Helvoetsluys, de William Turner

O lado bom de cometer erros e de não entender algo

Por Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
9 min readJul 19, 2016

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Nem sempre é bom estar certo, às vezes o erro é o nosso maior amigo. Aprendi mais com meus equívocos do que acertando. Foi o que aconteceu com a minha leitura de Lovecraft. A minha introdução à obra do escritor americano, pai dos Old Ones, foi, para dizer o mínimo, lovecraftiana. Existiu um tempo da minha vida em que fui metaleiro. Na verdade, ainda sou, mas agora atuo de forma discreta e disfarçada; deixei para trás os tempos de cabelos compridos e de ódio visceral a tudo que não servisse ao Deus Metal — hoje sou uma pessoa mais calma, ainda que somente por fora. Foi na condição de metaleiro que, ao escutar o álbum “Master of Puppets”, do Metallica, descobri uma música chamada “The thing that should not be” (em uma tradução livre, poderia ser tanto “a coisa que devia não ser” quanto “a coisa que devia não estar”). Um título que me atraiu desde o início, apesar da música não ser a minha favorita; sempre fui uma pessoa ligada mais à ideia do que à forma das coisas.

Naquela época, nos primórdios da internet, não tínhamos acesso a muita informação, e em uma revista descobri que a música se relacionava ao universo de Lovecraft. Com paciência — pois quase não existiam obras dele traduzidas no Brasil e, se existiam, passavam longe das livrarias de Porto Alegre — encontrei os textos e li no original, com extrema e absoluta dificuldade. Só quem leu Lovecraft sabe que o inglês dele já é complicado para um nativo de língua inglesa, o que dizer para um rapaz de seus 15 ou 16 anos portando somente um Dicionário Michaelis de Bolso para dominar o mundo. Traduzi de forma precária as histórias e, com relação às muitas palavras que escapavam dos limites do dicionário e que não conseguia encontrar sentido algum, eu imaginava um sentido para prosseguir a leitura (Cícero e São Jerônimo, cujas teorias tradutórias estudamos tanto, devem estar dando piruetas dentro dos seus túmulos após tal confissão). Hoje posso dizer que metade do que li do Lovecraft está escrito e a outra metade foi imaginado, a ponto de, quando estou relendo alguma história atualmente, ter a pretensão de pensar “opa, está tudo errado!”. Aliás, minhas versões internas para as histórias lovecraftianas são muito legais, mas não competirei com a realidade. O livro é um autor e as suas circunstâncias. Ler também é um ato de subversão e de criação.

Por muito tempo procurei a história que contivesse a expressão que me encantara, e nunca encontrei. Achava que fosse algum problema na minha busca, mas algumas semanas atrás me disseram a dura verdade: Lovecraft nunca escreveu “the thing that should not be”. Ela foi criada pelo próprio Metallica para intitular a música composta em homenagem ao autor de “O chamado de Chtulhu” e de “A busca onírica por Kadath”. Parti de um pressuposto errado — uma música que homenageia Lovecraft precisa ter origem na sua obra — e esqueci que poderia ser inspirada pelas suas criações. Um erro de principiante, admito.

Ao tentar encontrar algo que não existia, acabei chegando a uma série de outras descobertas.

Qualquer pessoa se irritaria ao perceber que passou dois anos da adolescência perdido na caçada inútil a uma expressão, mas esse equívoco me forçou a ler obras que, de outra forma, não leria, além de testar meu inglês até os limites do impossível — ao ponto de me fazer criar substitutos imaginários para as palavras que não conseguia decifrar. O erro foi mais importante do que o acerto. E se hoje as histórias de Lovecraft se entrelaçam com aquelas que criei e com as histórias de outros, todas em uma alegre confusão intertextual dentro da minha cabeça, não foi por causa dos livros que li intencionalmente, mas graças àqueles a que cheguei em virtude do equívoco.

Ninguém está livre de errar, mas dentro do erro pode estar o acerto. Nem tudo está ao alcance do olhar; às vezes, a verdade pode estar escondida justamente diante dos olhos, debochando da nossa sanidade, pois conseguimos ver que estamos quase atingindo a elucidação completa. Tão próximos, tão longínquos.

É preciso coragem para retificar um problema ou admitir que se errou, ainda mais publicamente. Foi o que o pintor William Turner fez no Salão de Artes da Academia Real Francesa em 1833, ainda que seu gesto tenha sido interpretado como uma atitude de desafio e não a correção de um equívoco. O quadro “Helvoetsluys”, de Turner, foi posto ao lado de “A abertura da ponte Waterloo”, uma pintura que John Constable, seu maior adversário, ficara preparando durante 10 anos. Naquela época, antes de abrir a exposição ao público, os pintores tinham o direito de fazer os retoques necessários na obra até um dia antes e assim, enquanto Constable fazia mais e mais retoques, Turner ficava entrando e saindo da sala, observando o outro à distância.

Turner não resistiu e, com um amigo pintor, comentou em voz alta sobre os tons de vermelho usados pelo inimigo, sabendo que ele escutava a crítica. O clima era tenso. Em certo momento, William Turner saiu da sala e, ao voltar, dirigiu-se até o seu próprio quadro e, com um pincel cheio de tinta vermelha, colocou uma grosseira mancha vermelha no meio do mar. Em seguida, saiu do salão. Ninguém entendeu a sua atitude de estragar o próprio quadro com um borrão vermelho em meio ao azul, ainda mais sabendo que a sua reputação estava em jogo e justo ao lado do seu maior adversário. Todos consideraram um ato de auto-sabotagem de Turner, uma conduta destrutiva típica de um artista indeciso.

No dia seguinte, faltando alguns minutos para o término dos ajustes nas obras deixadas para exibição, Turner voltou a entrar no salão. John Constable continuava retocando “A abertura da ponte Waterloo”. Sem pestanejar, o pintor dirigiu-se até “Helvoetsluys” e, com um movimento delicado do dedo, refez a mancha vermelha depositada no dia anterior, transformando-a em uma boia perdida em meio ao mar. Realizado esse gesto, novamente virou as costas e foi embora.

O som de admiração percorreu o local. O quadro acabava de ganhar um outro sentido: ao invés de retratar barcos preparando-se para uma batalha, ele se tornara o testemunho da derrota e do naufrágio que se sucederia. Os barcos não estavam indo para a batalha, mas se preparavam para sua derrocada final, em que a boia era o indicativo solitário do desastre que se prenunciava. John Constable deixou o descontrole tomar conta de si, afirmando para um colega artista “Ele [Turner] esteve aqui e disparou uma arma!”.

No dia seguinte, os críticos foram unânimes em elogiar William Turner e seu “Helvoetsluys”. Para Constable, que infelizmente estava ao seu lado, foram reservadas críticas pesadas para o trabalho preparado durante dez anos. “Muito inacabado, senhor”, falou Thomas Stothard. O jornal The Morning Herald levou a ofensa a um novo nível: “O senhor Constable pelo visto pensa ser um Turner”.

Todos consideraram o gesto tresloucado de Turner uma maneira de humilhar o adversário, ridicularizando a forma obsessiva com que se entregava aos detalhes. Para Turner, o pintar era uma atitude orgânica, que antecedia o raciocínio lógico, o contrário do que John Constable imaginava como o ideal de arte. No entanto, é grande a tentação de imaginar que, observando “Helvoetsluys” à distância, Turner tenha enfim visto o que estava faltando na sua própria obra, retificando a omissão de forma violenta, incompreensível para os outros, mas fazendo todo o sentido para ele mesmo. O espectro da boia vermelha estava o tempo inteiro ali, o autor da pintura que não a tinha notado até quase ser o momento final.

Todos os indícios de fazer algo de forma correta estão ao alcance dos nossos sentidos, nós que insistimos em negar a verdade. Até por que ter a coragem de mudar um erro e agir de forma destrutiva contra si mesmo como Turner fez, destruindo o quadro que pintara com tamanho empenho para refazer o seu sentido diante dos olhos do público, demanda uma grande dose de coragem.

Quem de nós seria capaz de retificar um erro ou omissão a qualquer custo, mesmo perdendo reputação ou prestígio?

Assim como é preciso coragem para corrigir um erro, é um talento esconder a verdade diante dos olhos de todos, impedindo-os de ter a compreensão total da situação que, ao mesmo tempo, possui todos os elementos para ser decifrada ao alcance dos sentidos. É a crítica que se faz na comparação entre Sherlock Holmes, de Conan Doyle, e Hercule Poirot, de Agatha Christie: enquanto as histórias policiais de Agatha Christie possuem todos os elementos necessários para o leitor chegar sozinho ao culpado, os contos protagonizados por Sherlock Holmes possuem informações que somente o detetive conhece, retirando-os da cartola no momento de decifrar o mistério. Por esse ângulo de análise, Agatha Christie leva vantagem. O leitor pode decifrar o mistério; todos os dados estão ali, tudo depende somente da sua inteligência.

Tapeçaria “Caçada ao unicórnio”

No conjunto de tapeçarias “Caçada ao unicórnio”, feitas entre os anos de 1495 e 1505, todos os elementos estão disponibilizados para quem contemplá-la. Ainda assim, não conseguimos entender direito o símbolo colocado à nossa vista. Para começar, ninguém sabe quem a teceu, o que ajuda a dificultar um eventual entendimento. Além disso, desconhecemos quantas peças constituíam o trabalho original: se eram as sete tapeçarias que hoje conhecemos ou se existem mais que ainda estão perdidas. Existem dúvidas inclusive se elas foram tecidas para serem exibidas ou se eram para adornar um quarto ou sala de jantar. Uma das poucas certezas que rondam esta série de tapetes é o fato de que elas nunca foram dependuradas em sequência, ficando sempre separadas uma das outras; quem orquestrou as tapeçarias tinha noção de que cada quadro funcionaria de forma individual, e que juntos comporiam uma história inteira, a qual nunca seria plenamente conhecida, a não ser pelo seu autor.

Tentando analisar a imagem, os mistérios somente se aprofundam. O que representa o unicórnio? Quem são as pessoas ocupadas em caçar e destruir o animal mitológico? As interpretações são as mais variadas: para quem estuda os mitos cristãos, o conjunto de tapeçarias representa a Paixão de Cristo; o unicórnio seria uma forma encontrada para representar Cristo, e toda a descrição da sua morte seria uma bem construída imagem religiosa, sem esquecer a crítica embutida em meio às imagens (foi o rei quem ordenou a morte do unicórnio e recebe a sua carcaça, ou seja, seria uma versão moderna de Pôncio Pilatos).

Mas também existe a interpretação gótico-romântica, em que o unicórnio representa o mistério, a magia, o encantamento, que é ardorosamente perseguido pelas pessoas ansiosas para destruir aquilo que não entendem. Nesse caso, o unicórnio seria um símbolo para o amor idealizado, e a sua caçada e morte seria atingir tal sentimento. Ainda há quem veja na série de tapeçarias uma construção inclusive artística, em que as pessoas comuns caçam a nova forma de arte — o unicórnio — e, ao alcançá-la, acabam por destruí-la, invejosos por não serem capazes de imitá-la. Assim, o artista — ou a própria noção de arte — seria o elemento que deve ser perseguido e aniquilado pela sociedade.

Tapeçarias são interessantes, pois tudo está à vista e, ainda assim, temos mais dúvidas do que certezas. Vale recordar “A dama e o unicórnio”, um conjunto de tapeçaria altamente sensual retratando o amor, ao mesmo tempo cândido e erótico, de uma mulher por este ser mitológico. Deixar tantas dúvidas é permitir que, ao tentar interpretar, cometemos mais erros do que acertos e, na mesma forma do erro que me guiou até a leitura da obra completa de Lovecraft, muitas pessoas acabaram criando novas obras ao ver as possibilidades de significados que continuam inacessíveis no interior de “Caçada ao unicórnio”.

Não entender algo e sentir-se livre para errar, eis a força motriz do nosso progresso. Se eu fosse resumir a minha vida, não incluiria as epifanias, descobertas ou vitórias, mas as grandes burradas e incapacidades de compreensão que, enquanto tentava responder, acabaram me forçando a evoluir. Pois ser uma pessoa melhor é isso: errar até cansar e, no meio de tantos erros, colher alguns acertos.

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Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contosO homem despedaçado.

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