Por um mundo com mais mau humor
Por Gustavo Melo Czekster
Ninguém é irritado todo o tempo, mas os que se destacam em tal arte são os que sabem dosar veneno e bálsamo.
Eu admiro pessoas mal humoradas. A sociedade exige que estejamos em busca da felicidade, e manter uma visão engraçada da vida seria um dos caminhos para se chegar lá. No entanto, quem disse que precisamos ser felizes? Na qualidade de uma pessoa que foi recentemente descrita como “o mal humorado mais engraçado de todos”, considero o humor uma característica superestimada. Aliás: o mundo seria um lugar bem mais autêntico se as pessoas cedessem à raiva da sua condição diária de almas presas dentro dos mesmos corpos, mas seria uma vasta explanação dos motivos pelo qual — parafraseando Gorki — considero o mau humor tão saudável para o espírito quanto um banho para o corpo.
Quando sugeriu que eu escrevesse esta coluna, a Julia Dantas — autora do belíssimo Ruína y leveza — disse que textos engraçados seriam apreciados. O único problema é que não sei escrever assim; estou mais para o stand-up tragedy do que para o stand-up comedy. Após uma longa troca de e-mails, na qual, entre outros fatos, ganhei a promessa — agora tornada pública — de bolo com sorvete, falamos das onipresentes galinhas e aprendi a arte de colocar quatro verbos (sendo dois gerúndios) na mesma expressão, entendi que eu tinha carta branca para escrever o que desejasse. Então, resolvi tratar de escritores mal humorados.
São vários. Nabokov tornou-se famoso pelas suas frases mal educadas; impossível esquecer a resposta que ele deu para a Paris Review, comentando o elogio de E. M. Forster sobre o domínio que ele teria sobre as personagens: “O meu conhecimento das obras de E. M. Forster limita-se a um romance, do qual não gosto. De qualquer forma, não foi ele quem deu início a essa fantasia banal a respeito de personagens que fogem ao controle; isso é mais velho do que o mundo. Se bem que, naturalmente, daria para se sentir solidário com as personagens dele, caso tentassem escapar daquela viagem para a Índia, ou onde quer que ele os estivesse levando. Os meus personagens são verdadeiros escravos”. Detalhe significativo é que o romance mais conhecido de Forster foi “Uma passagem para a Índia”: imaginar as personagens tentando escapar da chatice do seu demiurgo e embarcando em tramas para fugir do marasmo autoral sempre me fascinou.
Recentemente, assisti a uma entrevista de Borges em que ele não deixou o entrevistador concluir nenhuma pergunta; no meio da fala do outro, o escritor mexia a mão, com um sorriso que mal escondia o enfado, e punha-se a responder. Thomas Bernhard tem um mau humor refinado. Em “Meus prêmios”, ele descreve as cerimônias em que foi receber prêmios literários, ridicularizando cidades e juízes dos prêmios com ironias destruidoras.
No entanto, nenhum mal humorado é melhor do que Elias Canetti, vencedor do Nobel de Literatura de 1981. Suas opiniões sobre as obras alheias são tão cruéis que o leitor cai na gargalhada. Algumas das frases dele: “Flaubert — hipopótamo que geme”. “Ainda prefiro Deus a Tolstói”. “Se eu fosse Freud, sairia correndo de mim mesmo”. “Tudo em James Joyce o repugna; não fosse pela cegueira, haveria pouco para respeitá-lo”. “Em Montaigne, o que me incomoda frequentemente é a adiposidade das citações”.
Uma das maiores habilidades dos mal humorados é esconder esta condição, fazendo com que um um elogio inesperado rasgue o céu sombrio dos seus comentários e, assim, obscureça todas as críticas destiladas antes. Ninguém é irritado todo o tempo, mas os que se destacam em tal arte são os que sabem dosar veneno e bálsamo. Os elogios de Canetti são tão vibrantes que o seu mau humor transforma-se em um detalhe: “Se, apesar de tudo, permaneço vivo, devo isso a Goethe, da forma que só se deve a um deus”. “Somente desde que li o poema de Blake sei o que é um tigre”. “Topei com Robert Walser, entre muitos, entre uma centena de outras coisas: o mais vivo. Diante dele, Kafka empalidece”.
O método de escrita de Canetti era interessante. Quando desejava escrever, ele viajava até alguma cidade a esmo e escolhia um hotel. Neste local, selecionava um quarto, no qual ficaria até o final da obra. Então, o escritor abria as malas e espalhava, por todas as paredes do quarto, reproduções dos afrescos da capela Sistina que sempre lhe acompanhavam. Envolvido por Michelangelo, Canetti podia, enfim, entregar-se às suas narrativas, e mesmo neste método existe outro sintoma do mal humorado: o isolamento dos outros seres humanos. A noção de que a sua presença é a única companhia necessária. A indiferença em relação aos demais.
O mal humorado é o amigo a quem podemos recorrer quando estamos em dúvida. A sua sinceridade nos machuca, mas é um mal necessário. Cercados por sorrisos falsos, é o mal humorado quem nos dá a real perspectiva das coisas; ele é o escravo anônimo que, atrás da biga do César vencedor, no meio do triunfo, das palmas e das libações, sussurra “não esqueça que és humano”. Para nos lembrar do nosso papel no mundo, precisamos de mais pessoas mal humoradas, grosseiras, indiferentes. Um mundo repleto de felicidade é um local chato e previsível.
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Gustavo Melo Czekster é autor do livro de contos O homem despedaçado, finalista do Prêmio Açorianos 2011.