Ficção e realidade

Para ter uma vida extraordinária

Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
8 min readJul 12, 2016

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No ano passado, uma agência de pesquisas da Inglaterra realizou um estudo para saber o que as pessoas mais desejavam. Várias respostas se destacaram: mais dinheiro, mais saúde, mais segurança, mais viagens, mais prazer. No entanto, no meio das escolhas, a que acabou chamando a minha atenção foi “uma vida extraordinária”. Nem tanto pelo gigantismo expresso através do adjetivo — não era uma vida legal ou gloriosa, mas “extraordinária” — e sim porque, em pleno século XXI, ainda buscamos viver uma existência que transcenda os seus limites temporais e espaciais, algo que esteja além de nós mesmos. Algo extraordinário, em suma.

Um dos motivos de escrever é mostrar para os outros homens, através do exemplo expresso na ficção, como eles podem ser melhores. Quem disse isso foi o velho Aristóteles, que sintetizou a arte poética como uma forma encontrada para mostrar como agem os melhores dos homens, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Assim, cada vez que lemos um livro, assistimos a um filme ou vemos uma pintura, estamos tentando aprender como a imitação de vida ali presente pode nos deixar mais capacitados para sobreviver ao mundo.

Caminhamos por entre livros procurando exemplos de vida que possam deixar a nossa existência nada menos do que inesquecível. É uma busca insana: são milhares de livros, e todos possuem visões diferentes da realidade espalhadas por entre os mais variados gêneros e, pior ainda, cada um deles mostra exemplos bons ou ruins de personagens que podemos seguir — pois também podemos ser vilões extraordinários. O ser humano é uma criatura multifacetada demais. Por mais migalhas de possibilidades que juntemos ao longo do vasto bosque da literatura, nunca chegaremos ao pão completo.

Não faz muito tempo, afirmei que a literatura ocidental como hoje conhecemos nasceu diante dos muros de Tróia, no momento em que Heitor, “o domador de cavalos”, caiu diante da fúria de Aquiles, “o de pés ligeiros”. Dois sistemas de valores estavam em confronto nesta luta entre indivíduos: de um lado, a placidez e a honra de Heitor; do outro, a raiva e a instabilidade de Aquiles. A vitória do aqueu sintetiza a literatura do Ocidente, sempre buscando a glória desmedida, ainda que efêmera. Quando precisou optar entre uma vida curta e gloriosa ou uma existência longa e esquecível, Aquiles escolheu a primeira alternativa: “Não, eu não pretendo morrer sem luta e sem glória, como também sem algum feito cuja narrativa chegue aos homens por vir”. Agindo assim, determinou o nosso destino, de estar sempre buscando uma vida extraordinária, algo capaz de ressoar pelos tempos.

Não foram poucos os escritores que perceberam um enorme paradoxo: a única maneira de conseguir uma vida extraordinária é através da ficção. A realidade, com as suas miudezas e insignificâncias, não comportaria espaço para maravilhas, que são digeridas pela rotina, pelo cotidiano e por este grande desgaste que é viver. Quando rearranjamos uma vida na ficção, acabamos deixando-a melhor, mais digna, mais coerente. Somos pessoas melhores quando descritas por palavras, não quando vivemos.

Foi assim que Plutarco escreveu o seu “Vidas Paralelas”, entrelaçando as vidas de figuras reais. Plutarco fez 23 pares, unindo gregos com romanos. Pretendia provar a continuidade da tradição helênica em meio à cultura romana, ou como os romanos podiam ser vistos como uma continuação dos ideais gregos. É uma leitura muito aprazível, pois relata tanto a realidade quanto a ficção, que se encontram tão entrelaçadas que é difícil saber o que é verdade e o que era mito e foi incorporado à história. Também é uma lição de humildade: nunca sabemos quando estamos vivendo uma vida extraordinária, pois estamos muito próximos da nossa própria existência. Somente o distanciamento nos permite afirmar que a vida de alguém é ou não fenomenal. Ou seja: podemos estar vivendo agora o melhor momento das nossas vidas, e não sabemos.

Mas me interessa saber as derivações literárias desta busca por uma vida extraordinária. Em 1896, Marcel Schwob publicou “Vidas imaginárias”, uma série de contos relatando as vidas de pessoas que existiram, mas cujas histórias tinham mais lacunas do que certezas. A melhor forma de preencher esses espaços lógicos em branco da vida de alguém era tendo a ficção como argamassa e, assim, Schwob usou fontes literárias fictícias, outras verdadeiras, imaginação e muita ironia para fechar as lacunas.

Logo no prefácio, o autor francês fala dos problemas das biografias existentes, atacando Plutarco e Suetônio (autor de “As vidas dos doze césares”, que, apesar do tom panfletário, também é um conjunto de narrativas interessantes, mesclando fatos e mitologias), dizendo que a verdadeira biografia deveria se deter não somente naquilo que destaca os homens, mas sim nas características pessoais que os diferenciam.

Marcel Schwob abdica da realidade para contar a vida dos homens e mulheres, consciente de que somente a ficção traz o extraordinário, o imponderável, o inesquecível. É pensando assim que escreve a história de Empédocles, Deus presumido, antecessor dos grandes profetas bíblicos, e que acabou queimado por causa dos seus supostos poderes divinos (é um fato incontornável da Humanidade a necessidade de queimar os deuses que andam entre nós). Fala de Crates, um cínico à moda de Diógenes, que abdicou de todas as posses materiais para viver nas ruas como um cão. Vai para Roma e conta a incrível história de Clódia, uma mulher que, na mesma tradição de Messalina, utilizava o sexo como a única forma de sobrevivência e de estabelecer laços sociais.

É especialmente delicioso o final alternativo que Schwob concedeu para Petrônio, o autor do Satyricon, que escapa da morte pelas mãos de Nero (fato real) e passou a ser um mendigo vagando pelas cidades romanas, vivendo com mais intensidade a pobreza do que durante a sua vida como nobre. Vale muito ler sobre Cecco Angiolieri, poeta invejoso que competia com Dante e passou uma vida inteira imersa em raiva contra outras pessoas, sem saber que a maior raiva que possuía era contra si próprio. Destaque especial para a história de Paolo Uccello, contemporâneo de Donatello, artista consumido pela arte, que desejava “transmudar todas as linhas num só aspecto ideal”, uma belíssima reescritura de “A obra prima desconhecida”, de Balzac.

Um detalhe interessante sobre Marcel Schwob — o escritor viveu somente 37 anos e, ainda assim, deixou uma obra admirada por dezenas de escritores e filósofos, desde Valéry até Borges, Foucault e Oscar Wilde, que inclusive lhe dedicou “Salomé” — é que, na sua adolescência, ele foi aluno de sânscrito em Sorbonne de ninguém menos do que Ferdinand de Saussure, o pai da linguística moderna. Sempre tento imaginar como devia ser essa aula, e é um dos pensamentos que me diverte, Schwob e Saussure dentro da mesma sala falando em sânscrito. Eis um belo “quebra-língua”.

Não sabemos o que é verdade e o que é ficção na obra de Marcel Schwob, e não importa, mas sim a noção de que a vida extraordinária não existe fora dos limites da imaginação. A grama do vizinho é sempre mais verde, e a vida dos outros sempre parece melhor do que a nossa. Não à toa que a mesma ideia de Schwob foi seguida por Jorge Luis Borges, com a sequência de biografias que mesclavam ficção e realidade contida em “História Universal da Infâmia”, e por Gonçalo M. Tavares que, em “Histórias falsas”, reconta vidas que estavam à margem do discurso oficial, usando a imaginação para preencher espaços e dar estrutura épica para pessoas que, se não fossem a literatura, estariam sentenciadas ao desconhecimento.

Ainda assim, existem vidas reais tão gigantescas que até mesmo a ficção coça a cabeça e pensa “não posso fazer isso, o leitor não vai acreditar”, e mesmo assim tais pessoas existiram. Um exemplo clássico é Sir Richard Francis Burton (1821–1890). O título completo da sua biografia, escrita por Edward Rice, já sintetiza alguns detalhes da sua vida — “Sir Richard Francis Burton: o agente secreto que fez a peregrinação a Meca, descobriu o Kama Sutra e trouxe As mil e uma noites para o Ocidente”. A obra tem incríveis 683 páginas em letra apertada, e quem de nós pode se orgulhar de ter uma vida que preencha tamanho volume em uma biblioteca?

Ainda que repudie a intenção de catalogar um ser humano através de palavras, que por natureza são reducionistas, não resisto à tentação de elencar o currículo oficial de Sir Richard Burton: escritor, tradutor, linguista, geógrafo, poeta, antropólogo, orientalista, erudito, espadachim, explorador, agente secreto e diplomata. Tudo isso entrou no espaço dos seus 69 anos de vida.

Se vamos incluir as suas realizações, o currículo só cresce: localizou as nascentes do Nilo, algo buscado desde o princípio da civilização e que gerou inclusive um ditado “tão desconhecido quanto as nascentes do Nilo” — pois é, Burton as encontrou, mas Speke afirmou que era mentira e os dois tiveram uma briga pública que se encerrou de forma trágica; falava 29 línguas e uma série de dialetos; era mestre do disfarce — passou-se por afegão, por colonizador inglês, por fanático islâmico, por mascate de dervixe, por peão cigano; recebeu o apelido de “Negro Branco” e “Diabo Burton”, mas chamava a si próprio de “Bárbaro Amador”; estudou cabala, hinduísmo, alquimia, catolicismo e o sexo tântrico, no qual se especializou; tinha severas crises de decepção, viciou-se em drogas e passou a vida lutando contra o alcoolismo; procurou os traços de Camões na Índia, passando pelas cidades que o poeta português esteve, em busca de evidências da sua presença; esteve em Meca, proibida a quem não fosse do Ocidente, e em Harar, capital da Somália, onde todos os homens brancos eram sumariamente mortos; na África, descobriu o lago Tanganica; no Brasil, viajou de uma ponta a outra pelo rio São Francisco, vivendo em Minas Gerais e na Bahia; foi gigolô em Nápoles e contrabandista de drogas em Pau, na França; traduziu “Os Lusíadas”, “As mil e uma noites” e o “Kama Sutra”, todos do original; foi expulso de Oxford por assistir a uma corrida de cavalos; na condição de agente secreto, é considerado o responsável secreto pela morte de vários líderes de tribo indianos; aprendeu esgrima, envolveu-se com 9 mulheres e escreveu 4 livros, tudo simultaneamente durante um ano vivendo na Itália.

Sir Richard Francis Burton

Tão incrível a vida de sir Richard Francis Burton que é difícil de acreditar que tenha sido real, apesar das várias indicações neste sentido. O aproveitamento do tempo do aventureiro inglês, vivendo com intensidade todas as emoções possíveis, permite-nos ver o motivo dele ter conseguido uma existência tão agitada: Burton não tinha medo de ceder às possibilidades que apareciam no seu caminho. Preferia correr o risco ao invés de viver na incerteza e, para fazer isso, estudava o máximo que podia, cercando-se do conhecimento para enfrentar o desconhecido, pois o estudo era a chave para sir Richard Burton chegar a qualquer lugar que desejava.

Quando as pessoas dizem sonhar com uma vida extraordinária, é por que querem algo a mais. É melancólico que a vida seja somente uma, e que cada decisão tomada exclua uma série de possibilidades. Nunca saberemos se os caminhos tomados nos deixarão mais próximos ou distantes do extraordinário. Chegar à existência sublime é algo tão intangível como era na Antiguidade clássica; é tentar capturar a sombra, reter a névoa. A literatura nos ensina que, se não podemos ter vidas loucas como a de Sir Richard Francis Burton, podemos sonhar com outras experiências. Existe algo mágico mesmo nas pequenas insignificâncias do dia a dia: pegar uma chuva no rosto pode ser tão extraordinário quanto ganhar uma guerra, tudo depende de como a enxergamos. Se não podemos ser extraordinários o tempo todo, melhor buscar o maravilhoso que está ao alcance dos nossos sentidos.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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