Estamos em guerra
Gustavo Melo Czekster
Dizem que a cultura está sob ataque. Todos os dias chegam reportes desanimados dos fronts de batalha: são livrarias fechando, substituídas por conglomerados amorfos que empurram modas literárias goela abaixo; são orquestras tendo as suas atividades encerradas, enquanto as outras suspendem a respiração, com medo de que sejam as próximas a entrar na fila do abate; são museus tendo o seu acesso restrito a horários incompatíveis com o dia a dia de uma cidade; são peças de teatro com as temporadas canceladas por falta de público; são bate papos literários realizados para as moscas; são exposições de arte desertas, à espera de um público que nem sabe que elas existem e menos ainda sobre a sua relevância. Para quem lê tantos relatos de derrota, impossível não desanimar ao ver os bárbaros cercando a civilização com os seus archotes e forcados. Para quem produz cultura, então, o cenário é tão desalentador que não surpreende que muitos estejam desistindo de tamanha utopia e voltando às engrenagens impiedosas da rotina de consumir e ser consumido.
Gostaria de dizer que a cultura está sofrendo ataques somente em um local, permitindo restringir o alcance de uma eventual derrota, mas é um movimento mundial. Os reportes chegam de todos os lugares: monumentos destruídos, obras vandalizadas, livros censurados, músicas ridicularizadas. No afã de sobreviver, a arte vulgarizou-se; deixou de falar do humano para tratar de si mesma. Fechou-se em uma bolha, e o resultado está aí — a cultura tornou-se supérflua. Se ela é algo que só existe para satisfazer o próprio ego das obras e dos artistas, para que perder tempo e dinheiro consumindo algo que não nos diz respeito? Sempre é bom realizar um mea culpa e, se a cultura está sob ataque, é por causa das nossas decisões equivocadas e da nossa maneira indelicada e insensível de encará-la. Tornamos não somente a cultura supérflua, mas também cedemos ao conforto de imaginar que estávamos seguros. Nunca estivemos e, infelizmente, como mostra a situação ao nosso redor, jamais estaremos.
Nunca foi fácil tratar com cultura. Com exceção de poucos períodos luminosos em que as artes foram vistas como fundamento essencial do ser humano, a cultura sempre foi o primeiro objeto que jogávamos fora do navio assim que víamos a primeira sombra de água intrometer-se na proa. Sempre tivemos que fazer concessões para que a cultura fosse adiante, seja ao capital, ao poder ou à religião.
Na Assíria, em meados do século VII, um escriba escreveu uma nota à margem de um texto literário destinado a ser lido ao rei Assurbanipal por outro escriba: “Quem quer que você seja, escriba que lerá esse texto, não esconda nada do rei, meu senhor, para que os deuses Bel e Nabu falem com bondade de você para o rei.” Uma pequena nota de rodapé em um texto e uma indiscrição cometida contra Assurbanipal, mas também um comunicado secreto entre dois artistas da arte da palavra. A cultura só sobrevive quando todos nos ajudarmos, mesmo que seja enganando o próprio rei a que obedecemos, e diante dos seus olhos.
Somos herdeiros deste escriba anônimo. Estamos todos deixando mensagens criptografadas para serem lidas por algum anônimo do futuro que irá nos entender e, talvez, salvar a própria vida quando estiver diante da nossa arte. Não podemos ser irresponsáveis.
Para que a cultura sobreviva, devemos não só nos ajudar, mas propagá-la em cada mísero front que nos derem. Temos a possibilidade de um discurso? Vamos falar então. Temos a possibilidade de um texto? Iremos escrever sobre o assunto. Um prêmio, uma honraria, uma festa? Iremos falar a verdade incômoda — de que existimos e somos importantes. Nunca mais nossos adversários dormirão em paz enquanto tivermos um púlpito que nos escute. Lutaremos lado a lado nas trincheiras, sob a sombra das flechas ou das balas de canhão, e iremos cantando para a luta.
Quem mexe com cultura nunca consegue dormir tranquilo, sendo atormentado pela insegurança de saber se fez um bom trabalho, ou pelas dificuldades inerentes de se sustentar em um mundo que não nos dá muito valor (e no qual somos facilmente descartados), ou pela incerteza das obras de arte que disputam espaço na memória do artista, ansiosas por uma liberdade que o seu corpo cansado não é capaz de proporcionar a contento. Não ajuda nada para a tranquilidade do artista saber que, a qualquer momento, uma canetada indiferente dos órgãos de governo pode transformar a sua obra inteira em algo obsoleto, proibido ou até mesmo queimável. A única garantia de sobrevivência é se o público clamar em defesa ao artista, mas a plateia é volúvel, instável e facilmente dispersa. Alem disso, existem muitas atrações simultâneas no meio do anfiteatro, e nunca sabemos se os polegares estão em riste para nós ou para o espetáculo ao lado.
Ainda assim, e contra todos os prognósticos, lutamos a luta impossível. Não faz muito tempo, li “Michelangelo: uma vida épica”, biografia do pintor escrita por Martin Gayford. Michelangelo passou a vida inteira lutando por sua arte. Chega um momento em que o leitor se pergunta se valeu a pena o pintor brigar tanto pelo direito de se expressar livremente, se não seria melhor desistir.
Para pintar o teto da capela Sistina, Michelangelo teve brigas e discussões homéricas com o papa Júlio II, o “Papa Guerreiro”, que tentava impor as suas visões comuns de arte para o pintor. O papa não queria intimidar o artista, mas costumava visitar a obra vestido de armadura e portando uma espada, o que já era uma forma de passar o recado. Michelangelo não lhe deixava sequer ver a obra, mantendo-a sempre tapada, para evitar a curiosidade e as opiniões do mecenas.
Como o papa Jùlio II tinha muitas dificuldades de comunicação verbal com Michelangelo, decidiu enviar-lhe cartas contendo sugestões de afrescos, ao que o artista respondia de forma furibunda, considerando inaceitável esse tipo de intromissão. Em certo momento, o papa acabou capitulando — literalmente deixou nas mãos de Deus — e, nas palavras de Michelangelo, “enfim deixou-me fazer o que eu gostaria”. Tais fatos aconteceram há quase 250 anos, e a Capela Sistina continua lá com seus afrescos, enquanto os dois homens viraram História, e eis outro destino da cultura: permanecer como solitário farol a guiar o humano enquanto o mundo estiver mergulhado nas trevas.
Sintoma maior da fragilidade dos nossos tempos é que mesmo as pessoas que fazem cultura não sabem o que é cultura. Buscam o aplauso indiferente, a risada distraída, o bater nas costas enganoso ou os confortos ilusórios do dinheiro e da fama ao invés de fazer uma obra cultural honesta. Fazer cultura é se dissipar dentro da obra, e não buscar atingir o público pelo escândalo planejado ou pela ruptura de padrões que, de tão velhos, já existem mais como recordação do que como verdade imutável. “Hum, Fulana tirou a roupa, preciso me escandalizar”; “hum, Beltrano se machucou no palco, preciso ficar horrorizado”. Até mesmo a ruptura de padrões pode ser um clichê e, quando mal feita, traz mais escárnio para a produção cultural do que a auxilia.
Em um de seus textos, “O fetichismo na música e a regressão da audição”, Theodor W. Adorno fala sobre algo muito assustador: a ideia de que existem músicas feitas para não ouvirmos. Estão por aí, espalhadas pelo mundo, dentro de elevadores, lojas de departamentos, supermercados, e nós escutamos, mas não ouvimos. No entanto, atrás destas obras, existe também um artista, que criou uma música sem alma e com o propósito de passar no fundo da nossa vida sem causar nenhuma impressão. São músicas zumbis, sem vida e que, apesar disso, existem. Mais preocupante é parte dessas músicas estarem fagocitando músicas dotadas de alma, como sonatas de Mozart ou sinfonias de Beethoven, tudo para transformá-las em algo sem alma e sem destino. O mesmo acontece com a cultura: ela está sendo destruída por que não se tenta a ousadia de pular em um abismo rezando pra que exista um rio ao seu final, mas para reeditar fórmulas ditas de sucesso. Viramos grandes ventríloquos e, por causa disso, não surpreende que sejamos considerados descartáveis.
A cultura vai muito além de expor uma obra, também tem a função de subverter, ironizar, brincar e destruir os padrões existentes, que necessitam se amoldar a ela, e não o contrário. Em 1629, quando o pintor José de Ribera tornou público o quadro que lhe fora encomendado pelo Duque de Alcalá, a sociedade espanhola se horrorizou: era um homem dando o peito para um bebê mamar, ladeado por outro homem. Aquilo era obsceno, ultrajante, nojento, impossível, irreal. As críticas e ofensas se empilhavam, e o pintor correu risco até de ser linchado.
No entanto, José de Ribera disse o título do seu quadro, “Retrato de Magdalena Ventura”, e tudo passou a fazer sentido. Magdalena Ventura era a “Mulher Barbada”, atração maior de um circo que se apresentava nas cidades espanholas da época. Era natural que estivesse amamentando o filho. Atrás dela, estava o seu marido. O quadro tinha uma explicação bem plausível, não era uma maneira de fazer escândalo no seio de um país católico.
O público se acalmou, mas até hoje o quadro causa um misto de fascínio e de repulsa. Observamos Magdalena Ventura, e a vasta barba e a careca nos levam a concluir que ela é um homem amamentando o seu filho, mas o realmente fascinante no quadro é o duplo formado pelo casal idêntico, que conseguiu insinuar tanto uma revisão da forma com que se observava a mulher na sociedade de então como também insinua uma relação homossexual. Eis o próprio conceito de cultura: usar a força centrípeta da sociedade contra ela mesmo — e demoli-la de dentro para fora.
Sempre lutamos pela cultura e, ainda assim, ela está sob ataque cerrado desde que os donos do poder reconheceram o seu potencial danoso de modificar a realidade. No entanto, não é necessário se acovardar ou desistir. Estamos muito bem acompanhados nesse front de batalha, não tanto pelos outros que compartilham do nosso tempo de vida, mas por aqueles que vieram e os outros que ainda virão. Caem os soldados, mas a guerra nunca para.
Ao melhor estilo do discurso de Churchill para insuflar os ingleses na Segunda Guerra Mundial, devemos defender a nossa terra, não interessa qual seja o custo; devemos lutar nos celeiros, nos campos, nas ruas das cidades, e nunca vamos nos render. Precisamos pegar o exemplo de John Ruskin, o crítico de arte inglês que primeiro viu o valor artístico dos pré-rafaelitas. Em 1864, ele foi convidado a palestrar na pequena localidade de Rusholme, localizada perto de Manchester. Entre tantos assuntos que poderia escolher, decidiu fazer o discurso chamado “Of Kings’ Treasuries”, com o objetivo de convencer os moradores do local a construir uma biblioteca pública. A plateia era formada por não mais do que quarenta pessoas.
Era uma intenção nobre, e as palavras de Ruskin no início falam da importância de uma biblioteca pública, mesmo modesta, não tanto para os indivíduos quanto para a própria moral do país. No entanto, em determinado momento, o crítico perdeu o controle e investiu contra a mentalidade farisaica da época, tudo em defesa da cultura e da arte.
Infelizmente para vocês, as traduções de “Of King’s Treasuries” nesse texto são minhas, e feitas do original. Após atacar as pessoas de Rusholme que “desprezavam a Ciência, desprezavam a Natureza e desprezavam a Arte”, Ruskin colocou o dedo direto na ferida: “Os senhores desprezam a Arte! ‘Como?’, decerto retrucarão. ‘Não temos exposições de arte com milhas de extensão? Não pagamos milhares de libras por simples pinturas? Não temos mais escolas e instituições de Arte do que jamais qualquer nação já teve?’ Sim, é verdade, mas os senhores fazem isso por causa do comércio. Os senhores seriam contentes em vender quadros assim como vendem carvão, e porcelana como se fosse ferro; os senhores tirariam o pão da boca de todas as nações, se pudessem; como não podem, seu ideal de vida é postar-se nas avenidas, como se fossem aprendizes de Ludgate, e berrar para todos os passantes? ‘O que lhes falta? Nós vendemos!’.”
Ao final da palestra, John Ruskin disse que os cidadãos influentes de Rusholme eram moralmente analfabetos, pois desprezavam a compaixão e não se importavam com os seus semelhantes, e isso somente uma biblioteca poderia mudar. No meio da sua argumentação em defesa da biblioteca, uma frase memorável: “Está nas vossas mãos ver, em uma poça de água, a lama do fundo ou o reflexo da imagem do céu ao alto.” A biblioteca pública de Rusholme perdura até os dias atuais; um homem — e uma palestra — podem fazer diferença, mesmo que suas palavras sejam ofensivas e cruéis.
Comecei esse texto dizendo que a cultura está sob ataque, mas foi uma visão otimista. Na realidade, a cultura está em guerra. Como sempre esteve. Cabe a cada um de nós esquecer a lama que está no fundo de tudo e mostrar que não somos músicas vazias de sentido, mas as estrelas do firmamento refletidos na superfície mansa da poça. Então, bem vindos à guerra que nunca acaba.
Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.