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Os livros que eu gostaria de ler no meio de um jantar enfadonho

De Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
7 min readNov 24, 2015

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No final do ano passado, uma aluna do curso de Letras enviou-me uma série de perguntas sobre o fazer literário. Era parte de um trabalho de conclusão de curso que ela estava realizando, investigar junto aos “escritores contemporâneos” — por mais ojeriza que me cause tal expressão, acredito que o sentido de contemporâneo aqui era “estar vivo e escrevendo” — a forma através da qual a literatura aflora do seu interior.

Estava relendo as indagações e, secretamente, me divertindo com a visível contrariedade com que respondi algumas, ainda que somente eu seja capaz de ver o mau humor surgindo por entre as curvas dos argumentos. Foi quando me deparei com a pergunta “qual critério você usa para escolher os livros que pretende comprar?” e a subsequente resposta “livros que gostaria de ler em meio a um jantar enfadonho”.

Não é uma frase minha. O mau humor sim, mas a frase não. Quem a disse foi São Benedito: “como se tornaria agradável o mais lúgubre e aborrecido jantar se pudéssemos interromper as tagarelices para ler o trecho de algum livro inteligente”. Se a recordo com tamanha riqueza de detalhes é por que, nas ocasiões chatas que a vida acaba impondo, ou reuniões sociais que parecem nunca acabar, sempre imagino o quão legal seria interromper tudo, erguer-me e, livro na mão, ler um trecho de Dom Quixote do Cervantes, ou de A cidade e as serras do Eça de Queirós, ou um conto de Tchekhov. Não sei se conseguiria ultrapassar o momento enfadonho lendo trechos de livros que adoro, mas seria melhor do que continuar sentado escutando besteiras.

A resposta enviesada levou-me a refletir sobre os critérios que uso para adquirir livros. Em um primeiro momento, diria que o critério é caos completo: compro obras com o intuito meramente estético de obter prazer delas. Sou um utilitarista. Neste contexto, tanto faz se é um autor ou uma autora, um livro infantil ou adulto, contos ou romances, bestsellers ou clássicos. O importante é a história, e o quanto de prazer ela pode gerar, o que transforma toda a minha biblioteca em um templo ao hedonismo e ao meu egoísmo, algo que não me desagrada em absoluto.

A biblioteca e suas variações [Fonte: club de livros]

Lembro de Alberto Manguel: qualquer biblioteca, mais do que um espaço livre, é o retrato das intolerâncias secretas da pessoa que a engendrou. Não existe maneira melhor de vermos o espírito de alguém do que analisando os livros ao seu redor — ou a própria ausência deles. Cada livro dentro de uma casa tem um motivo para estar nela, seja por vontade do seu dono, seja por alguém achar que determinado livro lhe representava.

No momento em que o leitor escolhe uma obra, está exercendo a sua liberdade pessoal para um ato de intolerância e, neste sentido, as bibliotecas são espaços naturais para o exercício da exclusão. Achamos que são territórios de liberdade do espírito humano, mas, por serem formadas por pessoas, padecem dos mesmos vícios e visões de mundo dos seus proprietários. Talvez por este motivo eu seja um pouco descrente com a ideia de vivermos em um mundo sem exclusão: no momento em que respiramos, já estamos tomando decisões excludentes. Melhor do que abolir a exclusão seria entendê-la ou atenuá-la, e grande parte dos problemas mundiais da atualidade passam pela incapacidade de entender o outro lado e de respeitar que somos seres humanos excludentes. Jamais serei muçulmano, ou mulher, ou negro; assim, por eliminação, pertenço a um grupo excludente, algo que não me impede de analisar a forma com que a exclusão age nas minhas atitudes, tentando evitá-la ao máximo.

A formação das bibliotecas é um assunto que atrai a Humanidade há muito tempo. Na semana passada, li um interessante livro, lançado em Londres em 1766, Directions of a Proper Choice of Authors to Form a Library (em tradução livre, Diretivas para a Escolha Adequada de Autores para Formar uma Biblioteca), de autor desconhecido.

Nesta obra curta — tem 62 páginas — , o autor (ou autora) se esforça para dar algumas dicas para as pessoas que desejam comprar livros para suas bibliotecas. O objetivo é claro desde o início: apresentar ao leitor “a correct list of proper books on the several subjects” (em tradução livre, “uma correta lista de livros adequados nos mais variados assuntos”). A simples ideia de que existem livros adequados para serem lidos traz consigo o seu oposto, qual seja, a noção de que existem livros inadequados. Nesta frase reside uma concepção de leitura que surge muito em debates literários: a divisão entre obras que devem ser lidas (ou “adequadas) e obras que não devem ser lidas (“inadequadas”) ou, para usar outra expressão execrável, a distinção entre “alta” e “baixa” literatura. No fundo, ambos os conceitos expressam não uma verdade intangível da Literatura, mas a visão da pessoa que formulou tal distinção, as suas noções particulares do que seja bom ou ruim em matéria literária.

Tornou-se até um clichê. Quando as pessoas querem puxar papo com um escritor, ao invés de perguntarem se hoje vai chover, costumam dizer “que porcaria este livro novo do Paulo Coelho, não é?” Esperam uma opinião que confirme as ideias arraigadas de que existem classes diferentes de livros ou alguém distribuindo estrelinhas imaginárias neste imenso caleidoscópio de obras que atormentam estantes. Não é tão difícil imaginar que, cedendo ao clichê em torno do qual a Humanidade orbita, o escritor concordará que o livro novo do Paulo Coelho seja uma porcaria — apesar de sequer tê-lo lido — e o leitor se sentirá confortável ao imaginar que puxou uma conversa inteligente com o seu autor favorito. Perpetuamos o estereótipo de que existe boa ou má literatura sem sequer darmos o benefício de ler o livro e constatar se ele é bom ou ruim.

No prefácio, o autor desconhecido tenta estabelecer um critério que justifique a sua lista de livros adequados para uma biblioteca. Afirma que, por causa do “prodigioso crescimento de edição de livros nos últimos 50 anos” — lembrando que estamos em 1766, o que demonstra a atemporalidade deste argumento do “ah, temos tantos livros no mercado, precisamos que alguém de bom gosto faça uma seleção” — , tornou-se importante fazer uma lista que distinguisse, entre os escritores, “aqueles que, com Sucesso, pelo seu Mérito, conseguiram obter um valoroso Caráter, daqueles que, por causa da Necessidade, ou em decorrência somente de Visões Lucrativas, iludiram o Público graças às suas insignificantes e ignorantes Performances”.

Mais vendidos e mais odiados [Fonte: india reads]

Quase 250 anos nos separam deste livro, mas as noções do que merece estar em uma biblioteca continuam idênticas. Da mesma forma que hoje, o lucro com a literatura é visto com suspeita, implicando em dizer que escritores ricos são muito ruins; o fato de leitores gostarem muito de um livro demonstra que eles foram enganados por autores cheios de truques, mas sem talento; o livro bom está vinculado à ideia de que o autor desenvolveu uma história valorosa do ponto de vista do caráter humano, não para entreter seu leitor.

A seguir, o criador desconhecido divide as áreas de interesse de uma biblioteca em Divindade, Física, Leis, Matemática, Astronomia, Jardinagem, Heráldica e “Outras Artes”, entre as quais se encontram História, Biografia, Geografia e a ficção, que também se divide em romances e novelas, poesia clássica, humor e moralidade, tragédia. Poderia desenvolver o assunto e tratar de algumas obras sugeridas, ou das suas interessantíssimas explicações sobre os livros pertencentes à parte da Divindade, que expressam muito do moralismo da época, tanto que sequer indica uma Bíblia, somente as leituras feitas por outros teólogos sobre ela. No entanto, observando as indicações e os poucos motivos apresentados para algumas delas, é possível perceber que, em nenhum momento, o autor pensou que pudesse estar errado. Escolheu o que lhe parecia bom — excluindo, por eliminação, o que não lhe parecia “bom” ou “decente” -, em um critério amplamente baseado no seu gosto pessoal. Assim como nós escolhemos se preferimos brócolis ou aspargos, o autor desconhecido fez a seleção do que era bom de acordo com o seu gosto, sem sequer nos permitir ler ambos e escolher aquele que mais fecha conosco.

O menos importante na História da Literatura são os livros que lemos, mas a imensidão de obras que foram destruídas, queimadas, ignoradas e, enfim, esquecidas. Somente uma conjunção única de detalhes permitiu que Homero sobrevivesse até hoje ou que tantas obras da mesma época desaparecessem. Não é o valor literário que permite a permanência de alguns livros, não são prêmios ou honrarias ou milhares de leitores; também é sorte, também é achar um leitor misericordioso, também é estar no lugar certo na hora certa. Como um relacionamento. Como a vida. Uma sucessão gigantesca e imprevisível de acasos que pode, ou não, dar certo.

Por isto, o único critério que considero válido para adquirir ou não um livro é “ser mais interessante do que um jantar enfadonho”. Se ele consegue me fazer desejar lê-lo ao invés de ficar escutando conversas irrelevantes, é o suficiente para fazer parte deste Templo do Hedonismo, do Egoísmo e da Exclusão a que convenciono chamar de biblioteca. E, se me der vontade de lê-lo em voz alta no meio de uma reunião aborrecida, neste caso, estou diante de um clássico, o qual, na minha definição, significa “livros cuja leitura fazem um jantar chato ganhar vida e graciosidade”. Então, já sabem: no dia em que me verem levantar de súbito e declamar o trecho de algum livro, mudem o rumo da conversa no jantar, pois ela não está agradando.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contosO homem despedaçado.

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