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Logo vou lembrar por quê

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readFeb 19, 2016

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Por Gustavo Machado

Eu sempre furo a fila na hora da dose matinal. Melhor me livrar logo disso, eu penso comigo mesmo, nesta manhã igual a tantas outras que vieram antes, penso comigo mesmo enquanto arrasto as pantufas até a ponta da fila, sem me importar com Jules, até então o primeiro.

Estou na sua frente, sou o primeiro, ele me diz, muito gentil, os olhos verdes muito vidrados de tarja preta injetável. Finjo não entender o que ele diz. Jules repete, um nadinha de nada mais alto, encostando bem de leve no meu ombro. Eu me volto até ele, carrego uma expressão interrogativa e preocupada, aproximo-me até que nossos hálitos de remédio se misturem. Nossa, você está com uma cor estranha, Jules, é o que eu digo a ele. Jules leva as duas mãos magras e brancas ao rosto ossudo. Você acha? Você acha?, ele pergunta, imediatamente ofegante. Ele deixa a fila em busca de um espelho. Logo está gritando pelos médicos, que não dão a menor bola pra ele. Outros pacientes balbuciam pedaços de palavras e risos entrecortados. Jules é hipocondríaco. E esquizofrênico. E um idiota como todos nós ali.

Karl Houtteman

Sou o primeiro da fila, mesmo tendo chegado por último. Gosto se ser o número um porque, quando começa a distribuição das doses matinais, o psiquiatra responsável pela nossa ala ainda não chegou e os enfermeiros estão cagando se vamos engolir as pílulas ou escondê-las embaixo da língua pra cuspir no banheiro ou, mais tarde, trocar por alguma coisa. Começa o trabalho.

Olho para o enfermeiro gordo, lustroso, que me alcança um pequeno copo descartável. Que é que tem aí?, eu pergunto. Ouro em pó, ele me responde, rindo com sua risada de gordo. Um dia eu estrangulo este estúpido, eu penso comigo mesmo, rindo também, como se tivesse achado a piada muito boa, mas na verdade imaginando o som do seu pescoço partindo ao meio. Deve ser muito difícil partir o pescoço deste balofo, eu penso, cessando o riso de repente, como se alguém desligasse um botão. Abro a boca, finjo engolir o coquetel que, na verdade, escondo entre a bochecha e os molares superiores. Como são burros! Bebo água do copo maior, também descartável, que o mesmo homem me entrega. Pronto, posso ir para o banho de sol.

É um dia frio, com céu limpo. Meus dias preferidos são assim, bem frios e bem azuis, eu digo a Ignácio, ao me acomodar no mesmo banco em que ele está sentado. É um daqueles antigos bancos de praça, feitos de cimento, e logo sinto minha bunda congelar. Sua bunda não está congelada, Ignácio? Ignácio não fala nada. Pobre diabo.

Discorro um pouco sobre os benefícios de não tomar a dose matinal. Logo falo sobre um artigo que li numa revista, ou penso ter lido, sem certeza se li mesmo ou se estou imaginando ter lido, entende, Ignácio? Estou falando cada vez mais rápido, tão rápido que nem eu me entendo mais, Deus do céu. Então percebo que Ignácio está absorto em alguma coisa que só ele enxerga nas pontas arredondadas dos seus tênis de lona sem cadarço. Paro, paro tudo. Olho bem pra ele e uso um papel de bala que encontro no chão para limpar a baba espessa que escorre por seu queixo. Ele parece não perceber. Sabe, Ignácio, se mandássemos examinar a quantidade de toxinas alopáticas contidas nessa pequena porção de baba, eu penso, os donos desse lugar seriam presos como criminosos de guerra.

Penso em contar a Ignácio meu plano. Mas, não, não conto, ele não vai entender. Quero contar de que modo venho burlando a dose matinal. Sabe como? Sabe como? E quero mostrar-lhe o jeito ideal de esconder as pílulas com as quais tentam nos envenenar. Enfio o dedo indicador num lado da bochecha. Enfio do outro lado. As pílulas não estão ali. Talvez eu tenha engolido acidentalmente a dose de hoje, penso, disfarçando. Quero contar meu plano de qualquer jeito, mas de repente já não estou certo de quantos dias consegui evitar as doses. E logo não lembro exatamente qual o objetivo de me tornar saudável, lúcido e revigorado. Também não lembro como deveriam se parecer as coisas antes de eu chegar ali, naquele lugar impreciso. Ignácio! Fuja!, eu grito, e meu grito meio que não sai da garganta, como se minha boca tivesse sido costurada.

Karl Houtteman

Sinto que me aplicam tapinhas nas faces. Abro os olhos, assustado. Estão desafivelando as correias dos meus tornozelos e pulsos. Logo que sinto os membros livres, disparo em direção ao corredor. E é um longo corredor, muito longo. Passo por outros homens e mulheres que devem ir para o mesmo lugar. Acho que um deles é Ignácio. Acho que me espia com o canto de um olho, disfarçando. Parecem fantasmas muito lentos. Jules, é você?, eu quase grito. Mas tenho que voar. Vou passando por eles. Arfo, suo, palpito. Todos caminham e eu corro. Pobres diabos. Não sei bem o que nos espera ao fim do caminho, mas quero ser o primeiro da fila. É muito importante para o meu plano. Logo vou lembrar por quê.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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