Em defesa da imperfeição

Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
8 min readJan 27, 2017

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Começarei admitindo o óbvio: não somos perfeitos. Ninguém é, e ainda bem. Os que acreditam ter chegado lá logo descobrem que falta um detalhe, uma aresta a ser ajustada, um ponto que não ficou bem esclarecido. A busca insana pela perfeição faz com que sejamos juízes não da proposta do outro, mas do quão adequada ela é diante dos nossos padrões de excelência.

Existem pessoas que, não bastando desejar a perfeição, também procuram encontrá-la em meio a esse vasto mundo. Dessa maneira, se esmeram em buscar a mulher ideal, o prato de comida indescritível, a experiência sublime. Agindo assim, acabam esquecendo de ver a perfeição que existe no ajuste quase milimétrico de imperfeições, em como o errado pode ser belo.

Eu gosto das imperfeições. Prefiro alguém falho e capaz de cometer erros do que aquelas pessoas que acertam tudo. Quem comete erros tentou pisar além das suas próprias pernas; foi ousado e, por isso, ao atravessar limites, acabou se equivocando. Em compensação, as pessoas perfeitas pisam sempre fora da grama, obedecem regras e regulamentos, não possuem nada de arrojado ou de perturbador. São seres de plástico.

Nos últimos tempos, uma modalidade de crítica às obras artísticas tornou-se verificar o quão próximo ela chegou da perfeição. Os auto-intitulados críticos procuram problemas de construção, equívocos do narrador, deslizes gramaticais ou de forma, para então decretarem a imperfeição da obra. O pior é lermos textos e reportagens condenando ao limbo alguma obra por ela ser imperfeita, como se a perfeição fosse uma qualidade a ser buscada pelo artista. Ao contrário: o verdadeiro artista é aquele que rompe e redefine os critérios de perfeição. Quanto mais vejo, leio ou escuto obras de arte, mais me encantam os problemas do que as qualidades.

Claro que é necessário equacionar as virtudes técnicas com as imperfeições de tal maneira que elas encontrem a necessária harmonia, e talvez esse seja o ponto que devemos buscar. Não considero imperfeito um conto de 60 páginas ou uma pintura realizada com rabiscos ou uma música com linhas melódicas simplórias. Mas vejo problemas se as 60 páginas do conto forem repletas de clichês ou os rabiscos não representarem nada no conjunto da pintura ou as linhas melódicas simplórias atrapalharem os trechos musicais relevantes.

Às vezes, a perfeição é questão mais de ajuste do observador do que da obra em si. Não faz muito tempo, li um conto de Emile Zola, “A inundação”, que me deixou irritado. Esse sentimento acontecia por achar a trama óbvia, repleta de clichês e de um sentimentalismo tão piegas que por várias vezes eu me perguntava “Zola, o que houve com você, meu amigo?”. Estava resignado a considerar tal conto como uma obra menor quando, alguns dias depois da leitura, entendi tudo. A verdadeira história não era a descrição das desgraças advindas após uma inundação, mas uma delicada e contundente visão de Deus. O mesmo Deus que dera a vida e a felicidade por anos a uma família podia retirá-la em minutos sem que isso implicasse em injustiça divina, como vemos tantas pessoas reclamando por aí. A verdadeira injustiça era a felicidade, e não a morte. O conto saiu do ostracismo para a glória não por que foi ajustado para ser perfeito, mas por que o seu leitor mudou. Aquilo que é feio hoje pode ser o belo amanhã.

De todos os artistas, o mais obcecado com a perfeição foi Leonardo da Vinci. No “Tratado da Pintura”, ele alertou os pintores de que só deveriam mostrar as suas obras ao público quando elas estivessem absolutamente perfeitas. Até esse momento, as obras deviam ser trabalhadas e buriladas, extraindo qualquer imperfeição, por menor que fosse. As palavras de da Vinci são duras:

“Lembro-te, pintor, que, se teu próprio julgamento ou a advertência de outrem o fazem descobrir algum erro em tua obra, tu deverás corrigi-la a fim de que, ao tornares pública essa obra, não divulgues ao mesmo tempo a tua insuficiência. E não procures desculpar-te diante de ti mesmo, persuadindo-se de que vais reparar a vergonha em tua próxima obra, pois a pintura não morre a partir do momento em que nasce, como a música, mas será, durante muito tempo, a maior prova da tua ignorância.”

As pinturas de Leonardo da Vinci que chegaram ao nosso conhecimento foram poucas. Provavelmente por causa do seu rigor estético, que o levava a buscar imperfeições de forma obsessiva até só deixar a obra surgir quando estivesse ajustada, o autor legou ao mundo pinturas inesquecíveis, como “A Dama com Arminho”, “A Última Ceia” e a incensada “Mona Lisa”.

Nesse mesmo tratado sobre a pintura, Leonardo da Vinci se depara com um dilema que muitos artistas enfrentam até hoje. Para ganhar dinheiro e se sustentar, o artista não pode ficar anos dependurado sobre as eventuais imperfeições da sua obra, pois precisa produzir. Assim, acaba deixando de lado a perfeição do fazer artístico em detrimento do sustento de si e da sua família. Novamente o multi-talentoso da Vinci é cruel na sua resposta:

“E se tu desculpaste [as imperfeições das obras] dizendo que tens de dar de comer a teus filhos, [digo que] eles precisam de pouca coisa para viver; sobretudo, faz com que o alimento deles seja a excelência, pois é uma riqueza fiel que só nos abandona com a morte. (…).”

Entre a perfeição da obra e o conforto material, para da Vinci o mais importante é a obra. É ela quem determina o seu grau de especificidade, e cabe ao artista a tarefa de deixá-la o mais próxima possível da perfeição da sua ideia. No entanto, aquilo que é perfeito hoje pode não ser mais amanhã, e o artista mergulha em um universo tão implacável que, em determinado momento, não está mais fazendo a obra, mas se liberando dela. Não é mais uma questão de deixá-la perfeita, mas de eliminar os seus muitos problemas.

Seria muito bom se cada pessoa vivesse com esse ideal inatingível em mente: atingir o máximo de perfeição e irreprovabilidade nas suas atitudes diárias. Leio muitas pessoas comentando que, se pudessem refazer determinado ato, fariam diferente, mas raras são as que dizem que fariam tudo igual. Agir de forma a não se arrepender depois ou agir que cada ato seja o mais próximo possível da nossa intenção, sem subterfúgios ou máscaras, parece ser um bom plano de vida, uma vez que só viveremos uma vez e não é possível ficar remendando burradas sob pena de nunca se avançar.

Na literatura, existem vários casos de escritores que buscaram a perfeição, como Otto Lara Resende, que escreveu e depois reescreveu toda a sua obra. No entanto, o mais emblemático deles é Murilo Rubião. Durante toda a sua vida, o escritor mineiro fez somente 32 contos, os quais passou a vida inteira reescrevendo e acertando eventuais problemas. Não à toa, em entrevista dada por ocasião do lançamento de “O convidado”, Murilo Rubião disse:

“Sempre aceitei a literatura como maldição. Poucos momentos de real satisfação ela me deu. Somente quando estou criando uma história sinto prazer. (…) A literatura é feita com muito esforço. Muito mais esforço do que talento: é brigar com a palavra todo dia, é revirar a história, elaborar e reelaborar, ir para frente e voltar, enfim, mesmo numa obra reduzida, é preciso enorme capacidade de trabalho e tremenda pertinácia. Fazer literatura é quase um trabalho braçal.”

Murilo Rubião também não se importava com o tempo que cada trabalho levaria para ficar pronto: o conto “O convidado” foi escrito e trabalhado durante 26 anos. A busca da perfeição estilística não é contada de forma cronológica e, em tempos cada vez mais rápidos, com o grau de atenção da pós-modernidade implorando por impulsos curtos e que não demandam muita reflexão, considero meritória qualquer pessoa que dedica parte do seu tempo de vida para buscar um ideal tão intangível e etéreo quanto a perfeição.

Às vezes, no silêncio dos meus pensamentos, tento pensar como Murilo Rubião se sentia. Ele era um homem prisioneiro de sua obsessão, mas ambicionar ser melhor pode ser considerado como algo prejudicial? Por muitas vezes, quando vejo amigos reescrevendo obsessivamente os mesmos livros, brinco dizendo “não vai dar uma de Murilo Rubião, hein”, mas existe um limite que podemos atingir na busca do ideal de perfeição estética. A questão é saber quando chegamos nele. Estamos fazendo o nosso melhor mesmo ou ainda podemos ser mais eficazes? Estamos em uma relação perfeita ou outra pode ser mais feliz? Estamos no auge do contentamento ou o auge ainda pode estar por acontecer? São essas dúvidas que nos movem.

Em outra ocasião, Murilo Rubião confessou que o seu maior problema eram as palavras: “As palavras atrapalham-me a memória, e o coração, impotente, clama por uma linguagem que não me ocorre.” Um escritor atormentado pela busca da palavra correta segue o ideal de Flaubert, “le mot juste” (a palavra exata). Mas mesmo Flaubert sabia que, se não chegasse até ela, deveria usar a mais apropriada para o momento, pois sempre existe o espectro de uma palavra que poderia entrar no lugar de qualquer uma em todo texto.

Honoré de Balzac escreveu uma novela sobre a busca pela perfeição que norteia o trabalho artístico e, por que não dizer, a experiência humana, pois sempre buscamos algo melhor. Em “A obra prima ignorada”, Balzac fala através de um pintor obcecado em fazer a obra de arte perfeita, um retrato que deseja executar e que será o mais importante da sua vida.

Durante dez anos, Frenhofer trabalha de maneira incessante no quadro, tentando extrair o máximo de beleza e de graciosidade, em um movimento que chega às raias da insanidade diante de tudo o que ele pretende colocar na imagem. Os dois aprendizes com quem o mestre conversa percebem que a busca pela perfeição no quadro serve mais para esconder as falhas da vida do artista e os seus defeitos de caráter. Pintar uma obra prima era a chance que Frenhofer tinha de impressionar as demais pessoas e deixar a sua marca na existência.

Balzac mostra que perfeição não era buscada pelo artista para satisfação própria, mas para o deslumbramento dos outros. Por isso entendo que a imperfeição é algo subestimado. Existe perfeição mesmo na arte de ser imperfeito. Desistir de viver e de comer em busca da perfeição, como defende Leonardo da Vinci, ou passar anos vivendo as mesmas histórias em busca de um ideal intangível que só a morte é capaz de dar um basta, como Murilo Rubião, ou desejar ardentemente a aprovação dos outros, como diz Balzac, são todas facetas cruéis da vontade de sermos seres humanos melhores.

Quanto mais nos detemos no detalhe, mais esquecemos que a verdadeira perfeição é ser fiel consigo mesmo, e, neste contexto, a imperfeição é o que nos diferencia desta multidão que tenta impor seus padrões. Buscar a perfeição é um ideal a ser sempre buscado, mas é possível que a verdadeira arte para quem não possui tal obsessão seja mesmo conviver com nossas pequenas e deliciosas imperfeições.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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