No pampa e sem bombachas

Até hoje, quando se pensa na literatura produzida no Rio Grande do Sul, a imagem que vem à tona é a da estética rural, a das tramas históricas ambientadas em vilas desoladas ou na pampa aberta

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readJul 31, 2015

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Texto de Gustavo Machado
Fotos de Fernando Kluwe Dias

Vivo num Estado de fronteira. Um lugar onde abundam os bons cheiros, mas que também é cheio de ranços; vivo numa província que ainda teima em ser república. Vivo e escrevo. Onde vivo e escrevo, o tempo escoa mais lento, desapegado das tendências, desconfiado das renovações, temeroso de experimentar. Um Estado de gente que torce o queixo a quem inventa moda. Um Estado de gente espiada por estar na ponta, zelando, sentinelas avançadas. É onde vivo e escrevo. Por jamais ter usado um único par de bombachas, eventualmente eu me sinto como que expatriado na minha própria casa. Casa onde vivo e escrevo.

Uma hora talvez passe, mas ainda não passou; não de todo. Até hoje, quando se pensa na literatura produzida no Rio Grande do Sul, é raro que se faça alusão a um tipo de “literatura brasileira”. Mais, a imagem imediata que vem à tona é a da estética rural, a das tramas históricas ambientadas em vilas desoladas ou na pampa aberta, fustigada por gélidos ventos minuanos e medonhos castelhanos. Deus nos proteja de um romance com engarrafamento, com gente enfiada em apartamentos, quarando em filas de banco, em gente que sofre com aquela violência mundana sem qualquer heroísmo. E por muito tempo nos mantivemos incólumes.

Assim ocorre desde as narrativas quase anedóticas de João Simões de Lopes Neto. E não mudou grande coisa com o passar dos anos. Tal acento histórico, com cheiro de Interior, entranhou-se também na prosa de boa gente que vai de Josué Guimarães e Luiz Antonio de Assis Brasil a Letícia Wierzchowski.

Desde a base, o grosso de nossa alvenaria literária se edifica em tropéis, tiros de laço, clarinadas, duelos, cargas de lança, escaramuças, ranchos desolados e toda sorte de lida campeira. É uma questão de gênese, de uma carga que cedo nos marcou a ferro em brasa. Em parte, e até pela qualidade dessa literatura que bebe numa mesma fonte, não há surpresa nem demérito em tal homogeneidade: nossa ficção se entrelaça com os mitos fundantes da temática gaúcha, com especial afinco pela Revolução Farroupilha e seus entornos cronológicos.

Nutrimos também certo sarro epopeico em torno das nossas figuras e ferrenhamente nos assumimos autorreferentes. Em doses variadas, nossos protagonistas estão mais para heróis e quase todos têm algum parentesco com as famílias Terra e Cambará. E de autorreferentes talvez tenhamos também nos tornado autofágicos.

De um lado, o majoritário regionalismo da nossa literatura já consagrada pelo tempo colaborou para o fortalecimento de todo um conjunto de arquétipos, para a confirmação de um arcabouço de referências. De outro, no entanto, a mesma confirmação corroborou na criação de estereótipos pejorativos e excludentes quando se trata do desenvolvimento de outros gêneros e universos ficcionais. Estabeleceram-se barreiras que tolheram e mesmo impediram um mergulho mais profundo nas potencialidades da identidade gaúcha na sua plenitude. Afinal, com ou sem bombachas, igualmente gaúchos deveriam ser os homens e as mulheres das grandes cidades; elementos de um Rio Grande existente apenas a partir da terceira década do século XX.

Por aquelas aparentes contradições que a arte não cansa de apresentar, foi o expoente máximo de toda esta tradição, Erico Verissimo, quem abriu a pedregosa estrada por onde, muito mais adiante, iriam se aventurar romancistas urbanos gaúchos. Sim, deve-se muito ao pai de Bibiana e Capitão Rodrigo.

A conversa é espichada como orelha de fofoqueiro. Então, usando ou não bombachas, puxe um banco e escore um mate novo que seguimos daqui na próxima sexta-feira.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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