Mantendo a compostura até o último segundo

Gustavo Melo Czekster

Coleção Dublinense
9 min readDec 14, 2016

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Se existe algo que me encanta é a capacidade invulgar que algumas pessoas possuem de aproveitar o momento certo para dizer ou fazer algo memorável. Não sei se existe uma única palavra em Língua Portuguesa capaz de sintetizar o ato de falar algo inesquecível no instante correto. Sei que os franceses possuem uma expressão para o seu contrário, o “l’esprit de l’escalier” ou “o espírito da escada”, cunhada por Diderot, e que se refere àquela tirada espirituosa que só nos lembramos que poderia ser aplicada em uma situação depois que ela passou. Então, quando estamos descendo a escada, lembramos da frase perfeita que poderíamos ter dito, mas o instante já passou e só nos resta engoli-la em seco. É difícil encontrar alguém que não seja assombrado pelo “espírito da escada”: estamos toda hora perdendo o momento certo de dizer algo, seja para iniciar um relacionamento, seja para apaziguar uma briga. Somos criaturas formadas de instantes errados e de frases esquecidas.

Sempre fui grande admirador do estoicismo, quando não seguidor ocasional de alguns dos seus preceitos e, entre eles, encontra-se a preparação meticulosa de uma frase para ser dita no segundo final da vida. Nunca se sabe quando vamos morrer e, por isso, o ideal é termos uma sentença inesquecível pronta para ser dita e lembrada quando percebemos a inexorabilidade do momento final. Os estóicos afirmam que as emoções levam aos erros de julgamento e, assim, o importante não é o que dizemos, mas como nos comportamos. Dessa maneira, a frase final devia guardar relação direta com as nossas atitudes da vida, não ser uma sentença impactante e vazia de conteúdo.

Pensando nisso, após longa reflexão, cheguei à última frase que pretendo, algum dia, ter a sorte (e o tempo) de dizer. Infelizmente, não é uma criação minha, mas de Frank Miller. Está em “O Cavaleiro das Trevas”: logo na primeira página. Bruce Wayne encontra-se dirigindo um carro de Fórmula Um em chamas. Ele está prestes a atravessar a linha de chegada e o carro queima cada vez mais intensamente. Olha o fim da corrida (da vida?) e pensa: “Seria uma boa morte… mas não o bastante.”

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Não sei dizer o motivo pelo qual essa frase me atrai tanto, mas talvez seja a sua inconformidade. Existe um componente de fleuma, de indiferença: “seria uma boa morte”, ou seja, algo memorável e justo, se entendermos a morte como um juiz que sopesa lados de uma balança fraudada. Então, vem o complemento “mas não o bastante”, pois não existe morte boa o suficiente para ninguém, sempre pode existir uma melhor — se possível, a próxima.

O detalhe mais significativo, ao menos para mim, é a presença marota das reticências separando a oração principal do seu complemento. Isso me permite ver a proximidade do perigo e pensar — ou dizer, e peço perdão para os meus amigos que se assustaram nas poucas vezes em que, por cautela, eu disse “seria uma boa morte” quando estávamos em alguma situação de risco — a frase, mas, tão logo o problema passa, eu posso mentalmente complementar “mas não o bastante”, pois não foi dessa vez.

Ter uma frase final a tiracolo me permite aproveitar melhor os momentos que acontecem antes de chegar o momento da sua enunciação. Dá certa tranquilidade saber que esse detalhe já foi planejado. Não considero uma trapaça. Acho difícil que as frases memoráveis pensadas por escritores nos últimos momentos não tenham sido objeto de uma reflexão estilística. Duvido muito que Emily Dickinson tenha sido capaz de criar, de improviso, a última frase que é praticamente um poema de tão linda: “Eu devo ir, o nevoeiro está aumentando”. Por outro lado, acredito que James Joyce tenha dito como última frase “Será que ninguém entende?”, o que acabou criando um paralelo interessante com a sua obra. Também tenho certeza de que Henry David Thoreau falou “Alce… indiano” como frase derradeira no leito de morte, pois parece o tipo de dúvida razoável que nos ocorre às vezes: “existem alces indianos?”. Também soa como o tema de uma ótima história.

Existem escritores que transformaram o último momento não só em algo digno, mas inesquecível. É o caso de Anton Tchekhov. De acordo com Máximo Górki, quando o contista e dramaturgo russo estava enfraquecido na cama em julho de 1904, ele sentiu a morte se aproximar. Virou-se para o médico e disse calmamente “Ich sterbe” (“Estou morrendo”). Recusou o oxigênio que queriam colocar sobre o seu nariz e apontou para uma garrafa de champanhe. Tomou uma taça e afirmou “faz muito tempo que não bebo champanhe”. A seguir, virou-se na cama e morreu em paz. Tchekhov pode não ter preparado uma última frase impactante, mas enfrentou a chegada da morte com galhardia, sabendo que ela era inevitável e deixando para usufruir uma última sensação boa antes do fim.

Existe fleuma em saber como se comportar diante daquilo que não podemos evitar. Não raro, algumas pessoas descambam para o humor, que ainda é a melhor maneira de aceitarmos o que vai acontecer. Joseph Brodsky conta uma ótima história sobre alguém que brincou diante da morte. No final da Segunda Guerra Mundial, um grupo de ex-colaboradores das forças de ocupação alemãs foi capturado pelas tropas russas. Entre eles, estava um judeu de nome Guerwicz ou Ginzburg, o único a ser condenado à morte. Na manhã de sua execução, ele foi tirado de sua cela e levado para o pátio da prisão onde o esperava o pelotão de fuzilamento. O oficial responsável perguntou: “Ah, Guerwicz [ou Ginzburg], qual é o seu último desejo?”. O condenado olhou para os lados, enquanto os homens armados de rifles aguardavam, e respondeu: “Último desejo? Não sei, eu queria mesmo era mijar”. O oficial bateu no seu ombro e disse: “Bom, depois você mija”. Não se pode negar que Guerwicz ou Ginzburg foi criativo no seu último pedido, que não adiantou de nada, mas o soldado merece uma menção honrosa pela resposta criativa ao dilema que lhe foi apresentado.

Quanto à capacidade de ironizar e de brincar diante do perigo, é possível que ninguém supere Robert François Damiens, que ostenta até hoje a duvidosa fama de ter sofrido “a morte mais violenta do mundo”. Em 1757, portando um canivete, Robert Damiens atacou o Rei Luis XV e acabou ferindo o soberano sem nenhuma gravidade. Após padecer várias torturas, ficou esclarecido que o homem agira sozinho, e não a mando de algum grupo de oposicionistas. Ele foi condenado à morte pela tentativa de regicídio, algo que, em um regime monarquista, equivale a tentar matar uma divindade. Por isso, a sua punição deveria servir de exemplo, tanto para reforçar a monarquia quanto para mostrar ao povo o que aconteceria se alguém voltasse a erguer a sua mão contra o rei.

A morte do homem consistiria no despedaçamento, a ser feito por quatro cavalos. Como ninguém nunca sofrera tal punição, foram muitos dias de discussão, desde os tipos de cavalos até os locais para onde eles deveriam correr na Place de Greve, em Paris. Camponeses vieram de todas as partes da França. O barão George Selwyn veio da Inglaterra com a esposa, os seis filhos, os genros, noras e netos, além de toda a sua criadagem, pois, nas suas palavras, “não poderia perder esse espetáculo por nada no mundo”. O povo reservou lugares semanas antes da execução, e vendia as suas posições para os nobres que chegavam depois; quanto mais perto do local da execução, mais valioso o lugar.

Justiça seja feita a Luis XV, que foi contrário a uma punição tão desumana. Até o último momento ele tentou cancelar a execução de Robert François Damiens, mas percebeu que, se perdoasse o homem, a multidão se insuflaria e queimaria a cidade toda, tamanha a expectativa criada. Por isso, Luis XV trancou-se no palácio e se recusou a assistir ao desenlace daquela tragédia. Consta, inclusive, que passou deprimido por algumas semanas depois que o evento aconteceu.

No dia da sua execução, Damiens foi levado até uma carroça para passar pelo povo reunido na praça. Ao chegar no local e ser recepcionado por uma chuva de verduras podres, xingamentos e cuspes, o condenado comentou: “Acho que hoje vai ser um dia difícil”. Ele tinha razão, e o dia ainda estava no começo.

Por questões de espaço, terei que resumir os fatos, que foram fartamente narrados. Um dos primeiros casos de correspondentes especiais no mundo aconteceu neste dia, com a Gentlemans Magazine designando repórteres para descrever cada segundo do ocorrido. A edição contando o que aconteceu foi uma das mais vendidas na história da França.

Antes de se iniciar a execução propriamente dita, o carrasco, Charles Henri-Sanson, recebeu a determinação de punir de maneira específica a mão que agredira o rei. Ela foi queimada com enxofre, a seguir com cera quente, com óleo fervente e, ao final, com chumbo derretido. Cada unha foi minuciosamente arrancada com alicates e cada falange dos dedos foi quebrada com marretas. Tendo punido a mão, o carrasco passou a trabalhar no resto do corpo. Atendendo aos pedidos pretéritos da audiência, ele usou pinças afiadas para arrancar pedaços de carne da barriga e das costas de Damiens. Esses pedaços foram jogados para os cachorros de rua, que brigaram por eles, deliciando ainda mais a multidão enfurecida.

Nesse momento, o suplício já durava quatro horas, e as vendas de refrescos e comidas na Place de Greve estava em alta, assim como o sol. Charles Henri-Sanson decidiu seguir para o final da execução, e pediu para seu assistente trazer os cavalos, recebidos com estrépito pelos espectadores. Os quatro cavalos grandes e fortes foram cedidos pela maior estrebaria francesa que ao, patrocinar o evento, ganhou muita visibilidade. O carrasco prendeu os pulsos e tornozelos da vítima em cada cavalo, e chicoteou-os. Possivelmente assustados pelos urros da urbe, os cavalos puxaram, mas não conseguiram decepar os membros de Damiens.

O assistente de Henri-Sanson, ao perceber que os cavalos não estavam cumprindo a tarefa, sugeriu que cortassem os tendões do homem para facilitar o serviço. O carrasco gostou da ideia, mas precisava de um machado. Antes que o instrumento chegasse, um espectador das primeiras fileiras levantou-se e se identificou como cirurgião, disponibilizando-se a cortar os tendões de Damiens. A multidão recebeu-o com festa. Antes de realizar tal tarefa, o cirurgião fez um improvisado discurso, oferecendo seus préstimos profissionais no consultório que tinha junto à Rue de Liddy.

Depois do momento publicitário, seccionados os tendões, os cavalos correram e, enfim, executaram a tarefa: estraçalharam Robert François Damiens. Apesar de todos os horrores sofridos, o homem não só estava consciente, como continuava vivo. De acordo com os relatos de testemunhas, a cabeça de Damiens, ligada somente ao torso, contemplou os braços e pernas disputados pela multidão e perguntou, curiosa: “Aquela ali é a minha perna? Ou será o braço?”

Quem assistiu tudo também foi Giacomo Casanova, que assim narrou:

“Todos pareciam enfeitiçados pelo espetáculo e assistiam por horas e horas (…) Em diversas ocasiões fui obrigado a olhar para o outro lado, fechar meus olhos e tampar meus ouvidos para não ver ou ouvir o que estava acontecendo. Não podia deixar meu lugar, pois a multidão não se movia um centímetro, alguns riram quando eu tentei evitar aquela visão infernal. Mesmo com metade do corpo de Damiens despedaçado, as pessoas pediam mais, mais, mais (…) Lambertini e Madame XXX, no entanto não moviam um músculo. Será que seus corações haviam endurecido de tal forma? Eles me contaram mais tarde, e eu fingi acreditar, que o seu horror era tamanho que eles não conseguiam dar vazão ao seu desejo de implorar pelo fim daquele tormento”.

Após sete horas de frenesi sanguinolento, juntaram todos os membros da vítima espalhados pela praça e queimaram-nos em uma pira. Ainda assim, a fúria da multidão não acabou: os presentes na praça se dirigiram até a casa de Damiens com a intenção de saqueá-la e destruí-la. No embalo, acabaram fazendo isso também com as casas dos vizinhos do homem morto. Os familiares de Damiens foram perseguidos e tiveram que fugir de Paris; alguns até mudaram de nome. Uma série de distúrbios continuou acontecendo ainda durante uma semana, todos ligados à “morte mais violenta do mundo”, que, hoje se sabe, estava antecipando os terrores da Revolução Francesa

Apesar dos suplícios terríveis que lhe infligiram, Robert François Damiens comportou-se com desenvoltura no seu momento final. Enquanto todos se portavam muito mal, a vítima maior teve a calma necessária não só para agir com dignidade, mas ainda apresentando uma espécie de humor distorcido que caiu muito bem para a situação toda que acontecia ao seu redor. Seja planejando uma frase final, seja oferecendo uma taça de champanhe para a morte, seja pedindo para urinar enquanto o pelotão de fuzilamento apronta seus rifles, o importante mesmo é saber como se comportar enquanto o mundo desmorona ao redor, pois nem sempre a vida nos dá a chance de ter uma escada para descer depois que passou a oportunidade de agir.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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