Light chaos, de Kevin Dooley

Muita calma nessa hora

Gustavo Melo Czekster

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Em um mundo cada vez mais caótico, manter o controle deixou de ser uma virtude e passou a ser uma arte. Tudo conduz ao descontrole: notícias desordenadas brigam com cronologias e induzem pânico, ao mesmo tempo em que damos risadas nervosas de piadas feitas no calor do momento; pessoas matam por fatos mínimos e morrem sem nenhuma lógica; realizamos dezenas de tarefas por dia, e não somos sequer capazes de elencá-las, de tão desconcentrados que estamos. Descontrole, desordem, desconcentração: o prefixo definidor da nossa época é “des”, e ele tem sentido negativo. Estamos nos desfazendo dentro de nós mesmos. Somos formados de átomos, e eles tendem à dispersão, oscilando precariamente em torno de um núcleo que poderíamos chamar de alma, mas que precisa ser mantido sob constante vigilância para não explodir por culpa desse mundo que insiste em bater na nossa pele.

Tenho observado esse descontrole na literatura. Usando como argumento de defesa a sua “contemporaneidade”, vejo livros que vão do nada ao lugar algum, com personagens vagando como se fossem madeiras náufragas em meio ao oceano, com conflitos batidos e cansados cujas resoluções são anti-naturais (para não dizer clichês). Tudo isso em linguagem dolorosamente poética, que se tornou um misto de propaganda mal feita e de haikais desconexos. Já dizia Sêneca que não existe vento bom para quem não sabe onde deseja ir, e tem sido uma experiência decepcionante ver boas histórias serem estragadas pela incapacidade dos seus autores exercerem um maior controle sobre a narrativa.

Na semana retrasada, brinquei que alguns dos meus textos se descontrolavam do nada, como se, no entremeio das linhas, eles passassem a escutar “Maniac” do Michael Sembello e desandassem a correr, a pular, a dançar. Isso me fez lembrar de Stephen King. Em “Sobre a escrita”, ao comentar sobre a fama que lhe atribuem de ser um autor que costuma realizar uma mortandade de personagens, o mestre do terror afirma que, quando começa a escrever, ele não quer matar ninguém. Gosta das suas criaturas, tem estima por elas, são pessoas com as quais gostaria de conviver.

No entanto, a partir de um certo momento, a história perde o controle e os personagens entram em uma série de situações nas quais imploram para morrer, mas o autor os ama, então evita esse destino. No entanto, chega o trecho da trama em que os personagens acabam ultrapassando os limites da sensatez, e a sua morte se torna inevitável, momento em que o autor — chateado — aceita que isso vai acontecer e lhes concede o descanso final.

Na versão de Stephen King, os personagens tomam o controle da trama e ditam o ritmo, pedindo para morrer, e o autor — esse Deus involuntário — precisa ficar desviando as facas, as pedras, os carros e as balas do caminho deles. Fico pensando no que diria Vladimir Nabokov, para quem o escritor sempre possuía o controle da narrativa, e perder tal domínio era inaceitável. Em entrevista para a Paris Review, quando perguntado sobre o que achava da opinião de E.M. Fortser (autor de “Passagem para a Índia”), grande admirador do seu trabalho e que disse “que as personagens principais de Nabokov às vezes ganham vida própria e ditam o curso dos romances”, o russo fuzilou:

“O meu conhecimento das obras de E. M. Forster limita-se a um romance, do qual não gosto. De qualquer forma, não foi ele quem deu início a essa fantasia banal a respeito de personagens que fogem ao controle; isso é mais velho do que o mundo. Se bem que, naturalmente, daria para se sentir solidário com os personagens dele, caso tentassem escapar daquela viagem para a Índia, ou para onde quer que ele os estivesse levando. Os meus personagens são verdadeiros escravos”.

Vladimir Nabokov

Nabokov era um autor obcecado pelo controle. Ficou famosa a vez em que, no meio de uma aula, reclamando das digressões e idas e vindas de “Dom Quixote”, o escritor pegou um exemplar da obra de Cervantes e despedaçou-o raivosamente na frente dos alunos. No entanto, lendo um pouco sobre o seu método quase doloroso de escrita e as dificuldades que ele tinha para manter o controle da própria história, é possível entender um pouco do seu caráter beligerante. Em outra entrevista, desta vez para James Mossman, ao ser perguntado se escrever era um ato prazeroso ou doloroso, Nabokov respondeu:

“Prazer e agonia enquanto componho o livro em minha cabeça. Grande irritação enquanto luto com minhas ferramentas e vísceras — o lápis que precisa ser reapontado, o cartão que precisa ser reescrito, a bexiga que precisa ser esvaziada, a palavra que eu sempre vou escrever errado e preciso conferir. Depois o trabalho de ler o trabalho já transcrito por uma secretária, a correção dos meus maiores erros e até dos menores, transferindo as correções para as outras cópias; perder o lugar de cada página, tentando lembrar alguma coisa que deveria ter sido retirada ou acrescentada. Repetir o mesmo processo durante a revisão. Abrir a radiante, bela e robusta cópia pronta, abri-la e descobrir um estúpido exagero cometido por mim, mas me permitir sobreviver a isso. Depois de alguns meses mais ou menos, pegar o livro no seu estágio final e ver que ele finalmente foi ‘desmamado’ de mim. Eu agora considero isso com um pouco de efusiva ternura, assim como um homem vê não o seu filho, mas a jovem esposa de seu filho.”

Personagens não possuem vontade própria: ou o autor os comanda ou a narrativa não possui sentido, o que explica muito das chateações atuais, tanto nas artes quanto na vida, de pessoas controlando os nossos destinos e nos deixando sem eira nem beira. Estamos sendo constantemente manietados e perdendo o controle dos mais mínimos atos, seja pela família, pelo governo ou pela nossa própria moral. Aleister Crowley, que criou a única máxima legal que todo ser humano deveria seguir, “faze o que quiseres será a vossa lei”, ficaria impressionado ao ver o nosso ritmo de escravidão e de perda de liberdade, pois hoje estamos cercados por patrulhas ditando o que podemos ou não pensar.

Aliás, o ocultista Aleister Crowley podia estar livre do controle de outros humanos, mas não de deuses, fantasmas e silfos. Em março de 1904, ele queria escrever um livro para presentear a sua esposa, Rose Kelly, e resolveu convocar Thoth, o deus egípcio da sabedoria. Nos primeiros dias não deu certo, mas, passada uma semana, quando estava quase desistindo, Thoth apareceu na sala — incorporado em Rose Kelly — e disse que ele não ia ditar livros (provavelmente estava ocupado), mas, se quisesse ajuda, Hórus estava disponível, era só chamar. Crowley mudou o seu enfoque de deus egípcio, pretendendo conseguir a ajuda de Hórus, que não se dignou a aparecer, mas mandou o seu secretário, Aiwass. O ocultista teve tanto trabalho para achar um deus disposto a lhe ditar um livro que era mais fácil ter escrito um sozinho, o que só atesta a dificuldade de todo escritor para formar um romance minimamente interessante.

Nos dias 8, 9 e 10 de abril de 1904, das 12h às 13h, Aleister Crowley foi obrigado a sentar na sua escrivaninha e receber ditados de Aiwass. Nunca chegou a vê-lo diretamente — Aiwass sempre ficava atrás dele, ditando –, mas, na única vez em que o enxergou, descreveu-o como “um homem alto e escuro, de aproximadamente trinta anos, bem apessoado, ativo e forte, com o rosto de um rei selvagem, cujos olhos eram velados, pois seu olhar poderia destruir o que quer que estivesse olhando”. Foram três horas de ditado, mas delas saiu “O Livro da Lei” ou “Liber AL vel Legis”, que serviu de fundamento para todas as teorias ocultistas que ainda hoje são lidas e estudadas.

Como estava recebendo um livro ditado pelo secretário de Hórus, Crowley perdeu por completo o controle da própria obra. Não era mais dele, mas do outro. E — horror dos horrores –, enquanto estava escrevendo, o ocultista inglês começou a ver erros gramaticais no texto que lhe era passado. Não só isso: Aiwass ainda inventou de incluir narradores em cada uma das três partes do livro. Eles seriam Nuit, a Rainha do Espaço; Hadit, o Infinito Domínio das Coisas, e Ra-Hoor-Khuit, a Criança Coroada Conquistadora. Três narradores, cada um com a sua visão de mundo, mais o secretário de um deus egípcio como responsável pelo ditado controlando os narradores: Aleister Crowley perdeu completamente o controle do que estava escrevendo.

É uma pena que, pelo espaço desse texto, não possa me deter sobre o conteúdo de “O Livro da Lei”, pois é um livro fascinante; os ocultistas afirmam que cada leitor lê o que deseja ler, ou seja, estamos diante de um livro multíplice, que não possui um significado único e que cada leitor renova constantemente. É provável que eu não tenha lido o mesmo livro ditado por Aiwass, e minha leitura seja diferente da de outros leitores.

No entanto, justiça seja feita, Crowley tentou corrigir muitos trechos de “O Livro da Lei”. Tinha medo de que os erros gramaticais e de concordância fossem atribuídos a ele, não ao responsável pelo ditado. Mas Aiwass era orgulhoso, e insistia em dizer que estava certo, contra todas as evidências da gramática inglesa. É possível que o “Livro da Lei” tenha a mais estranha errata já feita, quando o autor afirma para o leitor que redigiu o livro, mas não o escreveu:

“É claro que eu o escrevi, tinta no papel, no sentido material; mas aquelas não eram e nem nunca foram as Minhas palavras, a não ser que Aiwass não fosse mais do que uma extensão do meu self subconsciente ou alguma parte disto: nesse caso, meu Self consciente, por ser ignorante acerca da Verdade do Livro e hostil à maior parte da ética e filosofia presentes Nele, Aiwass seria uma parte severamente suprimida de mim.”

De um lado, Nabokov e o seu controle absoluto sobre todo o andamento da obra; no outro, Crowley perdendo o controle narrativo por causa de um secretário divino com laivos de romancista. Entre esses extremos, está ainda Franz Kafka, que se preocupava demais com os itens que estavam fora do controle de uma narrativa.

Quando lemos uma obra literária, existem personagens secundários para os quais não damos muita importância. Eles estão fazendo figuração nas cenas dos personagens principais, em torno dos quais a história gira. Quem sabe os nomes de todos os personagens secundários mortos nas batalhas de “Guerra e Paz”, de Tolstoi? Quem sabe os nomes dos participantes dos animados bailes na casa de Bingley, como Jane Austen fala em “Orgulho e Preconceito”? Não sabemos, pois esse assunto é irrelevante.

Contudo, Kafka se preocupava com o destino dos personagens que apareciam em uma cena e, a seguir, desapareciam da obra. Quem eram, para onde iam, o que estavam fazendo? Como podiam desaparecer assim do mundo? Essa preocupação o levou a redigir uma carta em 1918 para Max Brod (tradução minha):

“Esta coisa de me obcecar pelos personagens secundários cujas vidas leio nos romances, peças de teatro, etc. Este sentimento que possuo de pertencer ao mesmo mundo deles! Em ‘As Virgens de Bischofsang’, existem duas costureiras que costuram a roupa da noiva da peça. Qual será a vida dessas duas jovens? Onde moram? O que fizeram para não obterem o direito de entrar na peça com as outras? Só lhes é permitido ficar do lado de fora, e, afogando-se em frente à Arca de Noé, comprimir o rosto contra o vidro, para que o espectador do drama perceba ali, por um instante, qualquer coisa um pouco obscura que se move.”

É o paroxismo da obsessão: querer controlar a vida de tudo e de todos, não só dos personagens principais da história, mas dos secundários. É uma atitude muito frequente nos dias atuais: pessoas que, não suficiente controlarem as próprias vidas, ainda precisam se meter e opinar na dos outros. Ao menos Kafka se preocupava com o destino dos personagens secundários dentro de um livro, não com a vida alheia.

Ainda existem aqueles que alegremente abraçaram o caos do mundo, como aconteceu com Samuel Johnson. Ao invés de ter algum controle sobre as suas leituras, o escritor inglês resolveu que, em matérias de livros, adotaria o descontrole como regra. Desenvolveu um método de leitura chamado “leitura cursória”, que consistia em pegar um livro na biblioteca, ler algumas páginas, em seguida pular para outro, abri-lo no meio e ler outras páginas, para, a seguir, escolher outro exemplar e selecionar algum trecho randômico… Johnson dizia que a sorte era tão boa conselheira quanto a erudição e, com o passar dos anos, desenvolveu a sua habilidade de leitura a ponto de não mais pegar os livros, deixando-os em meio a mais absoluta confusão, caindo e abrindo páginas, quando então o escritor as lia até cansar e deslocava a atenção para outro exemplar.

Suas justificativas para agir dessa forma desordenada eram ótimas: “Se um homem começa a ler um livro pela metade e tem vontade de ir adiante, de nada vale parar e ir para o começo. Pode ser que ele não tenha a mesma vontade”. Ou então: “Não largar os livros antes do fim seria como querer manter por toda a vida a amizade com quem quer que se encontre pela frente”. Samuel Johnson não era obrigado a ler nenhum livro do início até o fim e escolhia a ordem que ia começar a leitura sem nenhuma interferência do autor, e tal método de leitura certamente ajudou a formar o seu invejável conhecimento, pois a mente dele estava preparada para pular entre as mais diferentes associações sem nenhum juízo de valor ou preconceito.

Cada pessoa possui a sua própria maneira de se sentir no controle de algo. Temos medo das possibilidades que o desconhecido pode acarretar e, por isso, tentamos manter a vida dentro de normas perfeitamente organizáveis e esperadas. Todos aqueles que reclamam de tédio, na realidade deveriam reclamar do controle a que se auto-impuseram. Isso por que a vida é uma longa sucessão de desatinos e instabilidades, em que a rotina nos escraviza e a falta de controle é o primeiro passo para o auto-entendimento. Portanto, é preciso perder o controle — mas sem esquecer que, assim como no poema de Elizabeth Bishop, a arte de perder também tem um método.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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