Foto de Clau Jares

I — Vida nova

Editora Dublinense
Coleção Dublinense

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Por Gustavo Machado

Nunca entendi como Clara, uma mulher daquelas, tão linda, tão tudo, tinha casado com um caco velho feito Dr. Henry. Verdade que ele era médico, famoso e rico. Bem rico. Mas ela também, rica de família. Podre de rica. Quando casaram, ela recém tinha entrado na casa dos trinta anos e ele já era quase setentão. Pra mim, que também estava na casa dos trinta, setenta anos ou cento e dez era a mesma coisa. Entrei na vida deles com aquele casamento ainda fresco. Foi minha madrinha, uma santa mulher que me criou como filho depois que Jesus chamou minha mãe e meu pai foi preso, que me arrumou trabalho com Dr. Henry logo que terminei de pagar a dívida que eu tinha com a sociedade. Que nem meu pai, só que o velho pagou a dívida e em seguida voltou pra cadeia, onde acabou morrendo, quem diria, quem diria, de uma infecção respiratória. As condições em que vivem os presos são extremamente fodidas, só dizendo assim. Pobre de quem tem uma dívida a pagar com a sociedade, pagar uma dívida com a sociedade, pagar uma dívida. Era assim que eu devia repetir comigo mesmo e falar aos outros, se fosse o caso, ao me referir ao meu problema: nada de cadeia, prisão, condenação; era uma dívida que eu tinha com a sociedade. Paguei, fim de papo, vida nova. E minha vida nova (como disse, graças à minha madrinha) começou em grande estilo, vestindo um terno preto e dirigindo um Jaguar azul marinho que estalava de tão novo. Um trabalho perfeito pra mim. Antes do meu problema, eu tinha sido mecânico, vendedor de carros usados e piloto de racha. Então, dirigia bem e entendia, modéstia à parte, de qualquer coisa que tivesse motor. Casualmente, não gostava muito de conversar, o que era uma felicidade para o Dr. Henry, que gostava de fazer seus deslocamentos ouvindo música clássica, muito concentrado. Qualquer um com um carro daqueles pode comer um mulher como dona Clara, eu pensava comigo mesmo. Mas tinha vergonha até de pensar numa coisa dessas, porque Dr. Henry me tratava como um filho. Um filho que ainda ganhava salário e os ternos que tinham ficado grandes pra ele, que era um velho cada vez mais mirrado. Minha madrinha ajustava e, quando eu não estava vestindo meu terno preto do uniforme de motorista, usava as roupas finíssimas com que Dr. Henry me presenteava. Era tão bom comigo que consertou ele mesmo, na sua clínica de primeiro mundo, aqueles amassados que eu tinha nas maçãs do rosto, amassados que arrumei depois de levar uma surra de outros cinco homens que também pagavam suas dívidas com a sociedade, tempos atrás. Depois da surra, fui deixado numa solitária todo arrebentado. Eles tinham quebrado alguma coisa na minha cara, não precisava ser um grande médico como Dr. Henry pra saber. Sempre que pensava nesse período, lembrava da sensação arrepiante de passar a ponta da língua no céu da boca e sentir pedaços de ossos que tinham se deslocado da minha caveira, pareciam dentinhos em miniatura nascendo no lugar errado. Os dois lados do meu rosto tinham ficado afundados e perdi um canino e um incisivo; Dr. Henry cuidou de tudo isso. Devia gostar muito da minha madrinha, bem mais nova que ele, mas nem de perto tão mais nova quanto a sua mulher suculenta, Clara. Clara é nome de mulher bonita, vai dizer? Um dia, quando me ligaram da clínica médica dizendo que Dr. Henry queria que eu me apresentasse para atender a dona Clara, tive um lampejo, desconfiei que as coisas logo iriam tomar o caminho errado. E tomaram.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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