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Enfim, sós

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
3 min readAug 14, 2015

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Toma vida em Murakami a população fabril que se trata, entre si, por números; e também gente que, como números, é demitida às centenas num simples DEL em alguma tabela.

Por Gustavo Machado

Tenho oito anos. Já fiz os temas de casa e, com a consciência tranquila, espero pela Sessão da Tarde enquanto minha mãe dá jeito na cozinha. Começa o filme. Mãe, vem ver!, eu grito, torcendo para que meu irmão não acorde no berço que eu passo a sacolejar de levinho, usando o pé. Vem, mãe!, eu insisto. Ela vem. Trazendo agulhas e lã, mas vem.

Do lado de dentro do magnífico televisor colorido da minha família classe média, um náufrago usa as pedras que vai encontrando na ilha e escreve em relevo, na areia, um gigantesco S.O.S. Talvez pela minha ainda fresca alfabetização, ou talvez pela caligrafia acidentada do personagem, pergunto à minha mãe por qual motivo o homem imprime aquela palavra. Que palavra, meu filho? Aquela ali, ué: SÓS. Minha mãe quase não tira os olhos do tricô e me explica alguma coisa sobre uma mensagem de resgate. Daí pra frente, SÓS, pra mim, passou a significar S.O.S. Solidão e desejo de resgate se entrelaçaram num pacto vitalício.

Foto de Joba Migliorin

Anos mais tarde, o tema da solidão urbana passa a ser um dos meus grandes interesses na literatura contemporânea. Não me empolgo, não romantizo. É uma reflexão recorrente que, vira-e-mexe, volta a me abraçar. A solidão de cada homem perdido numa grande metrópole. Ou dentro da própria família. Escrevo sobre o tema em artigos, abordo-o indiretamente na ficção que pratico, discuto-o em diferentes níveis com diferentes pessoas.
No café de uma livraria, falo sobre o tema com um grande amigo que há tempos vive numa cidade bem maior que a minha. Dez vezes maior. Conversamos sobre a beleza que há na prosa do japonês Haruki Murakami; que além de excelente romancista é um brutal fenômeno de vendas em metrópoles ainda maiores e mais populosas que a do meu amigo. Por exemplo, em Tóquio.

Em tramas minimalistas que bem poderiam configurar os romances intimistas, para poucos, Murakami vem cativando milhões de leitores com os mesmos índices de um artista de massas. É um vendedor fenomênico. E um autor brilhante. Eu e este meu amigo supermetropolitano conversamos sobre a possível receita do ainda mais supermetropolitano Murakami e não chegamos a qualquer conclusão além de concordarmos em ele ser bom pra burro, bom de doer, magistralmente bom. O que, em termos de vendas, nem sempre diz muita coisa. Então meu amigo vai embora. E, no último café que tomo sozinho (talvez por isto mesmo), começo a tecer minha tese. É tão concisa que pode ser achatada em meia dúzia de linhas mentais que vou anotando.

Na minha nem sempre modesta opinião, Murakami é mais que um excelente autor; é um espelho a homens e mulheres pertencentes a uma vasta gama de castas sociais e níveis de compreensão de leitura. Enxergam-se na obra de Murakami médicos brasileiros, empresários chineses, desempregados norte-americanos, pastores canadenses, garçons ingleses, professores primários italianos, presidiários japoneses. Trabalhadores, na ativa ou não, que por todos os cantos do mundo estão empilhados em edifícios de trinta e cinco andares com cinquenta apartamentos por andar, segregados em condomínios de luxo, pastando nas praças de alimentação dos shopping centers, esperando nas filas do seguro-desemprego.

Toma vida em Murakami a população fabril que se trata, entre si, por números; e também gente que, como números, é demitida às centenas num simples DEL em alguma tabela. Toma vida o homem de dentro da tela da minha televisão classe média que, em vez de apertar no DEL, escreve na areia S.O.S. enquanto definha. Enxergamo-nos ali também eu com meu filminho, minha mãe com suas agulhas, meu irmão com seu berço. Estamos todos sobre a mesma Terra. Estamos até numa mesma família. E estamos todos sós. SÓS. Somos náufragos e, à falta de pedrinhas, maravilhamo-nos como Murakami.

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