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Lições que a literatura me ensinou na última semana

Gustavo Melo Czekster

Coleção Dublinense
12 min readOct 31, 2016

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No passado, no Programa do Silvio Santos — que durava todo o domingo, das 10 da manhã às 22 horas — existia um intermezzo chamado de “A Semana”. Era um breve noticiário apresentando de forma ligeira os fatos mais importantes no país e no mundo. Creio que durava um minuto, no máximo cinco. Se bem me lembro, era uma peça de propaganda do governo, e sempre me maravilhava como podia caber tanta coisa em uma semana tão parada como a minha.

Mas, nesta última semana que, no entremeio das minhas leituras, aprendi com T. S. Eliot que tentar destruir Montaigne é tão inútil quanto jogar uma granada no meio de uma neblina, também tive uma série de experiências ligadas à literatura, muito mais interessantes do que discutir prêmios Nobel ou falar mal de livros alheios por esporte. Literatura é vida, está por todos os lados, e livros são pálidos espectros deste longo cadinho de histórias em que estamos chafurdando.

I — Viver para ser o último texto de alguém
Quis o destino que um texto meu virasse o último que uma pessoa leu em vida. Não entrarei em detalhes particulares, somente no conteúdo narrado: um leitor pegou texto que escrevi e levou para o seu pai hospitalizado. O homem passaria por uma cirurgia, mas estava alegre e confiante. Leu o texto, comentou algumas passagens e riu de outras. Poucas horas depois, foi para sala de cirurgia, da qual não saiu com vida. Não era para ele ter morrido, não havia nenhum indicativo de que isso aconteceria, a cirurgia era rotineira. No entanto, uma conjunção de fatores levou a tal resultado; a morte não respeita a lógica e muito menos a decência. Apesar de triste, o leitor entrou em contato para agradecer pelo que escrevi e dizer que a última recordação do pai seria das suas risadas ao ler minhas palavras.

Tive sensações díspares ao escutar este depoimento. Em primeiro lugar, me senti culpado, pois não lembrava o texto que tinha escrito. Foi como qualquer outro: feito em meio às rotinas do dia, com gosto de café e atormentado pela sensação de não ter escrito aquilo que desejava. Contudo, em momento posterior, senti uma estranha honra por participar de memória tão definitiva: o leitor podia ter escolhido Paulo Coelho, Martha Medeiros, Dickens, Cervantes, tanta gente, mas não, coube ao meu modesto texto a honra de ser o último nesta corrida de revezamento, fui eu — e não outro — quem atravessou a linha de chegada segurando a mão do pai do leitor. Eu sou humano, e humanos possuem vaidades.

Tais impressões foram eclipsadas e o terror surgiu quando percebi a gigantesca responsabilidade que é escrever um texto. Palavras têm poder, disse Neil Gaiman, e textos são um conjunto de palavras. Na sua acepção clássica, texto significa “tecido”, ou seja, uma delicada junção de ideias, palavras, sons e seres humanos em busca da criação de algo. Textos não são leves, divertidos, amigáveis; são entidades cruéis que se apossam de almas alheias e podem elevá-las ou destruí-las.

Não foram poucas as vezes que vi escritores fazendo textos como quem amarra sapatos ou escova os dentes. Também não foram poucos que me contaram ter escrito algo sem muita vontade de escrever, só para marcar presença ou para ter status. Entretanto, os verdadeiros escritores que conheço não são aqueles que publicam livros, mas os que se torturam pelo seu comprometimento com o texto. Pois, no final do dia, isso é o que fica: escrever é comprometer-se. Cada texto pode ser o último de alguém, autor ou leitor. É necessário ter responsabilidade com aquilo que se escreve.

Gustave Flaubert era uma pessoa atormentada pelo o que escrevia. “Madame Bovary” bateu nele até cansar. Nas suas cartas, Flaubert comenta noites a fio que passou acordado, girando na cama, pensando exaustivamente em um determinado parágrafo ou uma passagem que parecia frágil. Admite também ter chorado muitas vezes por imaginar insolúvel alguma frase de “Madame Bovary” e ter realizado longas caminhadas tentando resolver seus dilemas ficcionais como se a sua vida dependesse disso. Flaubert estava comprometido com um ideal estético de perfeição, mas seu amor maior era ao texto e à sua responsabilidade como autor.

Nos tempos atuais, existe a impressão de que texto comprometido é aquele que serve a uma causa ou denuncia alguma situação, mas é uma visão primária. Todo texto possui um grau de comprometimento. Não imagino alguém se sentando para escrever algo sem estar ligado a uma visão de mundo, ainda que ela seja tão mínima quanto ganhar dinheiro, defender uma posição política ou apregoar uma religião (necessidades financeiras, políticas e religiões passam, o texto continua).

Em uma sociedade que escreve cada vez mais, seja no Facebook, no Twitter, no mundo acadêmico ou outro lugar, é imprescindível pensar na responsabilidade dos nossos textos. Eles podem salvar, mas também podem matar, trazer sofrimento, destruir. Nunca saberemos quem irá lê-lo e qual momento irá escolher para realizar tal ato. Podemos ser a pedra que derrubará alguém em um precipício moral e psíquico, e isso vale para qualquer “textão” (um aumentativo estranho, textos não são maiores ou menores, eles são do jeito que precisam ser).

Eu teria mudado algo que escrevi se soubesse que seriam as últimas palavras lidas por alguém? Provavelmente não. Contudo, não gostaria que o último livro que lerei durante a minha vida seja uma prosa estéril, vaidosa, sem nada que me acrescente. Quero que ela seja espetacular. Quero chegar ao outro lado da existência contando para todos o livro maravilhoso que li, e talvez resenhá-lo para os anjos ou demônios. Quero que ele seja o mais importante de todos, pois vai encerrar a minha longa carreira de leitor.

Estava falando de literatura, mas também gostaria que a última pessoa que eu encontrasse na vida me deixasse bem. Não quero morrer pensando nos dramas de algum ator de novela que não conheço ou com os ouvidos repercutindo planilhas econômicas. O mundo seria um lugar bem mais interessante se, ao invés de nos matarmos por causas ou por ideias, sejamos somente comprometidos a ser o melhor livro que uma pessoa irá ler na sua passagem pela Terra.

II — O importante é começar bem
Não existem começos bonitos, só na literatura. Quem veio ao mundo — e acredito que vocês, leitores, passaram por esta experiência uma única vez na vida — sabe que nascemos de forma atabalhoada, sem entender muito bem onde estão pés e mãos, imersos em sangue e com várias pessoas contemplando a nossa nudez, nos apertando, dando tapas e enchendo o mundo de luz. Não é à toa que nascemos chorando — como podemos rir neste cenário?

Começar um livro é uma arte e, como toda experiência artística, necessita prática e árduo esforço para fazer o difícil soar fácil. Li em uma reportagem que, entre os livros ficcionais mais vendidos na história do mundo, o primeiro lugar, com estratosféricos 200 milhões de cópias, é “Um conto de duas cidades”, do Charles Dickens. Também é um dos meus inícios favoritos de romance, uma locomotiva a impulsionar o leitor para o restante da história:

“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário — em suma, o período era em tal medida semelhante ao presente que algumas de suas mais ruidosas autoridades insistiram em seu recebimento, para o bem ou para o mal, apenas no grau superlativo de comparação.”

É um início que funciona bem em língua portuguesa, e é ainda mais magnífico no original. Pela sua qualidade, não impressiona que tantas pessoas tenham lido “Um conto de duas cidades”, do Dickens, e imagino quantos leitores não compraram o livro justamente depois de terem percebido um início tão promissor. Mais inusitado é que, neste simples parágrafo, Dickens tenha descrito toda a Revolução Industrial na Inglaterra, mas fez com tanta vivacidade e brilho que nem parece estar descrevendo aquilo que contou, e sim a época em que estamos vivendo — ou qualquer tempo da História, imerso no mais absoluto caos que somente conseguimos entender em retrospectiva.
Existem muitos começos ótimos. O que marca um começo de livro é a capacidade de situar o leitor desde o início daquilo que lhe espera, mostrar cenário, personagem e narrador. Não tem uma fórmula exata, muito menos uma receita fácil. Alguns livros conseguem inclusive se sustentar sem um bom início, mas são exceções. Assim como na vida, a primeira impressão determina muito do nosso olhar. Ter uma boa apresentação, tratar bem os outros, mostrar os rudimentos de um senso de humor e deixar bem claro quem é desde o início evita muitas das decisões equivocadas que acabamos tomando. Seja em um relacionamento, seja em um livro, os problemas apresentados no começo são os mesmos que continuarão até o final.

Mas um começo de algo também pode ser uma declaração de princípios. Entre os inícios de livros, um que chamou a minha atenção foi o de “A geração da utopia”, de Pepetela:

“Portanto, só os ciclos eram eternos.
(na prova oral de Aptidão à Faculdade de Letras, em Lisboa, o examinador fez uma pergunta ao futuro escritor. Este respondeu hesitantemente, iniciando com um portanto. De onde é o senhor?, perguntou o professor, ao que o escritor respondeu de Angola. Logo vi que não sabia falar português; então desconhece que a palavra portanto só se utiliza como conclusão dum raciocínio? Assim mesmo, para pôr o examinando à vontade. Daí a raiva do autor que jurou um dia havia de escrever um livro iniciando por essa palavra. Promessa cumprida. E depois deste parênteses, revelador de saudável rancor de trinta anos, esconde-se definitiva e prudentemente o autor).”

E é verdade. O autor some depois deste início e a narrativa ficcional volta para o narrador, com quem permanecerá até o final do livro. Interessante o dilema do Pepetela: ele acreditou que poderia começar uma sentença com “portanto”, mas tal palavra se refere a alguma frase anterior, como o professor bem apontou (apesar da grosseria). Ele prometeu provar a sua tese e, ao melhor estilo de Alexandre o Grande cortando o nó górdio, encerrou a questão colocando uma interpolação pessoal no seu livro. Portanto, não se pode mais dizer que não existe uma obra literária que tenha começado com um “portanto”.

Um bom começo é a chave para uma ótima relação com o livro ou com qualquer pessoa. Mas, às vezes, um bom começo também é mostrar a língua para o leitor, pagar promessas e mostrar alguma personalidade. O importante mesmo é começar de algum jeito.

Imagem: salvagente

III — Transformar um ano horrível em limonada
O ano de 1772 começou bem para o Marquês de Sade. Depois de ser processado pela flagelação da mendiga Rose Keller em 1768 e passar um breve período encarcerado, o Marquês de Sade voltou a frequentar os círculos aristocráticos, graças à capacidade de apagar memórias realizada pelo dinheiro da sua esposa. Para a sociedade, ele era probo e devoto, investidor financeiro de paróquias, com patente militar e, como a sua filha acabara de nascer, um exemplar homem de família. Claro que, ao mesmo tempo, as pedras do castelo de La Coste, na Provence, contavam histórias bem mais escabrosas sobre este esteio da sociedade francesa: uma sucessão de orgias nababescas, maus-tratos e gritos que se perdiam na noite.

O Marquês poderia ficar nesta vida dupla para sempre. Contudo, no dia 27 de junho, uma orgia secreta em Marselha escapou do controle. Quatro prostitutas procuraram a polícia com uma denúncia: tinham sido flageladas, espancadas e sodomizadas pelo Marquês de Sade e por seu criado, Latour. Mas o pior da denúncia — e que mais indignou a sociedade — foi um detalhe sórdido. O Marquês convencera as quatro mulheres a comerem bombons de anis contaminados com cantáridas para “fazê-las peidar” e melhorar a relação sexual. No entanto, o excesso do consumo acabara por envenená-las e, por pouco, não as levou à morte.

A Justiça processou o Marquês e seu criado, que apresentaram defesas. No entanto, o crime era tão severo que os dois processados resolveram fugir do país antes da condenação, que acreditavam ser certa. Imaginavam que, se não estivessem mais lá, o processo se encerraria de forma natural.

Contudo, a raiva popular era muito grande. A Justiça precisava ser feita de alguma forma. Foi assim que a Justiça criou a figura do “julgamento por contumácia”, ou julgamento apesar da ausência física dos acusados. Mandaram fazer pinturas do Marquês e do seu criado e prosseguiram com as acusações e xingões como se eles continuassem lá. O julgamento não podia parar.

Nervoso, o Marquês continuou acompanhando o julgamento à distância, inclusive pagando a melhor defesa possível para a sua pintura. Há quem diga que ele tinha se apaixonado pela imagem do seu retrato, mas é mais possível que fosse uma questão de vaidade. O Marquês de Sade não queria perder o julgamento. Mesmo ausente, ele precisava defender o seu nome e seu rosto, apesar de quem estar no banco dos réus ser somente uma imagem.
Não temos conhecimento dos autos do processo, mas depoimentos da época dizem que as pessoas realmente acreditavam estar processando o verdadeiro Marquês de Sade, não um simulacro. Falavam com o quadro como se ele fosse capaz de responder; acusavam-no, insultavam-no, odiavam-no, e a imagem nada respondia. Na Itália, fugindo da lei, o Marquês de Sade recebia notícias do julgamento da sua pintura e se angustiava, pois não adiantava nada responder para as paredes do castelo onde estava residia. As orgias não eram mais tão satisfatórias.

No dia 07 de dezembro, o Marquês de Sade e Latour perderam o processo. Como não estavam presentes, foram condenados à “morte por contumácia”, ou seja, uma morte simbólica. Em uma grande festa popular, as suas pinturas foram levadas até o centro da praça de Marselha, onde se procedeu à “queima das efígies”. As representações dos dois condenados arderam em chamas enquanto a cidade comemorava como se realmente tivesse extirpado o Marquês do mundo.

O Marquês de Sade nunca se recuperou da derrota judicial. Somente sua imagem tinha sido queimada, mas ele mudou. O demônio, que até então tinha se mostrado de forma breve e oculta, revelou-se na sua plenitude sombria aos olhos do mundo. Ele se considerava um morto-vivo e, como toda pessoa que morreu e voltou do mundo dos mortos, nada mais lhe assustava, pois não tinha mais algo a perder. Perseguido pela Justiça, ele continuou realizando orgias em que a morte e a dor andavam lado a lado, sendo encarcerado diversas vezes. Também passou a se dedicar mais à literatura, escrevendo “120 dias de Sodoma”, “Aline e Valcour” e “Os infortúnios da virtude” (este último em incríveis 16 dias).

Quando as pessoas me comentam que 2016 foi um “annus horribilis”, penso no Marquês de Sade e o seu fatídico 1772. O período em que ele se viu odiado, escarnecido, humilhado e, enfim, queimado vivo em praça pública. E ainda precisou assistir tudo sem conseguir se defender. Isto sim que é ter um ano horrível, inclusive para os padrões sádicos. Contudo, ao invés de choramingar, o Marquês pegou a sua raiva e considerou-se libertado dos laços que o ligavam à Humanidade. Transformou a sua chateação em algo produtivo: histórias e livros para infestar o mundo. Ao queimarmos o Marquês, libertamos o demônio, e ele carregava consigo um incômodo espelho.

1772, o ano em que o Marquês de Sade morreu. 1772, o ano em que ele perdeu a pele e assumiu a sua verdadeira natureza de sangue, tinta e terror. O Marquês de Sade nunca mentiu a respeito do que éramos. Tenho a íntima convicção de que o Marquês de Sade foi um dos poucos homens verdadeiros que já pisou no planeta. Os outros não passam de simulacros sorridentes, de imagens sorrindo em uma praça pública enquanto outras pinturas falsas xingam com suas moralidades questionáveis e seus padrões éticos distorcidos.

Portanto — e aqui ele está sendo corretamente empregado, Pepetela — , o que a literatura me ensinou nesta semana é que devo viver cada dia como se estivesse lendo meu último texto e que, se terminar pode ser ruim, um bom começo é também é um auspício de que coisas boas lhe sucederão. E, enquanto todos reclamam das vicissitudes do ano que se aproxima do final, o melhor é seguir o exemplo do Marquês de Sade e começar, enfim, a viver. Muitas vidas cabem dentro de uma única semana quando abrimos os olhos para aquilo que importa.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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