O espírito livre de quem sabe se divertir

Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
10 min readAug 17, 2016

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Parece que uma condição indispensável para ser artista nos tempos atuais diz respeito à choradeira e aos lamentos sobre o ato de produzir arte. Infelizmente, não é uma exclusividade dos artistas; a tônica dos dias atuais é a choradeira. Basta conversar com qualquer pessoa que ela irá expor um longo rosário de dores e mágoas.

No caso dos que trabalham no mundo das artes, o que mais se vê são pessoas reclamando que ganham pouco dinheiro, que sofrem horrivelmente para produzir, que realizam sacrifícios pessoais incomensuráveis, que passam por dores, privações, angústias e medos, em um processo catártico constante e agônico. Chega até a dar medo. Dupla é a minha curiosidade: primeiro, o motivo dos outros desejarem saber o quanto os artistas sofrem para realizar as suas obras e sempre direcionar as conversas para este tópico; segundo, a razão pela qual todo artista chora suas mágoas assim que encontra um público, por menor que seja. Pois ninguém confessa a verdade: criar também é altamente divertido. É exasperante, cansativo, machuca a lombar, perdemos um tempo enorme que poderia ser dedicado a assuntos mais prazerosos como ganhar dinheiro ou viajar, mas, ainda assim, no final do dia, a sensação de criar é positiva e, às vezes, até mesmo gratificante.

Contudo, existiu uma época em que os artistas conseguiam ter uma convivência não só agradável com a sua arte, como usaram-na para saudar as benesses da boa vida. Entregaram-se ao prazer e ao vício, e alguns usaram a literatura para glorificar prazeres. Eram hedonistas no sentido mais puro da palavra: só viam prazer no ato de escrever e contar para os outros o quanto gostavam da maravilha de perder as noções da realidade.

Charles Baudelaire escreveu uma obra louvando o ópio, o haxixe e o vinho. Não desperdiçou tempo choramingando ou lutando contra os vícios, preferiu ceder a eles e louvá-los. “Paraísos artificiais” reúne provavelmente algumas das mais belas e inspiradas páginas que Baudelaire escreveu na vida. Muito difícil ler a sua louvação aos estados induzidos por drogas e pelo álcool e não ficar tentado a experimentá-las. Não bastando mergulhar fundo em ditos prazeres, ainda se debruçou a escrever sobre eles de forma apaixonada, intensa, repleta de sensações.

Charles Baudelaire

No texto sobre o vinho, o escritor francês faz uma defesa como raras vezes se viu. Citando Hoffmann, defende a ideia de que o ideal não somente é escrever bebendo, como cada música deve ser composta sob os auspícios de um determinado vinho: para uma ópera bufa, importante ter à mão uma taça de vinho de Champanhe, pois o músico “encontrará neste vinho a alegria espumante e leve que reclama o gênero”; para hinos religiosos, o mais indicado seria um vinho do Reno ou de Jurançon, uma vez que “reside neste vinho uma amargura embriagadora”; para músicas heroicas, sugere o vinho da Borgonha, “que tem a impetuosidade séria e o arrebatamento do patriotismo”.

Em determinado momento do texto, perdido no seu afã de elogiar o seu amigo líquido, Baudelaire deixa a prudência de lado e coloca o vinho como próprio personagem, assumindo a sua voz:

“Parece-me às vezes ouvir o vinho falar — ele fala com sua alma, com esta voz dos espíritos que apenas os espíritos alcançam: — ‘Homem, meu bem-amado, quero levar até você, apesar de minha prisão de vidro e de minhas aldravas de cortiça, um canto cheio de fraternidade, um canto cheio de alegria, de luz e de esperança. Não sou ingrato; sei que lhe devo a vida. Sei o que lhe custei de trabalho e de sol sobre os ombros. Você me deu a vida, e eu o recompensarei por isso. Pagarei minha dívida com generosidade; porque sinto uma alegria extraordinária quando caio no fundo de uma garganta alterada pelo trabalho. O peito de um homem honesto é uma morada que me agrada muito mais que as adegas melancólicas e insensíveis. É uma tumba alegre onde eu cumpro meu destino com entusiasmo. Faço no estômago do trabalhador um grande rebuliço e daí, em escadas invisíveis, subo ao seu cérebro onde executo minha dança suprema.”

Uma sucessão de belas metáforas para descrever uma bebedeira. Pelos olhos apaixonados de Baudelaire, consumido pelos próprios vícios, o vinho se transforma em um artífice de alegria e de suavidade. Ao final do depoimento do líquido milagroso, uma descrição quase lasciva e que se aproxima da heresia, o momento em que o vinho, enfim, se torna o homem:

“Cairei no fundo do seu peito como uma ambrosia vegetal. Serei o grão que fertiliza o solo dolorosamente escavado. De nossa íntima reunião criaremos a poesia. Para nós dois faremos um Deus e flutuaremos ao infinito, como os pássaros, as borboletas, os filhos da Virgem, os perfumes e todas as coisas aladas.”

Melhor do que chorar das agruras da vida de artista é se entregar com voracidade ao prazer; usar a literatura não como fonte primordial de dor e sofrimento, mas para fazer o mundo se ajoelhar diante de palavras, meras palavras. Toda pessoa possui problemas, os mais diferentes possíveis, e reclamar do que a arte causa nos seus artífices soa como arrogância, uma maneira de dizer que as dificuldades de alguns são mais intensas do que as de outros. Problemas são problemas e, ao invés de lamúrias, melhor se abandonar ao poço infinito do prazer de ser aquilo que se é. Charles Baudelaire sabia disso: acaso pudesse mandar fazer uma camisa para si mesmo, grafaria a expressão “Bêbado, drogado, com a mente alterada, e feliz”.

Outro escritor que se entregou com toda a energia ao prazer de escrever e não ficou o tempo todo perdido em lamúrias foi Alexandre Dumas. Encontro-me lendo o livro de receitas que ele escreveu em 1869, “O Grande Dicionário de Culinária”. A ideia inicial não pode ser mais divertida: Dumas era um conhecido glutão, amante da boa mesa, dos vinhos e das mulheres (não nessa ordem). Vivia com intensidade, viajando por vários lugares da Europa e sempre experimentando receitas exóticas, mas um fato o desagradava imensamente — chegar em um lugar novo e ser recebido por uma comida ruim. Diante deste cenário, o escritor francês resolveu escrever um guia culinário, reunindo verbetes, receitas, comentários de viagens, opiniões sobre outros escritores e receitas que imaginou para alguns dos seus personagens mais famosos.

Alexandre Dumas divertiu-se muito escrevendo. Divertiu-se tanto que chegou ao ponto de transcrever uma piada infame que não deixa nada a dever para os memes atuais. No verbete dedicado ao absinto, segundo Dumas, “a paixão fatal de [Alfred de] Musset pelo absinto, que, aliás, talvez seja o que dê sabor tão amargo a seus versos, fez com que a grave Academia se rebaixasse a um trocadilho infame. Com efeito, como Musset faltava a muitas sessões acadêmicas, o senhor de Villermain, um dos 40, houve por bem dizer: ‘Não acha que Musset anda muito absenteísta nos últimos tempos?’.” Sim, um trocadilho infame de quase 200 anos de idade, para quem acha que estamos inventando a pólvora.

O livro é mais uma miscelânea de situações entremeadas com receitas e comentários sobre ingredientes do que uma obra literária. Ainda assim, o escritor às vezes aparece com força, como quando Dumas conta o dia em que chegou na casa de um amigo e deu tantas opiniões sobre o trabalho da cozinheira, “que não era nenhum cordon bleu”, que ela desistiu de fazer comida, momento em que o escritor assumiu o comando da cozinha e encantou todos os convidados com os seus improvisos. A descrição do seu embate com a cozinheira foi imortalizada no meio da receita de “galinhas no barbante”:

“Galinhas no barbante. Até o momento de executar minhas galinhas no barbante, fui vítima das risadas ferinas da minha vice-cozinheira; porém, chegada a hora decisiva, as observações viraram oposição ferrenha. Sem tempo a perder, ameacei-a com um golpe de Estado, que consistiria em indenizá-la e botá-la porta afora. A ameaça fez efeito, ela obedeceu passivamente e, cinco minutos depois, minhas duas galinhas giravam lado a lado, como dois fusos.”

O dicionário de culinária foi a obra que Dumas planejou para ser sua última. Já estava velho e cansado, e queria legar para a Humanidade algo útil, contendo as suas receitas e opiniões gastronômicas. Não chegou a ver o livro publicado — morreu antes — mas foi um jovem Anatole France que o revisou, dando uma certa uniformidade para o conjunto de anotações. O sonho de Alexandre Dumas não era deixar uma obra para ser lida por todos os tempos, mas acalentar os estômagos alheios com boa comida. Para isso, a sua antológica — e errônea — frase: “Minha reputação culinária promete apagar a minha reputação literária. Louvado seja Deus!”

Entretanto, o escritor que melhor soube aproveitar das benesses da vida ao lado da literatura provavelmente foi William Somerset Maugham. Se algum dia ele reclamou dos dissabores de ser um artista, ou lamentou crises de criatividade e bloqueios, não deixou nenhum registro. Preferia escrever ao invés de chorar pelo motivo de não estar produzindo. Considerava a vida como uma grande antessala da ficção e, se estava sem escrever, isso se devia ao fato de estar ocupado demais experimentando novas situações. Era alguém que se comprazia em viver escrevendo e escrever vivendo, e saber articular o que fazemos com aquilo que somos é uma das receitas para uma existência digna.

É famosa a cena acontecida em um jantar, quando provocaram Somerset Maugham perguntando como se segura uma garrafa de vinho, e ele respondeu que as garrafas de vinho são agarradas pelo pescoço, enquanto mulheres devem ser seguras pela cintura. Nada como a experiência e a sofisticação para evitar perguntas inoportunas. O escritor inglês tinha uma simples meta de felicidade: “quando eu era jovem e tinha pouco dinheiro, fiz vários planos para a vida adulta. Um deles é que teria sempre, depois do jantar, um pouco de conhaque acompanhado por um bom e caro charuto. Foi um dos poucos projetos da juventude que realizei.”

William Somerset Maugham segura um charuto (presumivelmente) caro

Somerset Maugham teve uma vida muito difícil. Sofreu muito durante a sua infância e adolescência. Os seus pais morreram quando ele ainda era criança, e o escritor foi cuidado por um tio cruel, que lhe ensinou a nunca demonstrar nenhuma emoção. Por causa disso e da sua condição de órfão, desde seus primeiros anos, Somerset Maugham foi maltratado pelos colegas de aula, pelos vizinhos e pela comunidade em que vivia. Não tinha um porto seguro em que pudesse se refugiar.

Para não enlouquecer, desenvolveu a arma mais fatídica que um ser humano pode conceber: o sarcasmo. Suas tiradas se tornaram antológicas, o que enfurecia ainda mais os inimigos, que tentavam humilhá-lo e saíam derrotados. Ele nunca deixou de rir da vida, e boa parte do sarcasmo com que enfrentava as situações transportou para a sua obra.

É uma vitória que, mesmo diante de condições iniciais tão adversas, William Somerset Maugham tenha não só alcançado sucesso literário como chegou aos 91 anos de vida, e que a morte tenha lhe encontrado quando escrevia em um quarto instalado em uma linda villa de frente para o Mediterrâneo. Quem não reclama e sabe ter paciência para enfrentar as adversidades acaba tendo uma vida proveitosa.

Os maus-tratos sofridos nos seus primeiros anos nunca lhe levaram a lamentar. Ao contrário, por entender o sofrimento como parte indissociável da vida, Somerset Maugham estava pensando em si mesmo quando fez uma das mais belas descrições sobre a vida do verdadeiro escritor, sempre sufocado por uma humanidade da qual tenta se libertar, em um trecho presente no livro “O destino de um homem”:

“É uma vida cheia de contratempos. Para começar, o escritor deve sofrer a pobreza e a indiferença do mundo; depois, tendo conquistado uma parcela de sucesso, tem de se submeter sem protesto aos seus riscos. Depende de um público inconstante. Está à mercê de jornalistas que querem entrevistá-lo; de fotógrafos que querem tirar-lhe o retrato; de diretores de revistas que o atormentam pedindo matéria, de cobradores de impostos que atormentam por causa do imposto sobre a renda; de pessoas gradas que o convidam para almoçar; de secretários de instituições que o convidam para fazer conferências; de mulheres que o querem para marido e de mulheres que querem divorciar-se dele; de jovens que lhe pedem autógrafo; de atores que desejam papéis e estranhos que querem um empréstimo; de senhoras sentimentais que lhe solicitam a opinião sobre assuntos matrimoniais; de rapazes graves que querem sua opinião sobre suas composições; de agentes, editores, empresários, chatos, admiradores, críticos, e da própria consciência. Mas existe uma compensação. Sempre que tiver alguma coisa no espírito, seja uma reflexão torturante, a dor pela morte de um amigo, o amor não correspondido, o orgulho ferido, o ressentimento pela falsidade de alguém que lhe devia ser grato, enfim, qualquer emoção ou qualquer ideia obcecante, basta-lhe reduzi-la a preto-e-branco, usando-a como assunto de uma história ou enfeite de um ensaio, para esquecê-la de todo. Ele é o único homem livre.”

Ao invés de perder tempo se queixando, Somerset Maugham fez o mais difícil — transformou os problemas em força motriz para a própria obra. Não fez catarse por meio dos escritos, não menosprezou o leitor tratando-o como um terapeuta para seus problemas pessoais, e nem ao menos mergulhou na autocomiseração. Sem procurar a simpatia alheia, o escritor inglês entrou para a categoria de escritores como Charles Baudelaire e Alexandre Dumas: autores para quem a literatura é um simples ornamento, o sucesso uma mera consequência do trabalho, e aproveitar a vida em cada um dos seus mínimos momentos, sim, é o mais importante.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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