Fácil de gostar,

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
3 min readSep 24, 2015

difícil de fazer

“Lua de larvas”, de Sally Gardner, é tão fácil de gostar que, parece, qualquer um poderia ter escrito.

Por Gustavo Machado

André Feltes

Leio muito menos do que deveria, menos ainda do que gostaria. Sou um leitor nota quatro. Pareço só preguiçoso, mas o caso deve ser mais grave. Faço força e acolhero as letras com o vagar de um autêntico miolo-mole, fato agravado pela minha combinação de astigmatismo, miopia e, mais recentemente, presbiopia. Mesmo assim, estou derrubando rapidamente as trezentas páginas de “Lua de larvas”, da inglesa Sally Gardner. Deve ser porque se trata de uma leitura fácil, infanto-juvenil. Certo? Não. Errado.

Só os idiotas em estado bruto leem fascinados os chamados livros fáceis. Não chego a estar nesta categoria que, para o bem do universo, é seleta. No meu coração de origem lusitana arde discretamente uma esperança: excetuados os idiotas convictos, a humanidade teima em se deslumbrar mesmo é com grandes obras de arte. Não importa se forem “fáceis” ou “elaboradas”. É o caso do livro de Sally, que custei a abrir por puro preconceito. Fácil ou não, é um grande livro.

A autora já vendeu mais de dois milhões de livros só no Reino Unido. Na questão temática, tem pouquíssimo a ver com a saga fantasiosa de J. K. Rowling, nem com as comédias dramáticas de Nick Hornby, pra ficarmos em outros dois ingleses bons de venda e taxados pela crítica culta como “fáceis” ou artisticamente menores.

Em comum, Sally e seus conterrâneos têm um conjunto de elementos estéticos e apelos de identificação que funcionam como ímãs para o grande público, em especial os jovens e os muito jovens. De algum modo são fáceis, sim. E uma outra coisa: eles são bons. Tremendamente bons.

Sílvio Ávila

O livro de Sally é um sombrio convite à reflexão. O projeto gráfico arejado, com fontes enormes e geniais bicos-de-pena iluminando as páginas sugere um livro infanto-juvenil. Mas não é. Não no sentido convencional desta definição. Embora dispense trechos de violência explícita, é uma trama brutal, de revoltar estômagos mais sensíveis e traz referências históricas importantes para traçar um futuro distópico que ninguém quer, mas para o qual caminhamos.

“Lua de larvas” tem a simplicidade de F. Scott Fitzgerald em “Suave é a noite”, ou de William Golding em “Senhor das moscas”, ou de Dino Buzzati em “O deserto dos tártaros”. Como uma obra de arte autêntica, é fácil de gostar. Tão fácil que, parece, qualquer um poderia ter escrito. E quantos conseguem esta espontaneidade magistral? Quantos conseguem encantar e prender com a clareza de uma foto de paisagem? Poucos. Sally conseguiu.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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