Foto de Heloisa da Costa Medeiros

IX — Um grande salto

Gustavo Machado

Editora Dublinense
4 min readJun 3, 2016

--

Se você quiser se sentir um fodido no meio de uma vida injusta, visite um shopping center de grã-finos no meio da tarde, no meio da semana, no meio de uma crise econômica. Sempre tem um monte de gente à toa. Bem-nascidos, sortudos, ricaços, dondocas, aposentados da Justiça, os donos do dinheiro que nos falta a nós, os fodidos.

Naquela tarde, enquanto matava tempo esperando que Clara fizesse sua sessão de massagem, decidi não ficar no estacionamento e fui esticar as pernas olhando vitrines. Comprei um café duplo pra viagem e saí com meu copinho de isopor perambulando pelos corredores largos, bem ventilados e aromatizados. Maravilhei-me com a temperatura e com a iluminação agradáveis. Apesar de pobre, eu já me habituara àquele ambiente. Quem não se ambientaria às coisas boas da vida? Mesmo assim, ainda me impressionavam os preços, o dinheirão que as pessoas se animavam a pagar, por exemplo, por um liquidificador com jeito de coisa antiquada, uma panela com nome francês, um creme antirrugas pra ser usado a partir dos quinze anos de idade ou uma camiseta feita de algodão orgânico e plástico reciclado.

Umas quantas mulheres me olharam com uns olhares sacanas porque imaginavam que eu era um desocupado rico feito elas: mesmo com a minha cara de suburbano, eu usava óculos escuros discretos, trajava as roupas antigas do Dr. Henry e, afinal, estava ali às quatro da tarde com meu cafezinho ambulante; aquele conjunto me garantia um passaporte para aquele paraíso do esbanjamento.

Desci até uma saída secundária pra fumar um cigarro e, antes que as portas automáticas se abrissem, enxerguei, lá na rua, Clara desembarcando de um carrinho vermelho surrado. Ela estava com a perna direita já pisando no asfalto do estacionamento, quando o fortão sentado no banco do motorista a puxou de volta. Deu pra ver que eles se beijaram com sede. Ou com fome. Ou de um jeito impróprio a quem se beija em público. Anotei a placa do carro num recibo que eu tinha no bolso. Marquei bem a cara do sujeito e voltei ao sétimo andar da garagem, onde o Jaguar me esperava.

Foto de Rubina Vock

Clara não demorou muito. Acomodou-se no banco traseiro, parecendo de mau humor. Cheirava a cigarro e, como estava se tornando habitual, uísque. Acendeu a luz interna pra retocar a maquiagem e percebi, pelo retrovisor, que seu lábio inferior estava cortado, bem no centro, e sangrando de leve. Merda!, ela falou, passando a língua no corte. Que é que houve?, eu quis saber, torcendo o corpo e o pescoço pra trás. O banco de couro rangeu, Clara não falou nada. Não vai me dizer?, eu insisti. Não é da sua conta, ela rosnou. Depois fez uma careta e começou a chorar, encostando a testa na janela. Me tira daqui, vai! Anda! Acionei o motor e logo o Jaguar deslizou quase mudo pelo pavimento liso e reluzente da garagem. Onde você quer ir?, eu perguntei, percebendo que Clara ficava bem menos encantadora chorando. Sua essência pobretona, sem categoria, vinha à tona sem qualquer disfarce no grotesco daquelas suas feições desalinhadas por gerações e gerações de impureza.

Nos últimos dias, Dr. Henry havia me explicado por que os pobres eram feios e tinham essa cara que a gente, com acerto, classifica como cara de pobre. Era o desastre do acúmulo daqueles cruzamentos entre favelados subnutridos, com cabelo ruim e maus dentes. Dr. Henry disse que, após eu fazer o que ele precisava que eu fizesse, ia dar um jeito pra que eu perdesse de vez aquelas feições que me denunciavam. Depois me mandaria com uma identidade nova pra Europa. Tinha falado o nome de uma cidade específica num determinado país, mas naquela tarde, enquanto me dirigia com Clara até a minha casa, eu não lembrava. Tá longe?, Clara quis saber, a voz entristecida. Perto, respondi.

Nesta cidade europeia, eu nunca mais precisaria trabalhar, porque ele ia cuidar disso também, e deixaria tudo arrumado mesmo que o câncer já o tivesse levado. Mas, pra não chamar a atenção, eu seria gerente no restaurante familiar de um amigo dele. Minha tia teria orgulho de mim: de presidiário a gerente de restaurante na Europa. Um grande salto. Um grande salto, eu repeti, dessa vez em voz alta. Como é que é?, Clara perguntou, limpando a coriza no punho da blusa. É um grande salto você ter vontade de visitar a minha casa, eu falei, tentando ser simpático. Não dou a mínima pra sua casa. Quero que você me distraia um pouco daquele jeito que você sabe que eu gosto, ela disse, com desdém, como se estivesse enjoada. Já estamos chegando, eu falei. E pisei fundo porque me deu uma vontade danada de fazer o tempo passar mais rápido. Meus dias nesse lugar medonho estavam no fim.

Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

--

--

Editora Dublinense

A Editora Dublinense é um projeto editorial eternamente em construção. Organizada em três selos: Dublinense, Não Editora e Terceiro Selo.