Pra que tanto?

Os perigos de ser um exagerado

Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
9 min readOct 6, 2016

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Uma das frases esculpidas no Oráculo de Delfos, na Grécia Antiga, era “nada em excesso”. É um alerta sábio: mesmo o que for bom, acaso estiver em excesso, acabará se tornando ruim. Essa foi uma lição proferida por Sólon de Atenas, um dos Sete Sábios da Grécia listados por Platão em “Protágoras”. Sólon era um pensador que se guiava pela cautela e pelo comedimento. Ele buscava o equilíbrio em tudo, o que explica outros dos seus ensinamentos para uma boa vida que atravessaram os milênios e continuam atuais: “Nunca digas tudo o que sabes”; “se exiges a honestidade, começa a ser honesto por ti mesmo”; “toma a peito as coisas importantes”. Sempre acho engraçado ler textos que se acham altamente originais e que nada mais fazem do que pregar a mesma prudência que sete homens da Grécia já nos avisavam desde muito antes de Cristo.

Se tudo em excesso é ruim, até mesmo livros podem ser perigosos. Amá-los pode nos colocar em perigo ou nos forçar a machucar alguém e, por isso, na idade da experiência, chego à conclusão de que nem todo o livro vale a pena a perda de uma amizade ou o ocaso de um amor. Falo isso por causa do Jonathan, um corajoso rapaz de uns 13 anos que, em uma palestra em um colégio alguns meses atrás, pegou o microfone e contou que terminara o seu namoro com uma moça por que ela não gostava de ler. Esperava o meu apoio nesta declaração de amor incondicional à Literatura, mas acabei usando outro argumento: existem vantagens em amar também quem não gosta, pois cada história será sempre única, sempre a primeira. Você pode ser K., pode ser Quixote, pode ser Virgílio. É como estar com uma Scheherazade portátil: enquanto contarmos histórias para quem as desconhece, o amor continuará vivo. A Literatura não é essencial para amar alguém, só agrega qualidades.

Parece um contrassenso dizer isso, em especial alguém que ama a leitura como eu, mas não é possível ser extremista em nenhuma condição, nem mesmo no amor aos livros. Como tudo que é bom, o excesso deles nos leva para o lado oposto: viramos chatos. Não foram poucas as exposições de pessoas amantes da leitura que me pareceram mais a listagem indiferente e quilométrica de obras lidas — como nessas listas de obras lidos em um ano, nas quais o tempo de leitura e de apreensão de cada livro consegue ser medido em jardas — do que a noção de que a literatura é algo orgânico, vivo, e que os livros devem surgir ao natural, não como parte de algo programático que visa a sufocar o outro com a noção de que li mais do que ele. É o que sinto quando leio Vila-Matas: quanto mais alguém afirma aquilo que leu e estabelece jogos intertextuais forçados, mais parece esconder a vacuidade de um pensamento próprio.

Quem leu “Cândido”, do Voltaire, sabe: assim como o otimismo exagerado pode nos transformar em pessoas chatas, a cegueira do pensamento único nos impede de ver outras belezas. Não é à toa que Cândido começa o livro dizendo “tudo vai melhor no melhor dos mundos possíveis”, máxima de Leibniz, e termina com a misteriosa “devemos cultivar nosso jardim”. Não estamos no melhor dos mundos, mas todo dia precisamos cultivar o jardim do nosso universo. Jonathan imaginava que largar a namorada que não gostava de ler fosse amor à Literatura, mas o verdadeiro gesto que a Literatura ensina é a tolerância com quem não pensa como nós. Ler muito não é garantia de entender muito.

Que o diga Assurbanipal, rei da Assíria no século VII a. C., o qual se tornou conhecido por seu amor e devoção extrema aos livros. Na época, os livros sequer existiam no formato que hoje conhecemos. Eram formados por tabuletas de argila ou escritos em pedra, o que demonstra a intensidade do amor do rei sumério pela leitura. Assurbanipal vangloriava-se da sua capacidade de “ler as tabuletas escritas antes do Dilúvio”, escritos em línguas mortas e que já eram velhos inclusive para ele.

Não existiam livrarias para saciar a fome por mais leitura de Assurbanipal. Por causa disso, ele decidiu adquirir livros de uma maneira alternativa: invadindo países, escravizando os seus povos e incorporando as bibliotecas dos outros à sua. Para cumprir tal objetivo, o rei sumério designou uma série de agentes, que visitavam as bibliotecas dos reinos vizinhos e mandavam relatórios. Quando Assurbanipal via algum livro que lhe interessava, ou um conjunto de obras que desejava ler, ele declarava guerra aos outros reinos e, após vencer, saciava a sua vontade de ler.

A importância que ele concedia ao livro era tal que ficou famosa a carta enviada a um general chamado Xadanu com especificações sobre o que fazer para conservar uma obra que o rei desejava muito ler:

“Procure e traga-me as preciosas tabuletas das quais não há reprodução na Assíria. Acabo de escrever para o supervisor do templo e o prefeito de Borsipa informando que você, Xadanu, deverá manter as tabuletas sob a sua guarda e ninguém deve se recusar a entregá-las a você. Se souber de mais alguma tabuleta ou texto cerimonial que sejam adequados ao palácio, procure-os, guarde-os e envie-os imediatamente para cá.”

Como todo leitor voraz — tão voraz que chegava a ser sanguinário -, Assurbanipal não tinha áreas específicas de interesse. Sua biblioteca era formada por obras de matemática, astronomia, canções, cânticos, dicionários, poemas épicos. Graças ao seu esforço na “aquisição de novos acervos de livros”, a biblioteca de Nínive chegou a 25 mil tabuletas de argila, sendo que parte significativa sobreviveu até hoje, sendo um acervo histórico desse período distante no tempo.

Não só isso: Assurbanipal lia e fazia comentários nas obras escritas em argila, em um período que, para gravar um comentário, não bastava ter uma caneta a mão, mas um escriba com habilidade para inscrever em placas de argila. Em um compêndio de medicina da época, Assurbanipal mandou escrever à sua margem que ela continha “remédios que tratam desde o couro cabeludo até a ponta dos dedos dos pés, seleções não-canônicas, sábios ensinamentos, tudo que pertence ao domínio da medicina de Ninurta e Gula”, justificando que “escrevi nessas tabuletas, verifiquei e conferi e depositei em meu palácio para que sejam lidas e analisadas minuciosamente”.

Assim como a aquisição de obras para uma biblioteca serviu de motivo para um rei sumério dizimar várias civilizações, em outra ocasião o excesso de livros levou um homem a se isolar dentro de si mesmo. Quando leio hoje o título “Amigo do Livro”, é impossível não pensar, assim como Hamlet lendo um livro, “são só palavras, palavras!”, pois “amigos de livros” são pessoas que vão muito além do ato de gostar da leitura, constituindo criaturas que foram escravizadas por livros e que preferem a companhia deles ao invés de outros seres humanos.

O que me leva a quem cunhou o termo. O único e verdadeiramente amigo do livro foi Richard de Bury (1287–1345), bispo de Durham e tesoureiro do rei Eduardo III da Grã-Bretanha. Quando as maiores bibliotecas eram constituídas por aglomerações de centenas de exemplares, de Bury foi o primeiro indivíduo que, às próprias expensas, formou uma biblioteca de alguns milhares de livros. Tão inusitada era essa mania de colecionar e ler livros que, segundo Schofield, um biógrafo dele assim se referiu à sua rotina:

“[De Bury] possuía uma biblioteca separada em cada uma de suas residências, e onde quer que estivesse morando havia tantos livros espalhados no dormitório que dificilmente se conseguia ficar de pé ou se mover sem pisá-los… Todos os dias à mesa ele prosseguia a leitura de um livro enquanto os outros conversavam… e, em seguida, iniciava um debate sobre o tema abordado no livro.”

Richard de Bury acabou se tornando um excluído social pelo seu hábito e andar sempre mergulhado em livros. Tanta era a sua paixão que decidiu escrever uma obra em homenagem aos objetos que tanto amava. A obra se chamou “Philobiblon” (no Brasil ganhou o acréscimo “O Amigo do Livro”), que recentemente chegou às minhas mãos e constitui uma defesa apaixonada do livro como objeto real, como objeto dotado de imaginação própria, como item de decoração, como maior expressão da Beleza humana, como tudo que realmente importa para de Bury.

“Philobiblon” possui vários detalhes divertidíssimos — em especial por que Richard de Bury estava falando sério quase 700 anos atrás, e muitos dos assuntos continuam atuais. Listarei somente alguns dos capítulos do pequeno livro, aptos a demonstrar a idolatria que o bispo inglês dedicava aos livros: “O tesouro da sabedoria humana está contido nos livros”, “o grau ideal de afeição que deve ser destinado aos livros”, “o que devemos pensar sobre o preço que se atribuem aos livros”, “quem deveria especialmente ser Amante de Livros”, “da perfeição gradual dos livros”, “por que é meritório relançar livros já escritos e lançar novas obras”. Entre muitas declarações apaixonadas, a seguinte se destaca:

“Nos livros eu encontro os mortos como se estivessem vivos; nos livros eu prevejo o que está por vir; nos livros embates bélicos são travados; dos livros as leis da paz são vigoradas. Todas as coisas são deturpadas e deterioradas com o tempo; Saturno não para de devorar os filhos que gera; toda a glória do mundo teria sido abandonada ao esquecimento, se Deus não tivesse fornecido aos mortais a cura dos livros.”

Richard de Bury amava os livros de forma integral e excessiva, tanto que, após escrever “Philobiblon”, considerou a sua missão na Terra encerrada e preparou-se para morrer, o que efetivamente aconteceu quatro meses depois de acabar a obra. Estava tão ocupado em ler e aproveitar a existência dedicando-se ao que estava escrito nas páginas que transformou o seu amor também em um livro. Deixou a vida para virar o objeto amado. Não falou da mulher, dos filhos ou do seu rei, mas legou o segredo da imortalidade: transformar-se naquilo que se ama.

O excesso de amor a algo pode ser facilmente confundido com sacrifício. Acreditamos que as pessoas fazem loucuras em benefício de uma causa, mas pode ser o excesso se disfarçando com cautela — ainda que tais esforços sejam meritórios, e as pessoas assim sejam aquelas que fazem o mundo mudar.

É o caso de Dashdondog Jamba, um bibliotecário da Mongólia, que, em 1992, desistiu de continuar trabalhando nos limites espaciais de um prédio público e resolveu levar o seu amor aos livros aos lugares mais inóspitos da Mongólia. Com as suas posses, comprou um camelo, colocou todos os livros que possuía nele — dando especial ênfase aos livros infantis — e lançou-se na sua jornada.

Dashdondog Jamba

Dashdondog caminha pelas províncias da Mongólia, passando por florestas, rios, montanhas e desertos. Acredita-se que, nos últimos vinte anos, ele e o seu camelo tenham percorrido mais de 50 mil milhas. Às vezes, ele deixa o camelo descansar, e continua a sua jornada a cavalo ou até mesmo com um veículo. A mulher e o filho acompanham-no em trechos do caminho, mas a grande maioria da jornada dele é solitária. Um homem, as estrelas e os seus livros, caminhando como fantasmas pelas noites frias da Mongólia. Dashdondog Jamba é o Ulisses que não voltará para Ítaca, aquele para quem a viagem nunca acaba enquanto houver um leitor novo a ser alcançado no mundo.

O bibliotecário também escreveu algumas obras, e é um eminente tradutor. Com o dinheiro recebido, investiu na compra de novos livros e na melhoria da sua estrutura de transporte. O próprio Dashdondog Jamba afirma que a sua biblioteca é só um pouco diferente das outras: “as paredes de leitura são feitas de montanhas cobertas por florestas, o teto é o céu azul, o chão é um tapete de flores e a luz vem toda do Sol.”

Indagado sobre o motivo de realizar trabalho tão cansativo e exasperante, ele respondeu: “A minha devoção às crianças é a minha alegria”. Por trás do seu sacrifício pessoal, familiar e financeiro, encontra-se um motivo nobre que nada mais faz do que esconder o exagero da sua conduta. Ainda assim, é uma atitude elogiável. Podemos admirar o excesso alheio sem que incorramos em condutas igualmente exageradas. As pessoas que extrapolam os limites merecem ser admiradas, mas nem todos nós precisamos ir para o paroxismo das situações para nos sentirmos bem. Um equilíbrio é não só necessário, mas aconselhável.

O excesso do amor aos livros levou Assurbanipal a conquistar países por causa das suas bibliotecas, a Richard de Bury a esquecer a vida terrena para se dedicar às vidas que moram dentro das páginas de uma obra e a Dashdondog Jamba a abandonar todas as suas posses para carregar a literatura sobre as costas de um camelo por toda a Mongólia. Quando o jovem Jonathan diz que largou alguém que amava por conta do seu amor à Literatura, sem querer saiu do campo do saudável e entrou no excesso que, na sabedoria tão bem descrita por Sólon de Atenas em três palavras, esconde o seu extremo: o fanatismo cego e irracional. Ou, para ficarmos noutro ensinamento do ateniense: “mede as tuas palavras pelo silêncio, e o silêncio pelas circunstâncias.”

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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