Os livros que vamos esquecendo

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
3 min readNov 13, 2015

Por Gustavo Machado

Há livros nossos que se perdem. Perdem-se nos empréstimos a amigos que também se perdem. Perdem-se nas mudanças, nos divórcios, nas divisões das heranças ou, simplesmente, no transcorrer do tempo. Ficam só na memória, como se, fisicamente, jamais tivessem existido.

Perdido no início da minha adolescência há um pequeno livro surrado, sem capa, cheio de orelhas e manchas de café deixadas ali por imemoriais leitores que antes de mim vieram.

Aos poucos vou esquecendo dele, vou lembrando só de uns pedaços, como acontece com os rostos dos antigos amores que, aos poucos, se esvaem. Mas tenho certeza: era um volume feio, quadradinho e estufado, como um homem baixo, gordo e malvestido. Uma antologia de contos russos. Queria recuperá-lo, substituí-lo por uma versão mais nova, mas sei que isso nunca acontecerá porque não lembro dos autores, quase todos homens barbudos cujos sobrenomes terminavam em “ev” e “ov”.

Numa das narrativas, a que mais me marcou, um casal de operários que sempre jogava os mesmos números na loteria estatal pensa, silenciosamente, no que faria com a fortuna. Estão ambos na cozinha e, discretamente, vão tramando o enredo da nova vida. E logo um maquina o assassinato do outro. Pelo que me lembro, matam-se sem terem ganhado o prêmio.

Enquanto penso no destino do livrinho que vi pela última vez na estante de meu pai, vou mastigando uma ideia: quanta coisa a gente mata em nome do futuro. Matamos casamentos porque imaginamos que, no futuro, não estaremos contentes com eles. Matamos amores que imaginamos, futuramente, não correspondidos ou jamais dignos da nossa devoção. Trabalhamos mais do que devemos, sem espaço para qualquer coisa que não nos pague, e assim matamos a possibilidade de um cotidiano prazeroso em troca de um futuro seguro. Pela escolha por um futuro teoricamente seguro, matamos a chance de um futuro potencialmente esplêndido.

Acomodamo-nos no que é firme, no tangível. Como se o relógio da parede, tão certo como a morte, também não fosse firme, tangível. Como se o transcorrer dos minutos não estivesse permanentemente nos lembrando: só existe o dia de hoje, o agora. E fico pensando no que teria acontecido com o casal russo se, em lugar de empenhar esforços criminosos em busca do futuro exclusivo dos viúvos ricos, tivesse ido para a cama fazer o que pode fazer qualquer casal no presente. Penso mais uma vez no destino do livrinho quadrado. E percebo que estou gastando este precioso tempo que poderia empenhar na leitura de um livro novo.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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