[Fonte: Favim]

Não faça voos imaginários, a não ser que seja imprescindível

De Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
8 min readNov 17, 2015

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Eu admiro pessoas metódicas, concretas. O mundo pertence àqueles capazes de condensar todo o caos humano em uma lista de prós e contras, ou tarefas a fazer de imediato e outras que podem esperar, ou coisas a comprar em curto, médio e longo prazo.

Mal e mal consigo escrever uma lista de supermercado e, quando faço, invariavelmente acabo a esquecendo. A falta de método para atividades cotidianas se projeta em uma irrestrita confiança na minha memória e, talvez por isto, eu seja o feliz proprietário de cinco detergentes líquidos, quatro “Poética” de Aristóteles e seis pacotes de guardanapos, totalizando seiscentos guardanapos, algo que levarei em torno de cinco anos para consumir. Ainda assim, basta passar na fileira do supermercado que sempre penso “não tem mais detergente!” ou “está faltando guardanapo”, e assim eu compro produtos que já tenho em demasia. Detergentes, Aristóteles e guardanapos são a “gap” da minha memória, o ponto em que ela falha.

Tolstói era uma pessoa metódica. Acreditava que o mundo inteiro podia ser explicado ou contido em uma lista. Bom, ele também tinha uma invejável autoestima, tanto que afirmou no seu Diário: “Devo me acostumar, de uma vez por todas, que sou um humano excepcional. Não encontrei ninguém moralmente tão bom quanto eu, ou disposto a sacrificar tudo por um ideal, como eu”. Como diria a minha avó, “está se achando” — mas ele é Tolstói e, gostemos ou não, só pode “se achar” quem tem estatura intelectual suficiente para tanto. O escritor russo tinha vinte e cinco anos quando escreveu isto, e a constatação serena da própria perfeição é algo admirável. Ainda não tinha escrito “Anna Karenina” ou o portentoso “Guerra e Paz”, mas já tinha noção do seu destino.

Tolstói ensina como virar Tolstói [Fonte: cotovia]

A partir dos dezoito anos, e em um hábito que se estendeu pelo decorrer de sua vida, Tolstói escreveu uma série de regras para as pessoas que desejavam ser perfeitas como ele. Uma espécie de manual de instruções para virarmos Tolstóis. Não foi o único a se espelhar no próprio exemplo; Montaigne, que era dezenas de vezes mais pândego, reconheceu tanto a sua perfeição quanto a imperfeição, e dedicou a vida a escrever somente sobre si mesmo, “o ser humano que melhor conhecia na face da Terra e o mais interessante”, o que acabou gerando os seus “Ensaios”.

As regras de Tolstói oscilam de questões práticas (“acorde às cinco da madrugada”, “coma de forma moderada”), passam por sugestões metafísicas (“nunca demonstre emoções”, “fique longe de mulheres”) e chegam até observações sensatas (“fale uma coisa de cada vez”, “visite bordéis apenas duas vezes por mês” — ainda que exista um conflito aparente com o “fique longe de mulheres”). No entanto, entre as regras, uma acabou chamando a minha atenção: “Não faça voos imaginários, a não ser que seja imprescindível”.

É possível entender o conselho para que não façamos “voos imaginários”. A imaginação é algo perigoso para o ser humano: ela faz ver coisas que não existem, cria sentimentos onde só há indiferença, constrói ilusões que não resistem ao primeiro vento da realidade.

No 18º ensinamento de A arte de ser feliz, Arthur Schopenhauer se entrega a um virulento ataque contra a imaginação, pois ela é cruel: ou faz com que nos apeguemos à fantasia de uma vida feliz, transformando a realidade em algo ruim, ou faz com que realizemos previsões funestas, que paralisam a vida. O ideal seria dosar a imaginação com parcimônia, mas, diante da impossibilidade prática de fazer isto na vida, o filósofo radicaliza e termina a lição número 18 com um brado: “Refreie-se a imaginação!”.

Artistas são muito dados aos tais “voos imaginários”. São momentos em que eles se desconectam da realidade e adentram em um universo particular, um local onde as regras são flutuantes e a sua satisfação é o objetivo maior. “Voos imaginários” criam uma versão alternativa tão palpável que uma pessoa pode se perder na ilusão, ao invés de ver a dura verdade: você não vai ganhar aumento; você é feio, sim; você agiu de forma covarde; ela não gosta de você. Além de impedirem a pessoa a ver a realidade, escondendo-a atrás de um enganoso verniz, também induzem ao erro e à análise equivocada. Boa parte das mentiras que já escutei são derivadas de um “voo imaginário” que não se confirmou na realidade.

O que deixa mais estranho a continuidade do conselho de Tolstói: “(…) a não ser que seja imprescindível”. Em qual momento um “voo imaginário” deixaria de ser algo ruim e se tornaria questão de vida ou morte?

A resposta parece óbvia: em qualquer momento. Todo o engenho humano se origina de um “voo imaginário”. Se Santos Dumont não tivesse sonhado com um avião, ele não existiria. Se os homens não sonhassem em pisar na Lua desde Jules Verne e Cyrano de Bergerac, estaríamos ainda sentados no planeta a observar estrelas distantes. Se um macaco não sonhasse em caminhar sobre as duas pernas, ainda estaríamos escalando árvores. Os “voos imaginários” estão no cerne de tudo, desde o sonho da lagarta em se transformar em borboleta até o primeiro beijo de um casal ainda inexistente. Existem instantes em que “voos imaginários” são absolutamente irrelevantes, mas, em outros, eles são imprescindíveis para que possamos avançar.

Sabendo isto, fica ainda mais interessante ver a história dos “voos imaginários” que deram errado. Ou certo, dependendo do ângulo. Em Geografia do romance, o escritor Carlos Fuentes conta a história de um “voo imaginário” coletivo, que uniu vários escritores em torno de um objetivo único — e a imensidão do fracasso só é obscurecida pelo tamanho da audácia criativa.

Diz Fuentes que, no outono de 1967, ele e Mario Vargas Llosa estavam, por coincidência, em Londres. Os dois se reuniram em um pub de Hamstead para tomar pints e trocar impressões sobre um livro que ambos tinham lido a pouco, Patriotic Gore, de Edmundo Wilson. Conversavam sobre o livro quando tiveram a ideia de escrever “uma galeria imaginária de retratos” com os ditadores latino-americanos, pois “como competir com a História? Como inventar personagens mais poderosos, mais loucos ou mais imaginativos do que os que apareceram em nossa História?”.

[Fonte: critica y punto]

Algumas das histórias que eles pensaram incluir nesta série de retratos são absolutamente deliciosas, e só mencionarei duas delas, a de Juan Vicente Gómez, ditador da Venezuela durante trinta anos, e que anunciou sua própria morte para poder castigar quem tivesse o atrevimento de fazer comemorações, e a de Enrique Peñaranda, ditador da Bolívia, sobre quem a própria mãe disse “se eu soubesse que meu filho ia chegar a presidente, tê-lo-ia ensinado a ler e a escrever”.

Os dois resolveram chamar alguns amigos escritores para o projeto. Cada um deles escreveria uma novela de até cinquenta páginas, estrelada por um ditador do respectivo país, e a união das novelas seria chamada de Os pais das pátrias. Os escritores que aceitaram embarcar neste “voo imaginário” coletivo foram, além de Vargas Llosa e Carlos Fuentes, o paraguaio Augusto Roa Bastos, o argentino Julio Cortázar, o colombiano Gabriel Garcia Márquez, o venezuelano Miguel Otero Silva, o cubano Alejo Carpentier, o dominicano Juan Bosch, os chilenos José Donoso e Jorge Edwards (que escreveria sobre o ditador da Bolívia, influenciado pela sua esposa, María Pilar). Um dream team da literatura, todos tratando dos ditadores que deram feições aos seus respectivos países — e de como eles formaram a América Latina.

O que aconteceu com um projeto tão incrível? Pois ele nunca virou realidade. Mesmo contando com um editor interessado (Charles Gallimard), foi impossível concatenar os tempos de cada um dos autores, os seus compromissos e as suas vontades. O “voo imaginário” foi tão amplo e ambicioso que acabou se transformando em algo impossível de acontecer. Entrou na longa lista de obras sonhadas e jamais concluídas da Humanidade.

No entanto, a ideia gerou inesperados frutos, e aí está a parte boa dos “voos imaginários”: mesmo que não cheguem ao destino, a sua simples existência deforma a realidade e acrescenta novos elementos de sonho ao cotidiano. Ainda que não constituam um volume único, três obras nasceram do projeto, uma de Carpentier (O recurso do método), outra de Garcia Márquez (O outono do patriarca) e a última de Roa Bastos (Eu, o Supremo). Três clássicos da literatura latino americana originaram-se de uma proposta audaciosa que nunca foi efetivada. Não sabemos o quanto da imaginação dos autores foi provocada pela proposta criativa, ou se eles pretendiam escrever estes três livros de qualquer jeito, mas podemos hoje ler as obras como parte de um projeto naufragado, mas, ainda assim, exitoso. O “voo imaginário” não alcançou as estrelas pretendidas, mas foi até a Lua, e isto já foi uma grande vitória.

Quando Tolstói se insurge contra os “voos imaginários”, pretende impedir que as pessoas se abandonem aos veios caudalosos da imaginação e esqueçam as agruras da realidade. No entanto, a sua ressalva, “a não ser que seja imprescindível”, nos permite estabelecer que devaneios e sonhos podem ser tão vitais quanto o ar que nos preenche.

Método e arte: intervenção de Candy Chang ao redor do mundo propõe listas do que fazer antes de morrer [Fonte: DDU Connect]

Eu admiro pessoas metódicas (também admiro pessoas não fissuradas em comprar detergentes líquidos e guardanapos, pois a elas pertence o Reino dos Céus), mas sei que os “voos imaginários” escondidos no meio da frieza dos elementos de uma lista são os melhores. São o que dão graça para a vida: a possibilidade de imaginar uma outra realidade. O “voo imaginário” que descola a mente do chão e nos leva a um mundo mais confortável, um local somente nosso, em que tudo existe para nos agradar. A capacidade de transformar tais “voos imaginários” em obras concretas é o que forma um artista, e pensem em quantas músicas, livros, esculturas e pinturas existem no mundo, famosas ou não, para vermos que o estado natural de um ser humano é estar imerso no meio de um delirante voo proporcionado pela sua imaginação.

Talvez sejamos criaturas formadas de imaginários, e o voo seja a consequência natural de quem nunca esteve bem firmado ao chão. Por mais que eu respeite — e tenha uma certa inveja — de seres organizados, sei também que a luta deles para deixar o mundo mais ordeiro está fadada ao fracasso. Afinal, quem nunca acrescentou espontaneamente uma barra de chocolate entre o arroz e a água mineral da lista de supermercado que jogue a primeira pedra.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contosO homem despedaçado.

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