machado
Fotos de Mete Bakoçak

Sempre fugi das generalizações categóricas porque costumam ser boas companheiras da estupidez. Entre tantas: não há bons cidadãos na política. Há, sim. E, para sorte de quem imagina ser possível terceirizar a titularidade de seus direitos e deveres civis, os bons não são poucos.

Uma casta específica de políticos, porém, sempre me dá arrepios. São cíclicos, vão e voltam, reencarnam com ou sem farda, pela direita ou pela esquerda. São almas superiores, onipotentes, às quais todos devem reverência e incondicional subordinação. Não devemos olhá-los nos olhos, nosso tom de voz deve ser comedido. A eles, dirigimo-nos só quando instados e de forma alguma podemos sequer pensar em qualquer questionamento. Mesmo que estejam no poder pela nossa vontade ou consentimento revel; mesmo que nosso suor lhes custeie o luxuoso encastelamento.

Escolhidos por voto ou concurso, os maus homens públicos resgataram da Idade Média a mesma lógica do Direito Divino: têm uma espécie de permissão plenipotenciária para ser mais, ter mais, poder mais. Se o país vai mal, azar do país, os escolhidos não podem baixar o padrão de vida. Nada de filas, nada de classe econômica, dívidas com cartão de crédito, lista de espera no SUS. São especiais.

Há uns dez anos, eu trabalhava como repórter de um jornal diário e tive a oportunidade de conhecer uma dessas figuras. Eu tentava entrevistar o presidente da República, então hospedado com sua comitiva num luxuoso hotel da minha cidade. Lá pelo meio da madrugada, apareceu o ministro.

Ele chegou ao saguão do hotel seguido por um garçom que refrescava um bom tinto argentino no balde de prata. Cumprimentou-me com um aceno de cabeça, acendeu um charuto e começou a derrubar a garrafa sozinho, sem pressa, enquanto incensava a si mesmo com as histórias antigas e novas. Falava olhando para o alto, as lentes dos óculos com aro de tartaruga ficando embaçadas. Formado na clandestinidade e luta armada, já à época da entrevista dedicava-se à gestão do novo colonialismo estabelecido junto a países africanos. E eu, o que era? Era só um repórter que nem tinha sido torturado, que não conseguia ver o quanto o país estava avançando a ponto de levar outros países ao crescimento. Sim, sim.

Perguntei se o presidente não poderia, mesmo, conceder uma entrevista. O ministro ficou ofendido. Falar com ele não bastava?

Não, não bastava. E pra que entrevista, se o presidente dava dois discursos por dia? E retomou a cantilena. Enquanto ele falava, fui reparando que tudo no ministro era espalhafatosamente caro; da aliança muito larga, passando pelo relógio, o charuto, o vinho, até aos sapatos que, segundo ele mesmo, eram ingleses, presente de um embaixador.

Perguntei sobre alguma escândalo da época, sobre o boato de redução dos poderes do Congresso Nacional, sobre dívida interna, sobre criminalidade e, claro, sobre populismo. Populismo? Todo presidente que reinventa um país e redistribui a riqueza é taxado de populista pela minoria que perdeu, disse-me o ministro, e por um instante achei que fosse me golpear com o balde de prata ou com a garrafa já vazia daquele bom tinto. Mas não foi para tanto. Ele saiu sem se despedir, acho que me xingou entredentes. Passou pelos funcionários do hotel e disse alguma coisa. Logo as luzes foram apagadas, eu e meu colega ficamos no escuro. Um funcionário do hotel veio até mim e disse, sem jeito, que eu teria de me retirar.

Eu sentia fome, sentia sede. Dois cafezinhos no hotel haviam consumido os recursos de duas refeições. Acordei meu editor, por telefone, e disse que estava desistindo. No caminho de volta, sacolejando no carro do jornal com o sol já nascendo, voltei a pensar na relação entre esta nova casta e a reedição do Direito Divino; tudo a uns poucos, quase nada a muitos.

E imaginei se, nas suas autoridades superdimensionadas, esses homens não nos surpreenderiam ressuscitando o também medieval jus primae noctis. Talvez não precisássemos esperar tanto. Ou quem sabe, quando acontecer, ninguém se choque.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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