Essas pessoas feitas de palavras

Por Robertson Frizero

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readNov 5, 2015

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Obra de arte em livro de Emma Taylor

Não importa se o leitor foi convencido a comprar ou tomar emprestado o livro por conta do tema, do autor ou da grande vendagem que a obra alcançou: a personagem é o elemento-chave para fazê-lo interessar-se pela história.

É o destino das personagens que motiva o leitor a seguir adiante na leitura. Por mais que haja outros elementos de sedução — a ambientação, a linguagem, a época retratada –, é o destino das personagens que motiva o leitor a seguir adiante na leitura. E seduzir o leitor é tarefa cada vez mais difícil em tempos de tantas distrações — e tão pouco prestígio para a literatura.

Sem personagens críveis e interessantes, não há ficção. São elas que moldam a história, pois diferentes pessoas reagem de formas distintas a uma mesma situação. Ditam também a ambientação, já que o local de origem afeta a formação das personagens, sobretudo os adultos, que tendem a escolher ou estruturar o lugar onde vivem de acordo com sua personalidade. Mesmo o estilo e a linguagem é influenciado pela personagem — algo óbvio quando tratamos de narrativas em primeira pessoa, mas verdadeiro mesmo nas narrativas em terceira pessoa, nas quais o foco do narrador pode dar à narrativa as nuances do protagonista.

Charlotte Brönte

“A realidade deve sugerir personagem, não as ditar.”
Charlotte Brönte

O bom escritor é hábil em oferecer-nos personagens críveis por sua facilidade em construir o texto ficcional com três diferentes visões: a de autor, a de leitor e a de personagem. Como autor, é ele quem comanda as ações e decide o destino das personagens, conhece-lhes o passado e o futuro, direciona-as para aquilo que melhor irá expressar o tema. Ele também precisa ver o texto com os olhos do leitor, procurando perceber se as informações transmitidas são suficientes para construir a personagem, diante de quem lê, com toda verdade e carga simbólica necessárias à história. Mas é a visão de personagem a mais complexa para qualquer escritor.

Desnecessário alongar-se sobre o fato de que as emoções das personagens vêm diretamente das próprias emoções e observações do escritor sobre o mundo que o cerca. A experiência é vasta escola — infelizmente, nem todos somos bons alunos, e isso fica mais nítido quando pensamos na literatura, pois escrever uma boa personagem de ficção requer, sobretudo, um vasto conhecimento sobre os homens, suas paixões, o modo como agem — e reagem — aos acontecimentos da vida. Mesmo usar a própria experiência de vida na construção das personagens não é garantia de sucesso: se há o lado positivo, o de conhecer todos os detalhes dos acontecimentos narrados — da ambientação às emoções envolvidas e à consequência das ações –, também há o revés de raramente conseguirmos olhar para nós mesmos de modo objetivo e racional; corre-se facilmente o risco de ser parcial e defensivo, quando a literatura pede justamente o oposto. Melhor usar as situações vividas — pelo autor ou por outras pessoas que o cercam — dentro da história, de modo orgânico, na vida de personagens que não são o autor — no máximo, um mal disfarçado alter ego –, uma espécie de canibalização na qual a realidade alimente a ficção sem limitar a criatividade.

As personagens são pessoas feitas de palavras. Elas ganham existência na mente do leitor a partir do ato de receber informações escritas em sequência. Diferente do que acontece em outras artes — o cinema, o teatro, a teledramaturgia, as artes plásticas, nos quais a imagem supre de imediato boa parte da descrição –, na literatura constrói-se as personagens aos poucos. Palavra a palavra, frase a frase, a personagem de ficção surge e torna-se verossímil. E esse desnudar-se página a página é poderosa arma de sedução do leitor.

Robertson Frizero é escritor, tradutor, dramaturgo e professor de oficinas literárias em Porto Alegre. Mestre em Teoria da Literatura pela PUCRS, teve seu livro de estreia na literatura, o infantil Por que o elvis não latiu? (2010), indicado como um dos trinta melhores títulos do ano pela Revista Crescer e finalista do Prêmio Açorianos de Literatura. Estreou na prosa ficcional com Longe das aldeias.

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