Os livros atrapalhados
Gustavo Melo Czekster
Nem sempre o livro certo chega na hora necessária. Às vezes, a obra muito errada acaba aportando no momento menos apropriado da vida de alguém, e essa experiência vira algo traumático. É um erro imaginar que a Literatura é uma sequência lógica e evolucionária em que cada narrativa chega naturalmente às mãos de um leitor, que se sentirá satisfeito e engrandecido após a sua leitura. Ao contrário, o mais normal é os livros se atrapalharem, se equivocarem, darem péssimos conselhos e ainda nos deixarem tristes. Ler é uma experiência mais ligada ao caos do que à alegria, e nem sempre os livros nos fazem bem.
Falo isso pela consternação que causei de forma inadvertida quando, certa vez, ao final de uma palestra, me perguntaram qual era a história mais terrível que eu já tinha lido, e respondi sem titubear “Éramos seis”, de Maria José Dupré. A plateia trocou olhares de espanto e risadas: como pode um livro da Coleção Vagalume ser mais terrível do que “Drácula” de Bram Stoker, “Frankenstein”, de Mary Shelley, ou “A coisa”, de Stephen King? (Eu estava palestrando sobre literatura de terror).
Expliquei os motivos para afirmativa tão categórica. Quando li “Éramos seis”, eu tinha 10 anos de idade, e foi a primeira vez que tomei consciência da morte. Através da literatura, descobri que, em futuro não tão distante, a minha situação de equilíbrio familiar iria se encerrar, que a morte se instalaria no meio das pessoas amadas e que dificilmente voltaríamos a ficar juntos sob o mesmo teto.
A plateia concordou comigo, em especial pela descrição que fiz de “Éramos seis”, um livro que ainda tem cheiro de morte na minha memória. Os anos passaram, e provavelmente não lembro tanto dos eventos internos da história, mas recordo da sombra que perpassa pelas suas páginas: tudo vai acabar. As pessoas que amo irão morrer até que, eventualmente, eu também morrerei. A prosa é seca, um pouco repleta de arcadismos, e em nenhum momento o objetivo do livro é escancarado, a não ser no seu final, quando olhamos a capa e pensamos no título, “Éramos seis”, como uma antecipação direta das perdas vivenciadas pelos personagens.
É uma obra cruel, em especial para uma criança cheia de futuro e de alegrias ainda não experimentadas. Quando se mergulha com ímpeto dentro de uma narrativa, e se vivencia o drama dos personagens como se fosse o seu próprio, qualquer livro pode ser assustador ou incrível. Sinto-me um pouco mais consolado por que, ao final da palestra, duas professoras se aproximaram e confidenciaram que também tinham muito medo de “Éramos seis”. Leram durante a infância e passaram semanas aterrorizadas com a ideia de que os seus pais podiam morrer ou desaparecer a qualquer minuto. É possível, aliás, que exista uma ou duas gerações aterrorizadas em silêncio pela morte contida no exemplar amarelo cobre de “Éramos seis”.
Foi um livro que contou que eu iria morrer e a minha família acabaria. Ele não tinha o direito de acabar com a minha ilusão, mas não perguntou nada, veio e revelou a verdade. A primeira parte ainda não aconteceu e a segunda mais ou menos, pois é difícil perceber os momentos de modificação das famílias: no caso da minha, ganhamos novos membros, outros estão distantes e até mesmo a morte já veio colher alguns. O fato é que nunca mais seremos os mesmos seis, estaremos sempre em mudanças. O maldito livro estava certo, mas precisava dizer tão cedo?
Também existem obras que somente surgem depois que já cometemos o equívoco. O estilo de texto que, se tivéssemos lido antes, teria nos alertado para a burrice da nossa conduta. É um Deus ex-machina que chega atrasado, vê o herói morto e ainda diz “bom, então ficarei de alerta para que outras pessoas não façam o mesmo”. Em uma linguagem moderna, seria o “miga, não faz isso”.
Melhor exemplo aconteceu com Michel de Montaigne. Quando tinha 15 anos, Montaigne assistiu a uma cena que lhe fascinaria e repugnaria em igual medida. A cidade de Bordeaux passava por uma revolta, com multidões de populares ocupando as ruas em protestos contra o aumento dos impostos ordenado pelo rei. O comandante da guarda da cidade, Tristan de Moneins, fechou-se no interior do Château Trompette, onde poderia resistir por semanas de cerco. Ao redor do lugar, os revoltosos se concentraram, desafiando o representante do rei a sair para convencê-los da regularidade da conduta. Pois Tristan de Moneins imaginou que ganharia o respeito da cidade se os enfrentasse cara a cara, e saiu do castelo sitiado para conversar com os adversários. Existe um motivo para políticos raramente se dirigirem ao encontro da multidão sem um grupamento de segurança a lhes cercar, e basta imaginar a cena que percebemos o presunçoso erro do comandante, pois, enquanto tentava conversar com a multidão enfurecida, foi cercado, linchado e esquartejado.
Montaigne ainda era um jovem, e estava longe de ser o filósofo que um dia se tornaria. No entanto, a cena ficou gravada de tal forma na sua memória que alguns dos ensaios escritos mais de 30 anos depois ainda se referem ao tema, analisando os erros e equívocos da conduta do comandante assassinado.
Não bastando esmiuçar as atitudes dele, ainda procurou outros exemplos na História da Humanidade em que um homem ficou cercado por uma turba e conseguiu sair vivo, citando exemplos da Roma antiga. Os títulos dos ensaios são auto-exemplificativos: “Se o comandante de uma praça sitiada deve sair para negociar” e “A hora das negociações é perigosa”, para ficar nos mais famosos. A conclusão de Montaigne é que Tristan de Moneins cometeu o erro decisivo de sair para encontrar a multidão e, no meio do caminho, se apavorou e tentou voltar atrás, o popular ditado “se está no inferno, vai lá e dá um abraço no diabo”:
“Não se pode negar que [Tristan de Moneins] demonstrou coragem ao enfrentar desarmado um mar de furiosos. Mas sua única esperança então seria manter até o fim a atitude de desafio. Ele devia ter bebido da taça até o fim, sem abandonar seu papel; ao passo que o que lhe aconteceu foi que, tendo visto o perigo de perto, perdeu o sangue frio e mais uma vez mudou a atitude aplacada e de lisonja que havia assumido, mostrando-se assustado e deixando transparecer surpresa e arrependimento na voz e no olhar. Tentando esconder-se, ele inflamou a multidão, que se abateu sobre ele.”
É uma pena que as dicas de Michel de Montaigne não puderam ser aproveitadas por Tristan. Acaso o homem tivesse lido as opiniões do filósofo ANTES de sair do castelo cercado, provavelmente teria sobrevivido. No caso do comandante francês, o livro chegou tarde demais. Era o texto certo para o leitor ideal, mas estava atrasado e, assim, hoje conhecemos a melhor maneira de parlamentar com multidões furiosas, mas um homem teve que morrer para que tal ensaio existisse.
Também existem livros que nasceram desviados das suas funções originais. Eles só seriam apreciados e estudados anos depois do seu surgimento, mas, na época em que estavam caminhando os primeiros passos pelo mundo, não só não tinham leitores como literalmente não valiam o papel da sua impressão.
Quando estivermos decepcionados com a vida literária, ou com a eterna agrura de ser um autor que ninguém entende (mal que aflige a todos os escritores), valeria lembrar o pobre Jean Froissart, um escritor francês do final do século XIV que escreveu “Méliador”, uma extensa história baseada nos mitos do rei Arthur. Era uma trama tão longa e tediosa que os nobres franceses contratavam o escritor para lê-la ao pé das suas camas. Assim, “Méliador” ganhou a injusta reputação de ser um livro aconselhável para terminar com a pior das insônias. Um livro chá de camomila.
Imagino a frustração de um escritor como Froissart, que foi contratado pelo conde du Blois para, durante seis semanas, toda vez que o conde fosse dormir, postar-se junto aos pés da cama e ficar lendo a própria obra até que a insônia do outro fosse embora. É o pior desprestígio para um criador: ter o seu livro usado não para encantar, mas como um objeto que induz o sono. Ainda assim, a obra sobreviveu à passagem dos anos. Jean Froissart não é muito lido, e menos ainda conhecido, mas, ao menos, hoje não é mais usado para acabar com a insônia.
Outra modalidade de livro que chega na hora errada é aquele que não queremos ler, mas somos presenteados, e não raro com as melhores intenções. Na Europa do século XV, uma moda peculiar surgiu nos círculos mais nobres. Quando algum familiar estava adoentado e ninguém sabia direito qual mal lhe afligia, ele então recebia de presente um livro, intitulado “Ars moriendi”, ou “A arte de morrer”.
Imaginem a cena: você está deitado na cama, sentindo-se enfermo. Médicos entram e saem, propondo sanguessugas e outros tratamentos que não resolvem o seu problema de saúde. Você se sente mal, mas acha que logo vai passar, tudo vai dar certo. De repente, entra um familiar lhe trazendo um presente, e é um livro que lhe ensina como morrer com dignidade. A intenção era ótima, pois era melhor prevenir do que remediar. Eis uma leitura bastante agradável para se realizar em um momento tão delicado.
Os capítulos não podiam ser mais tensos. Em geral, o “Ars moriendi” clássico tinha seis segmentos. No primeiro, o autor explica que morrer não é algo tão ruim, que a morte pode ser uma experiência bem legal e instrutiva, não algo assustador. Estão tentando consolar o moribundo, fazê-lo olhar “o lado bom de estar morrendo”. No segundo capítulo, o livro abordava os cinco perigos que a pessoa podia enfrentar nos últimos segundos de vida: falta de fé, impaciência, desespero, orgulho espiritual e avareza. Também dava dicas de como evitar essa tentação final, e uma delas chama atenção: morda a língua. Alguém está em vias de morrer, precisando se preocupar em não dizer bobagens ou maldições e, para tanto, o mais indicado é morder a língua.
No terceiro capítulo, estão as sete perguntas que se deve fazer para um homem agonizante (as mesmas que Deus lhe fará nas portas do Paraíso, e não sei como conseguiram tal spoiler do Altíssimo), assim como algumas palavras de consolo que podem ser direcionadas por ele para a família e vice versa. O quarto capítulo do “Ars moriendi” ostenta trechos da vida de Jesus que servem de exemplo ao moribundo para que ele não esmoreça. O quinto capítulo fornece dicas de conduta para os amigos e para a família do quase morto, estabelecendo as diretrizes para o que acontecerá no leito de morte e depois dele. É importante organizar tais detalhes. Por fim, o último capítulo sugere uma série de orações e cânticos que os presentes podem entoar para o agonizante, a fim de que ele entre no outro mundo com a trilha sonora apropriada.
Essa modalidade de presente foi muito apreciada durante quase 100 anos. Hoje achamos de mau gosto, mas as pessoas do passado eram mais pragmáticas. É o caso de livro que não gostaríamos de ganhar, pois não só nos diz que vamos mesmo morrer, que não tem mais chance de nos salvarmos, mas ainda alerta que agora tudo é uma questão de ajustar condutas e burocracias para não atrapalhar muito.
Assim como as pessoas, os livros nem sempre estão certos. Às vezes eles são atrapalhados, se esbarram e cometem indiscrições, e a literatura está farta de casos em que os livros mais atrapalharam do que ajudaram. Eles podem aparecer na vida de alguém no momento errado e trazer a morte para o meio da infância (caso de “Éramos seis”), ou podem chegar atrasados para nos salvar (como os ensaios de Montaigne sobre Tristan de Moneins demonstram), ou podem ser usados de forma diferente do motivo para o qual nasceram (caso de Froissart e seu “Méliador”, um livro considerado como a cura da insônia), ou ainda são o pior tipo de presente que alguém pode receber (quem deseja aprender a morrer direito lendo um tutorial em “Ars moriendi”?). Mesmo assim, e novamente como acontece com as pessoas, o livro errado para alguém pode ser o certo para outro alguém, e assim caminhamos por entre bibliotecas, sempre na dúvida se o livro escolhido é amigo ou inimigo, herói ou vilão. Exatamente como as relações humanas.
Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.