Marilyn Monroe praticando a autoironia

Os leitores improváveis

Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
9 min readMar 30, 2016

--

Não faz muito tempo, contaram-me uma história tão incrível que só pode ser realidade. De passagem por uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, uma amiga parou na livraria com o objetivo de comprar um presente para seu sobrinho. Em um canto, quatro senhoras conversavam tomando chá, e ela reconheceu, sobre a mesa, o meu livro. Perguntou para a dona da livraria o que aquelas senhoras estavam fazendo, e foi informada de que eram aposentadas decididas a começar um clube de leitura. No entanto, há seis meses estavam “empacadas” no primeiro livro. Não conseguiam seguir adiante. E a obra escolhida para iniciar o grupo — e empacá-lo — era justamente “O homem despedaçado”.

Claro que a minha amiga se divertiu horrores contando esta história: “tinha que ser tu, Gustavo”. Disse ter pensado em revelar que conhecia o autor, mas teve receio das reações, pois as mulheres poderiam ficar tímidas ou retraídas. Ela me informou o nome da cidade e o da livraria, e se não os divulgo é por que prefiro manter a sacralidade do mistério. Não desejo que alguém vá atrapalhar ou dar dicas para as quatro senhoras na sua jornada rumo ao interior do meu livro. Elas que encontrem o seu caminho — ou que desistam de encontrá-lo.

Contudo, cada vez que recordo desta história, sinto forte vontade de intervir. Sair de Porto Alegre, dirigir-me até a outra cidade e, anônimo, assistir a uma distância confortável as discussões do grupo de senhoras. Fazer de conta que o assunto não me interessa, apagar quem sou, voltar a ser leitor do meu próprio livro — afinal, fui o primeiro, e li antes de todos os outros. Ver o que elas estão achando, aquilo que dificulta o seu caminho.

Em um momento de mais amplo delírio, penso inclusive em romper a isenção e sentar-me junto à mesa, identificar-me como o autor da obra, colher as opiniões diretamente, sem intermediários, sem vozes virtuais, sem falsos elogios, sem críticas gratuitas — só um homem e suas quatro leitoras que não lhe entendem. Seria o sublime Deus ex-machina: o autor que desce dos céus para explicar a sua criação e salvá-la.

No entanto, por maior que seja a vontade, não farei isto. Existem aspectos da relação do autor com os seus leitores que não devem ser rompidos, e um deles é o direito à incompreensão. O leitor tem o direito de se inquietar com um livro que lhe desafia e o qual ele não se sente preparado para entender. É um percurso que cada pessoa deve fazer sozinha com o livro escolhido, e que o autor, longe de ajudar, só atrapalharia.

Pensar sobre esta história me fez recordar uma categoria de leitores quase ignorada: os improváveis. Aqueles que leem obras incompatíveis com o seu grau de conhecimento do mundo, que estão lendo no momento errado ou que um autor jamais imaginou a sua existência no momento em que estava escrevendo.

Imaginar leitores improváveis atrai os estereótipos ligados à leitura. Em geral, quem se entrega à degustação de um livro é visto como uma pessoa inteligente, introspectiva, fechada, não raro feia (ou desprovida de atrativos), que prefere se refugiar em um mundo ficcional ao invés de lidar com as agruras do mundo dito verdadeiro.

Como todo estereótipo, ter esta imagem de um (ou uma) leitor(a) é limitador. Impossível não recordar as fotos icônicas de Marilyn Monroe lendo James Joyce, William Faulkner, Heinrich Heine. Nas biografias escritas a respeito da atriz, consta que as suas fotos favoritas eram aquelas em que aparecia lendo, pois, mais do que atuar (fotografar também é uma forma de representação), estava mostrando uma faceta da sua personalidade.

Marilyn Monroe era uma grande leitora. Dizia que seus livros eram a melhor companhia nas noites de insônia. A sua biblioteca pessoal era formada por mais de 500 exemplares e, a julgar pelas anotações e frases sublinhadas, os biógrafos acreditam que ela leu em torno de 338 livros. A atriz americana tinha como ídolos pessoais Saul Bellow e Carl Sandburg. Entre seus melhores amigos, estavam Truman Capote e Isak Dinesen. Foi casada com Arthur Miller.

Ainda assim, quando saíram as fotos, não foram poucas as pessoas que consideraram impossível que uma mulher bonita, atriz de cinema, alguém acostumada a conhecer celebridades e presidentes, fosse também uma leitora que prezasse a solidão que mora dentro de um livro. Parecia errado que uma mulher pudesse ser bonita, bem sucedida e, não bastando, inteligente. Não entrava no estereótipo. Uma série de reportagens ironizou as fotos: alguns jornalistas sugeriram a sabatina de Marilyn Monroe por escritores e críticos literários, pretendendo mostrar que as fotos eram o seu desejo de escapar da imagem de “loura burra”.

A atriz nunca deu atenção para tais comentários inoportunos. Quem lê de verdade sabe que não precisa ficar dando provas da sua leitura. O máximo que Marilyn fez foi responder a tais ataques com uma foto igualmente célebre, na qual cedeu de forma irônica aos estereótipos em que tentavam encaixá-la, posando imersa na leitura de um livro, o qual se encontrava de cabeça para baixo.

Ninguém imaginava que Marilyn Monroe pudesse ser uma leitora voraz, e este é um tipo de leitor improvável: aquele que as nossas visões estereotipadas do mundo dizem que determinado livro não foi feito para ele.

É a mesma sensação que temos ao ver o quadro de Emil Filla, “O leitor de Dostoiévski” (1907). Sobre a cadeira, o leitor jaz, derrotado, exaurido. A obra de Dostoiévski não serviu somente para lhe abrir novos questionamentos, mas representou uma exaustão física comparável a que Temístocles deve ter sentido após correr a primeira maratona. Todo o quadro revela o cansaço de alguém que leu — com dificuldade — algo muito maior do que podia; o tubarão que tentou engolir uma baleia. Na parede, o crucifixo é uma recordação dostoievskiana de que mesmo Deus se mantém indiferente quando o assunto é a leitura. Mas também pode ser uma ironia: venha a mim e serás acalentado, ainda mais depois de ler este russo intenso.

“O leitor de Dostoiévski” (1907)

Outra categoria de leitores improváveis são os que estão lendo no momento errado. Na época do atentado terrorista contra as Torres Gêmeas em setembro de 2001, recordo de uma foto. Nela, um homem lia um romance enquanto o avião investia ameaçadoramente contra o prédio. Não sei até hoje se era uma foto real ou uma falsificação, mas passa um estado de espírito que surge em outras pinturas e fotos: a pessoa que está lendo enquanto o mundo ao seu redor prepara-se para modificar. O leitor que não testemunha a História, mas está entregue à ficção de um livro no momento em que ela acontece.

Um caso engraçado na História da Arte — e que por si só merecia um estudo apartado — diz respeito a Torquato Tasso, autor do monumental “Jerusalém Libertada”, um épico realmente incrível. Em quase todos os quadros que ele aparece, Torquato está lendo a própria obra. Da mesma forma, em quase todos os quadros, a sua plateia está entediada ou cochilando ou rezando silenciosamente para estar o mais longe possível dali. Não suficiente, os semblantes do público revelam desprezo, sono, fome, indiferença, cansaço e até mesmo desespero. Parecem dizer “pelo amor de Deus, alguém cale este homem, libertem logo Jerusalém e nos deixem em paz!”.

No quadro de Francesco Podesti, dois homens conversam descuidadamente no canto da tela enquanto Torquato Tasso lê em voz alta para uma plateia distraída; no quadro de Domenico Morelli, Eleonora luta contra o sono ouvindo o autor; no quadro de Luigi Mussini, a mesma Eleonora ergue os olhos para o céu em súplica enquanto Torquato lê na sua frente; na pintura de Karl Ferdinand Sohn, o autor está distraidamente lendo em um jardim e Eleonora se afasta com cautela dele, para não ser obrigada a escutá-lo; em outro quadro de Morelli, não só Eleonora enfrenta o sono, como a criada ao seu lado já está dormindo, embalada pelas palavras de Torquato Tasso; na pintura de Elie-Honoré Montagny, imerso em tédio, o Duque de Ferrara é flagrado fazendo um impaciente movimento de mão para uma figura que está atrás do escritor, o qual lê em voz alta. A julgar pelas representações de Torquato Tasso, suas leituras públicas deviam ser a melhor maneira de combater a insônia.

Se considerarmos que a leitura em voz alta também pode ter leitores improváveis, Torquato Tasso está lendo para o pior tipo: que está ali somente de corpo, e não de espírito. O leitor improvável que lê por circunstâncias alheias à sua vontade. O leitor que está na hora e no local errado e, mesmo assim, está lendo.

As leituras de Torquato Tasso

Outro exemplo de pessoa “lendo sem querer ler” seria Nanette, a esposa de Diderot. Em carta escrita em 1781, o iluminista francês descreveu o método que usava para “curar” Nanette, para quem os únicos livros aptos a serem lidos deveriam conter lições edificantes do ponto de vista espiritual, ou seja, auto ajuda. Diderot resolve ministrar-lhe uma dieta diária constituída pela leitura de literatura vulgar: “Tornei-me seu Leitor. Administro-lhe três pitadas de ‘Gil Blas’ todos os dias: uma pela manhã, outra após o jantar e uma à noite. Quando terminarmos ‘Gil Blas’, passaremos para ‘O diabo sobre duas varas’, ‘O celibatário de Salamanca’ e outras obras estimulantes da mesma categoria. Alguns anos e umas poucas centenas dessas leituras completarão a cura. Se tivesse certeza do sucesso, não deveria queixar-me do trabalho. O que me diverte é que ela recebe todos que a visitam repetindo-lhes o que acabei de ler para ela, de tal forma que a conversação duplica o efeito do remédio. Já falei dos romances como produções frívolas, mas descobri finalmente que eles são bons para a depressão.” Não chegou até nós o que Nanette pensava sobre receber estas doses diárias de literatura de má qualidade, mas não resta dúvida de que Diderot acreditava que a melhor forma de resolver o politicamente correto que infestava a sua esposa era através da leitura.

Conta Alberto Manguel em “Uma História da Leitura” que, na “Lista de preços das prostitutas de Veneza” de 1536 — um catálogo das melhores e piores madames profissionais da cidade na época — aparece uma mulher, Lucrezia Squarcia, “que se diz amante da poesia”e que trazia sempre consigo “um libreto de Petrarca, um Virgílio e às vezes até um Homero”. Interessante imaginar o tipo de cliente que procura uma prostituta cujo diferencial erótico seja ler literatura clássica, mas com certeza não era assim que Petrarca, Virgílio e Homero imaginaram que, um dia, seriam lidos: como preliminares sexuais, ou mesmo como o ato em si.

Assim chegamos ao último tipo de leitor improvável: aquele que o autor jamais imaginou que iria ler o seu livro. O invisível. O inesperado, que pega o livro e pensa “eu vou ler isso daí”, mesmo sem saber se irá gostar. Não foram poucas as ocasiões em que alguém se aproximou e disse ter lido meu livro, e meu primeiro pensamento — quase um grito de agonia — foi “mas não era para você ter lido!”. Não foi você quem imaginei ser meu futuro leitor.

Umberto Eco afirma que todo autor escreve para um único leitor, a quem chama de Leitor Ideal, uma figura idealizada com quem o escritor conversa imaginariamente quando está redigindo o seu trabalho, o interlocutor perfeito. Nunca encontraremos este Leitor Ideal. Mas, às vezes, ele se revela, e neste instante recordo de uma história contada pelo escritor José Francisco Botelho: certa feita, ele caminhava por uma rua de Bagé à noite quando passou um carro velozmente ao seu lado. Do banco do carona, uma moça de feições esmaecidas colocou a cabeça para fora e gritou “Árvore que falava aramaico!”, que é o título do seu livro. O carro seguiu seu caminho, e o escritor nunca soube quem era a misteriosa leitora que o reconhecera não pelo nome, mas pela sua obra. Se eu pretendesse representar um encontro com o Leitor Ideal seria assim: uma pessoa que estamos fadadas a jamais encontrar, mas que está sempre por perto, onde menos esperamos. Como o leitor improvável.

Na relação literária, o escritor é quem possui menos direitos. Tão logo lançada a obra em meio a este mundo repleto de livrarias selvagens e bibliotecas famintas, ela deixa de pertencer ao seu criador. E, agonia das agonias, encontrará os mais diferentes tipos de leitores pelo seu caminho, que farão de tudo com o livro e pensarão o que bem entenderem sobre ele. Não sei o que as quatro leitoras que desbravam o meu livro nos últimos seis meses estão pensando, e nem se pensam aquilo que eu gostaria que pensassem, ou a emoção que tentei passar com a história. Contudo, sei que elas estão tendo dificuldades para entender meu livro, e não posso sequer lançar uma boia de resgate para ajudá-las a nadar no meio deste mar furioso a que chamam de literatura. Só me resta ficar na torcida por estas leitoras que, sem querer, entraram na teia de palavras que teci com tanto carinho.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contosO homem despedaçado.

--

--

Editora Dublinense
Coleção Dublinense

A Editora Dublinense é um projeto editorial eternamente em construção. Organizada em três selos: Dublinense, Não Editora e Terceiro Selo.