Fica comigo

Gustavo Machado

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readApr 1, 2016

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Fotos de Clau Jares, de Be Sexy, My Sexy, Im Sexy.

Lá no pé do morro passa um rio nervoso. Espero que a gente não caia dentro dele, eu penso comigo mesmo. A neblina está tão forte que já não sei por onde ando. Mas deve ser o ápice da subida porque o motor começa a perder força, perder força, perder força. Reduzo a marcha, piso fundo; não adianta. Dentro do capô, barulho de ferro contra ferro. Alguma coisa guincha como um animal cansado. Correia dentada? Talvez devesse sentir pena do carro, mas não sinto. Piso fundo até o acelerador encostar no tapete. O ruído aumenta e um forte cheiro de queimado se espalha pelo requintado interior do carro.

“A gente chegou?”, pergunta a mulher que dorme no banco de trás, logo que vou para o acostamento e aciono o freio-de-mão.

Explico que ainda não. Minto que parei pra descansar.

“Falta muito?”, ela quer saber, bocejando entre o falta e o muito. Respondo que não e digo que vou descer pra fumar um cigarro e espichar as pernas.

“Posso fumar também?”, ela pergunta, já começando a vestir o casaco de pele sintética. Falo que é melhor não, que o chefe não gosta de mulher com cheiro de cigarro.

“O chefe, o chefe… Deve ser mais uma bicha enrustida”, ela rosna, com uma gargalhada triste. Então volta a se acomodar no banco traseiro em posição fetal.

Por que será que todas elas precisam rir deste mesmo jeito, eu penso comigo mesmo, já do lado de fora, enquanto acendo um cigarro e me encosto na porta gelada do carro. Ela é a quinta mulher que levo até a casa que o chefe tem na Serra. A quinta só nesta semana. Que será que deu no chefe?, pergunto-me novamente, pensando que, antes, eu as levava mas depois trazia de volta, quase sempre meio desfiguradas, mas trazia de volta. Agora, nessas últimas vezes…

“Quanto tempo eu vou ficar lá? A noite toda? Você que vai me trazer de volta?”, falou a mulher, abrindo uma fresta da janela.

“Você fala muito”, eu digo a ela, mandando que fechasse o vidro.

Pego meu celular. Vou ligar pro chefe e dizer o que houve com o carro e perguntar o que faço, se ele vai mandar alguém me buscar, se quer buscar só a garota e prefere que eu fique esperando o carro do seguro. Preciso de orientação. Então, por algum motivo, talvez como desculpa pra ganhar tempo e fumar mais um cigarro, começo a futricar na minha galeria de fotos e vejo as quatro meninas anteriores e mais esta, a rabugenta que me espera no carro. Todas lindas, todas desejáveis a seu jeito, todas sem ter a menor ideia do que ia lhes acontecer. Daí me acomete uma sensação muito esquisita e começo a suar frio, o coração disparado, as mãos tremendo. Não sou assim, não ligo, é trabalho, tento dizer a mim mesmo, mas não consigo. Então, em vez de ligar pro chefe eu ligo para o serviço de emergência do seguro categoria máster, que me garante: em vinte minutos o carro do chefe será rebocado e eu terei um carro reserva pra seguir viagem. Volto para o carro. Já sei o que devo fazer.

“Vamos trocar de carro. E não faça perguntas”, eu anuncio.

A menina está acordada e me pede desculpas por ser ranzinza. Ela passa para o banco da frente e, mal se acomoda, põe a mão na minha coxa me dá um beijo na ponta do nariz. Sinto que as minhas calças ficam apertadas e quentes. Sempre fui muito sensível ao toque feminino, penso comigo mesmo.

“Eu sempre quis ter um cara trabalhador. Mesmo que fosse pobre”, ela me fala, encostando a cabeça no meu ombro.

“Só que eu não sou pobre nem trabalhador”, explico a ela.

“É, eu sei. Nem só motorista, né?”

“Nem só motorista.”

“Você tem muito muito muito que me levar pra esse outro cara?”

“Muito.”

“Fica comigo. Não quer me roubar pra você?”

Os vinte minutos não chegaram a quinze. Vejo os faróis do caminhão do socorro que está chegando com o carro reserva na traseira.

“Fica?”, ela pergunta de novo, agora me beijando na boca. Um beijo com gosto do chiclete de canela que ela mastiga.

Mando que ela desça. Faço o mesmo. Falo com os caras do seguro. Antes de entrarmos no carro reserva, jogo meu celular na direção do rio que passa lá no pé do morro. Espero que tenha acertado em cheio.

Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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