O intrincado mosaico da chinesa Bao Lord

O mundo é bem mais complicado do que uma laranja que a gente corta ao meio e escolhe uma metade para chupar

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readSep 18, 2015

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Por Gustavo Machado

nikdaum.com

Se a moda é cíclica, mais ainda é o senso comum. E quanto mais senso comum, mais definitivas e cheias de convicção as opiniões emitidas. Noto que, como acontece de tempos em tempos, voltaram à pauta as supostas escolhas que devemos fazer entre esquerda e direita, ocidente e oriente, capitalismo ou comunismo, democracia ou golpe de Estado. São temas sobre os quais reflito há muitos anos sem que, até agora, tenha avançado muito. Ainda é um mosaico que não consigo encaixar com destreza. A culpa é de uma chinesa.

Começou quase ao acaso, em 1990. O mundo ainda vivia uma abrupta sobreposição de paradigmas que tinham como símbolo maior a queda do Muro de Berlim. Era o fim da Guerra Fria. E da minha adolescência despolitizada, desmiolada e um tanto frouxa em termos de estofo, pra não dizer absolutamente inculta. E como ser diferente?

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Eu nascera num dos anos mais sombrios do meu país, 1970, e, numa visão um tanto débil, imaginava o mundo como uma gigantesca laranja dividida em duas metades quase iguais. Embora iguais em tamanho, à minha volta quase não se falava numa delas. Talvez por isso tenha sido tão simbólico aquele início de noite em que meu pai me entregou um livro que dizia na capa “Heranças, um mosaico chinês”, de uma chinesa dissidente chamada Bette Bao Lord. Era como se meu pai dissesse, naquele nosso primeiro sopro de democracia brasileira, “toma, agora pode ler”. O livro, escrito em tom autobiográfico, falava das atrocidades cometidas a partir da Revolução Cultural e casou muito bem com meu feroz repúdio a qualquer tipo de autoridade. Eu tinha, afinal, 19 anos. E era delicioso ler livremente sobre o comunismo, assunto proibido durante décadas.

Fiquei muito decepcionado. Bao Lord mostrava uma China totalmente distinta daquele idílio de igualdade e poder popular incensado aos sussurros por meus professores libertários de Geografia Política, Filosofia e História Mundial. Coisa esquisita. Como é que podia um chinês não defender o comunismo? Se possível fosse, o mundo devia ser bem mais complicado do que uma laranja que a gente corta ao meio e escolhe uma metade para chupar.

Li e reli gente dos dois lados e não fui capaz de escolher uma cor ou uma posição de preferência absoluta. Não conseguia ver o mundo pela lógica da luta de classes. Nem pelas regras da economia e dos mercados. Tentando, esbarrava numa fatia da política que lembra muito o pensamento religioso. Fui fazendo escolhas duplas, multifacetadas, compostas. E desde cedo sofri críticas como se fosse uma espécie de agente duplo.

Passei anos cultivando um repúdio tão denso e sincero ao maniqueísmo quanto meu juízo de valor a qualquer forma de regime autoritário. Primeiro, recusei-me a demonizar exclusivamente a China. Não era só lá que se davam as desumanidades: mas também na República Tcheca de Milan Kundera, na Rússia de Soljenitzine, na Albânia de Ismail Kadaré.

Do lado de cá? Ah, o lado de cá era bem conhecido. Um regime também militar mas antagônico ao ideário comunista também aplicara suas barbaridades no meu próprio país. E regimes semelhantes se esbaldaram em repressões de toda sorte nos vizinhos sul-americanos. Sem falar no fundamentalismo religioso do Oriente Médio.

Nas experiências capitalistas era outra coisa. Mas não exatamente um mundo melhor. Contemporâneo às barbáries stalinistas, o cenário da América de Horace McCoy me mostrou uma gente subjugada não por um regime ou por um partido, mas pela miséria. Na brutalidade nonsense do conterrâneo Truman Capote, norte-americanos bestializados pelo mais tacanho pensamento e estilo de vida. Não era diferente com os personagens mendicantes de John Fante e, mais tarde, Charles Bukowski. Capitalismo ou comunismo, não é só pela política que se espreme um homem. E, falando em espremer, impossível não lembrar da maldita laranja mundial.

Muito, muitíssimo mais tarde, voltei aos chineses. Lendo romances de estupendos escritores como Ha Jin e Yiyun Li, concluí que o mosaico de Bao Lord não dirigia seu ódio a uma cor ou um partido, mas sim aos produtos da miséria e da ignorância dos quais se nutriam um partido, um sistema econômico e um regime político. E se ainda não consegui encaixar todas as peças do mosaico, me acode uma certeza: não há salvação no pensamento único. A culpa, no meu caso, é de uma chinesa.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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