Escrever é

De Gustavo Melo Czekster

Coleção Dublinense
9 min readDec 15, 2015

--

A esta altura do campeonato, da vida em meio a jornada, chego naquela selva tenebrosa que, ao contrário do ocorrido com Dante no início da “Divina Comédia”, não conduz a outro mundo, mas à pergunta que todos fazem em segredo: o que diabos — sem alusões dantescas — é escrever? Qual misteriosa força me faz passar o dia inteiro redigindo textos profissionais e, ao chegar em casa, enquanto pessoas normais relaxam e se entregam a prazeres mundanos, me impele a continuar lendo e escrevendo ficção até a exaustão absoluta?

Não tem lógica alguma. Escrever é a coisa mais sem sentido que faço. E, quando falo escrever, também estou pensando em outras formas de arte, como a pintura, a escultura, a dança, a música. Estou lendo uma interessante coleção de 17 livros, chamada de “A pintura: textos essenciais” (organizada por Jacqueline Lichtenstein), em que são inseridos trechos de obras clássicas sobre a pintura, mas podem ser aplicados para outras artes.

Desde a vinculação com a religião — e a questão que perpassa toda a História da Arte, para mim vibrante até hoje, se seria possível a homens ou mulheres interpretarem Deus e outras figuras do panteão divino através da pintura — até a indefinição das escolas artísticas, a coleção também mostra a insanidade absoluta, quase inumana, que é o gesto de criar. Acompanhando cartas deixadas por Michelangelo, as brigas de Kandinsky com as galerias de arte que recusavam suas exposições e os debates teológicos sobre a incapacidade de uma pintura representar Deus, é impossível não pensar na postura blasé que muitos artistas assumem na atualidade, como se criar fosse escovar os dentes ou tomar uma cerveja. Não é. Criar é um jogo de dados viciados que travamos com a loucura. Quem não assume isto como norte da sua bússola criativa está fazendo entretenimento, não literatura.

Pensando em tal fato, e na recorrência da pergunta pelos locais em que transito, elaborei uma série de respostas possíveis. Elas são usadas dependendo do momento, do meu humor, do clima, do dia do mês, da roupa que estou vestindo ou, talvez, do doce acaso que coordena os nossos atos diários. Escrever também é fazer listas inócuas.

Escrever é enganar a Morte

A Sherazade de Sophie Anderson

Um dos mais antigos conceitos. A ideia de que todos somos partes da mesma história e, enquanto estivermos a contando, não podemos morrer. Foi a estratégia que Sheherazade usou para enganar o sultão; Fernando Pessoa se dividiu em muitos para que a Morte perdesse o seu traço caçando heterônimos como Nabokov perseguindo borboletas com a rede no meio do campo. Shakespeare afirmou que somos todos atores que sobem em um determinado palco, fazem as suas falas e intervenções e, em seguida, sumimos, o que nos permite dizer que a peça de teatro precisa continuar a qualquer custo.

Enganar a Morte através da literatura não leva a nada. A pretensão de durar para sempre é mais fardo do que alegria, que o diga o narrador de “O Imortal”, conto de Borges. Mais vantajoso seria pensar na literatura como uma tentativa de enganar a Vida. Forjar um outro mundo, uma realidade alternativa. Apesar de Sheherazade ser badalada, e que eu a considere como a manifestação perfeita para a Literatura (a mulher que sempre tem uma história e escreve para poder viver), fascina-me mais a figura de Duniazade, a irmã, que dormia aos seus pés. Ela era a responsável por acordar Sheherazade durante as mil e uma noites fatídicas; imagino a sua angústia na madrugada, esperando os primeiros cantos dos galos e os raios imberbes do sol, sabendo que, se dormisse, se falhasse, a sua irmã não poderia encantar o sultão com a história assim que ele acordasse, e as duas estariam sentenciadas à morte.

Escrever não é só enganar a Morte, mas dormir aos pés da história perfeita — e acordá-la quando for a hora exata.

Escrever é escutar vozes

Na gigantesca lista de clichês que permeiam a Humanidade, esta frase ocupa um local de destaque. Não foram poucos os que se refugiaram nela para justificar o fazer artístico, desde Andy Warhol até Frank Zappa, Balzac e Sócrates (que, para organizar a bagunça, considerou como somente uma voz e a chamou de “daimon”). Acredito que muitas pessoas escutam vozes, algumas inclusive ao ponto de ser doença psiquiátrica, mas daí a vincular a criação artística com escutar vozes é o estatuto último do covarde: não fui eu, homem/mulher de carne, pele, sangue e ossos, quem escreveu o texto, foram as vozes que o ditaram e, quem tiver divergências com elas, que brigue com elas, não comigo. Sem essa de culpar as vozes, amigo/a, a responsabilidade pelas burradas e inverossimilhanças do texto são tuas, somente tuas. Aprenda a viver com a sua própria falibilidade ou, nas palavras de Criolo, “convoque o seu Buda, que o clima está tenso”.

Mais interessante que escutar vozes seria BUSCAR uma única voz, a perfeita, a voz do próprio personagem. No seu “Diário”, Adolfo Bioy Casares afirma que ele e Jorge Luis Borges levaram semanas de árdua conversa e elucubrações eruditas — ele cita os diálogos que os dois tiveram no período e, acreditem, aquilo sim são elucubrações eruditas, não o que chamam de erudição atualmente — até o momento triunfal em que surgiu a voz de Bustos Domecq, detetive criado por ambos. Nas palavras de Bioy Casares, “escribiendo los cuentos de Bustos Domecq, creímos descubrir que los personajes se definen por la manera de hablar: si el autor imagina cómo hablan, los conoce, no se equivoca sobre su psicología”. Só então escreveram as histórias do detetive, depois que, no manancial de vozes que infestam a Humanidade, acharam aquela que pertencia à sua história. Em tal contexto, podemos pensar que escrever não é escutar vozes, mas, sim, encontrá-las. (Menos no caso de Dostoiévski, para quem a literatura era o ato de transformar vozes em textos).

Escrever é sofrência

Pergunte para dez escritores o significado de escrever e nove responderão que escrever é sofrer: descreverão dores inenarráveis, sacrifícios quase desumanos, a tomada de decisões cruéis, a busca por auxílio nas bebidas, nas drogas e no sexo, entre outros penares. Das formas de expressão artística, os escritores são praticamente a música sertaneja expressando eterno sofrimento pelas mais variadas causas, uma pedra de Sísifo que não só despenca montanha abaixo como, na queda, ainda passa por cima do autor. Não vejo tamanha vontade em descrever o próprio sofrimento em pintores, músicos e escultores (duvido que Rodin não tenha acertado muitas marretadas nos seus dedos, mas, mesmo assim, não existe nenhum depoimento queixoso dele).

Fernando Pessoa e outros Pessoas

Pensar que escrever é um ato de quem busca o sofrimento nos leva a concluir que todo escritor não passa de um masoquista, algo bem perigoso quando associado à ideia de escutar vozes. Ora, viver é muito perigoso; estar vivo é estar imerso em um mar de sofrimento, em um Aqueronte que nunca cessa. Fernando Pessoa matou a charada: o poeta é um mentiroso tão contumaz que consegue se convencer de que está sentindo a dor descrita.

O sofrimento não é prerrogativa de quem escreve, é conseqüência natural de existir. O que poucos escritores dizem — e sinto que romperei um pacto secreto traçado há muitos anos, um segredo milenar que não devia ser proferido — é que escrever é algo extremamente divertido. Mais ainda: é excitante. Tirar uma história de dentro de si é como tirar uma pepita de ouro de uma mina desativada. É possível fazer literatura se divertindo, escondendo as verdades no meio do texto. Eu consigo escutar as risadas invisíveis de Machado de Assis atrás dos seus contos; consigo ver Dante distribuindo os inimigos e desafetos nos círculos do Inferno e dizendo, olhos lacrimejando de tanto rir, “bem feito! Toma o que te mandaram!”; consigo sonhar com o circunspecto Milton escrevendo no seu escritório com um meio-sorriso, pensando no grande truque de transformar o pior inimigo dos homens no maior símbolo da liberdade.

Escrever é se divertir com a dor alheia — e ainda convencer os outros de que estamos sofrendo.

Escrever é não escrever

A única obra de arte perfeita existe na nossa cabeça.

Transformá-la em realidade é destruí-la.

O maior presente que um escritor pode dar para a Humanidade é não escrever.

Pensem a respeito.

Escrever é tapar o vazamento de uma represa com o dedo

… e saber que, não interessa o que o autor faça, assim que tapar o buraco por onde sai uma história, outro abrirá logo acima, e o autor o tapará, e outro buraco surgirá, e será tapado, e mais outro, e outro ainda, em um movimento infinito que — espero — somente a Morte será capaz de interromper, e a pressão aumentará até que surgirá um buraco decisivo, impossível de ser tapado, e o autor terá que lidar com ele, escrever rápido a história que escoa, transformá-la em livro, livrar-se da história e, quando imagina que irá, enfim, descansar, volta a olhar a parede da represa, e outro buraquinho mínimo desponta, e mais outro, e outro, e tudo recomeça, mais um dia normal na represa que evita que todas as histórias do mundo despenquem sobre o Universo e nos revele as bordas limítrofes da folha em que estamos escritos.

Escrever é amar em segredo

Lendo um livro sobre Marc Chagall, descubro que parte dos críticos de arte diz que, toda vez que o pintor russo colocou um vaso de flores dentro de uma pintura, estava fazendo uma homenagem secreta — um código, podemos dizer — à mulher que amava. Nem todos concordam que esta mulher seria a sua esposa, Bella, podendo ser outra pessoa. Outra parte dos críticos diz que os vasos de flores seriam somente elementos surreais nos quadros, nada mais que isso: casais voando no meio de um céu azul, e um vaso de flores. Nunca saberemos a verdade.

Grande parte dos quadros de Chagall possui flores, algumas com vasos, outras sem. Imaginar que ele fez toda a sua produção artística como um pretexto para mandar flores em segredo para a mulher amada foi algo que me desnorteou. É como plantar uma floresta para esconder uma folha seca no seu interior.

Mas, e se a Literatura for somente um pretexto para falarmos de amor? E se os artistas — não só os escritores — estão passando invisíveis mensagens amorosas através das suas obras e, no percurso até o ente amado, no intervalo que dista da saída da flecha de Cupido até o seu alvo, acabam atingindo outras pessoas, baixas involuntárias desta guerra?

Umberto Eco diz que escrevemos o texto para uma única pessoa, a quem chama de Leitor Ideal, uma espécie de interlocutor invisível com quem conversamos imaginariamente enquanto escrevemos. Mas, e se estivermos fazendo como Beethoven e mandando cartas para a nossa Amada Imortal sem nominá-la? E se toda a história da experiência artística não passar de cartas que, no melhor estilo de Poe, colocamos em garrafas no meio do mar, esperando que elas cheguem às mãos de uma única pessoa? Isto transformaria os artistas em figuras solitárias na própria definição do termo: aquelas que acham que somente uma determinada pessoa, no meio de sete bilhões de almas, tem a capacidade de entendê-la e amá-la. Só uma.

Existem perguntas que é melhor não fazer.

Ao final, cada um tem a sua própria explicação do motivo pelo qual escreve. Da mesma forma com que a arte imita a vida e vice versa, cada pessoa sabe o motivo exato da sua existência, seja louvável, seja ignóbil. Tenho a minha própria definição do que é escrever, a qual respondi de chofre estes dias e sei que reprisa palavras ditas também por Clarice Lispector: escrever é a vontade de preencher um vazio interno que nunca estará satisfeito. Pode não ser a melhor definição, mas é a que me conforta, nas noites quentes e silenciosas em que, cansado, procuro palavras para colocar em meus textos.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contosO homem despedaçado.

--

--

Coleção Dublinense

A Editora Dublinense é um projeto editorial eternamente em construção. Organizada em três selos: Dublinense, Não Editora e Terceiro Selo.