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III — As notas de coração

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
5 min readApr 22, 2016

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Por Gustavo Machado

Ajudei dona Clara a descarregar as coisas quando chegamos à casa avermelhada da Serra. Ajudei, não. Fiz tudo sozinho. Descarreguei enquanto ela falava bem baixinho no telefone, andando pelo taboão bem encerado da sala, de um jeito gozado, como se seus joelhos fossem de mola, e passando o dedo nos móveis rústicos pra ver se não tinham pó. Devia estar dizendo ao Dr. Henry que só voltaríamos no dia seguinte porque tinha medo de viajar à noite com um tempo daqueles. Terminei de ajeitar as caixas antes que ela concluísse o telefonema. Fiquei espiando a decoração e ela, falando mais um pouco. A casa era muito aconchegante, não se parecia em nada com aquelas casas de revista, casas de gente metida a besta. Emergentes, golpistas, corruptos em ascensão. Dr. Henry era um sujeito fino, sabia das coisas. Só não gostei de uma cabeça de cervo fixada acima da lareira. Não me dava medo, nem nojo. Mas forçava a presença da morte naquele lugar tão bonito. É pra isso que serve a caça, me contava Dr. Henry, que gostava muito de caçar e já tinha feito uma porção de safáris: a morte da caça serve para nos lembrar de como é difícil a sobrevivência e do quão frágil e finita é toda forma de vida. Ele falava bem, o sacana, falava com o coração e com a cabeça ao mesmo tempo. Então, agora, eu estava vidrado nos olhos negros do bicho, provavelmente olhos de vidro, quando senti que dona Clara estava parada às minhas costas. Tão perto que a sua respiração me arrepiava a nuca. Ela tinha um cheiro bom. Como tinha! Um cheiro muito bom. Que cheiro era aquele? Não, não era só do perfume, dos cremes, dos sabonetes de mulher rica. Tá muito frio aqui, ela disse, quando eu me virei. E foi só eu me virar pra ter certeza: aquela alguma coisa tensa que crescia entre nós estava tomando corpo e se alguém tentasse agarrar com as mãos ou cortar com uma faca provavelmente conseguiria. Na garagem tem lenha cortada, ela disse, talvez pensando na mesma coisa que eu; apanhe uma braçada e acenda o fogo. Você sabe fazer fogo? Não respondi pra ela, mas pobre sabe fazer qualquer coisa que precise de trabalho braçal. E, embora a minha vida já tivesse melhorado muito, eu ainda me sentia um homem pobre. Um homem pobre nunca deixa de sê-lo, li, uma vez, na parede do banheiro de um bar. Estou congelando, disse dona Clara. Enquanto você acende a lareira eu vou tomar uma ducha fervendo e fazer um chocolate quente. Você gosta de chocolate quente? Gosto, eu disse, saindo em direção à garagem, meio encabulado. Segui um corredor estreito e gelado, depois desci dois lances de escada, passando, no caminho, por paredes forradas com garrafas de vinho. Esses putos sabem como viver, pensei comigo mesmo. Acendi as luzes usando o interruptor que havia no final da escada. Enxerguei a lenha e fui até lá. Mal comecei a compor a braçada de achas e uma aranha marrom, corpo diminuto e longas pernas fininhas, fugiu pela parede de pedras nuas. Sumiu numa rachadura fina que ficava quase no teto. Numa prateleira, encontrei jornal velho e um pote cilíndrico com pastilhas rosadas de álcool gel que serviam pra que o fogo pegasse mais depressa sem fazer tanta fumaça. Voltei pra dentro com minha carga. Agachei-me ante a lareira, abri a grade de proteção, armei a estrutura da fogueira e acendi as pastinhas que havia acomodado entre as bolotas de jornal. Em seguida um fogo intenso, sanguíneo, estava ardendo. Olhei para o lado e, no espelho enorme que havia na parede, vi meu próprio rosto crepitando em amarelo, laranja e vermelho. Minhas pupilas eram bijuterias lustrosas. Voltei o rosto pra cima e fitei mais uma vez os olhos envidraçados do cervo. Estavam ainda mais negros. Tá pronto, disse dona Clara, me alcançando uma caneca com chocolate fumegante e se acomodando ao meu lado. Ela vestia um agasalho de ginástica e tinha uma toalha enrolada na cabeça como se fosse um turbante. E aquele cheiro bom que ela tinha estava ainda mais forte. Forte como o fogo que nos avermelhava. E quanto mais se misturava aos bons odores do chocolate, da lenha, da madeira da casa, dos pinheiros da rua, do limo que havia entre as lajotas do trilho para os carros, mais intoxicante ficava. Você tá sangrando, disse dona Clara, segurando a minha mão. E só então notei que uma felpa grossa estava cravada na ponta do meu indicador. Tentei espremer. Não!, seu bruto, disse-me dona Clara. Assim você quebra a pontinha e daí a felpa não sai nunca mais. Tem que ser com o dente, assim. A partir daquele momento, as coisas começaram a andar em câmera lenta. Ela levou meu dedo aos próprios lábios e, com uns dentes surpreendentemente hábeis, arrancou a farpa de madeira num único movimento. Dona clara sorriu e olhou pra parte das minhas calças que estavam ficando apertadas, acho que de novo. Jogou a cabeça pra trás, meio teatral. Você me acha bonita? Não respondi. Não conseguia. Gosta de mim? Pelo menos um pouquinho?, ela insistiu, passando a mão muito, muito, muito perfumada no meu rosto que, àquela hora, já precisava ser barbeado. Eu gostou muito do seu cheiro, dona Clara. Uma das mãos de dona Clara continuou acariciando meu rosto, enquanto a outra passeava tentando abrir-me o cinto, depois desfazendo o nó da gravata que já tinha sido do Dr. Henry. Falei pra ela de todas as coisas que eu percebia contidas naquele cheiro tão corporificado que podia ser mordido. Dona Clara gargalhou baixinho, se é que isso existe, e me explicou, já abrindo a minha camisa, que o perfume que ela usava era azulado porque tinha, entre as notas de coração, umas discretas gotas de violeta, mas que ficava adocicado pela fragrâncias coadjuvantes de figo e baunilha, mas que provavelmente o que me intoxicava era um corte de terra, ou de pedra quente recém molhada pela chuva, que envolvia o conjunto da fragrância. Acho que não, eu falei. Não? Não, eu disse, tirando o turbante-toalha dela, acho que eu gosto é de alguma coisa que vem do lado de dentro da pele e se mistura com essas coisas todas. A respiração dela ficou sonora, como se estivesse ressonando só que acordada. Eu também gosto do seu cheiro, sabia?, ela me disse, mordendo a ponta do meu queixo. E qual é a minha nota de coração? Eu sou a sua nota de coração, ela falou, com a voz de uma pessoa febril. Quando nos esticamos e nos misturamos, num elástico jogo de pernas e braços, já sem as nossas roupas, o tapete de lã crua já estava aquecido pelo fogo alto da lareira. A última coisa que vi, antes do transe, foram os olhos vítreos da cabeça de cervo que teimavam em testemunhar nosso caminhar para além do ponto sem volta.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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