Precisamos de mais dúvidas
Gustavo Melo Czekster
Não deixa de ser um sintoma dos nossos tempos o fato das pessoas preferirem a certeza relativa das respostas ao delírio repleto de loucura que caracteriza as perguntas. Mais do que buscar explicações, deveríamos ir atrás do mistério, daquilo que não vemos e, ainda assim, existe. As perguntas são desafiadoras, enquanto que as respostas são carregadas de conformismo e placidez. Perguntas são leões famintos correndo atrás de gazelas; respostas não passam de paquidermes se dourando ao sol à espera da comida entrar na própria boca.
Estamos ansiosos demais por respostas. A internet nos deixou acostumados a buscar explicações para tudo, outras versões, contrapontos, análises minuciosas, vídeos, gráficos, diagramas. É frequente ver, em palestras, pessoas digitando nos celulares em busca de novas informações sobre o que acabei de falar, quando era tão mais simples perguntar. Nem sempre é bom ter acesso à sabedoria, ao conhecimento. Também existe magia em não saber algo — tentar desvendar algo nos leva a outros níveis de reflexão.
No centro de Toulouse, na França, está localizada a Igreja dos Jacobinos. Construída no início do século XIII, também foi usada como sala de aula, ginásio de esportes, alojamento de soldados e museu. Somente após a I Guerra Mundial ela voltou a ser empregada como igreja e, entre os seus tesouros, encontra-se o relicário contendo os restos de São Tomás de Aquino, um dos santos-filósofos mais importantes da Igreja Católica.
No entanto, pouca gente sabe que, debaixo de um pilar duplo da Igreja dos Jacobinos, alguns metros atrás do relicário de São Tomás de Aquino, esconde-se uma pergunta que jamais será respondida: um homem esmagado. Só conseguimos ver as mãos de gesso e os pés sobrepostos, não seu rosto ou características do corpo. É bem possível que sequer corresponda a um corpo, talvez seja uma estranha homenagem deixada no interior da igreja pelo seu construtor ou pelos pedreiros.
Por muitos anos, tentou-se buscar uma resposta para o homem esmagado pelos dois pilares. Não existe nenhum documento registrando o motivo, e não se sabe sequer se os responsáveis pela construção da Igreja dos Jacobinos tinham conhecimento da escultura deixada com discrição diante dos seus olhos. O homem esmagado não possui nenhuma explicação e, por isso mesmo, possui todos os motivos do mundo para estar ali.
Também existe ironia em um enigma insondável estar tão próximo de são Tomás de Aquino, o homem que desvendou justamente o mistério da Santíssima Trindade, o responsável pela frase que constitui a base de qualquer método científico: “Dê-me, Senhor, agudeza para entender, capacidade para reter, método e faculdade para aprender, sutileza para interpretar, graça e abundância para falar, acerto ao começar, direção ao progredir e perfeição ao concluir.”
Não precisamos responder uma dúvida. Podemos acalentá-la, deixá-la crescer, espalhar-se de forma exponencial e ser o germe para novas e excitantes questões. Se não existissem pessoas capazes de preservar mistérios como faziam as vestais na Roma Antiga, não existiria a arte, essa trabalhosa maneira de plantar inquietações nos espíritos alheios. Não foram poucas as vezes em que, ao tentar respondermos algo, a dúvida de origem acabou sendo o início de uma revolução.
Da mesma forma que o homem esmagado de Toulouse, as pessoas nem suspeitam que, neste exato momento, existe um mundo paralelo sendo esculpido dentro do mundo em que vivemos. A intenção desta realidade alternativa é clara: um dia, ela pretende substituir o nosso universo. Dentro da velha Terra onde moramos, encontra-se um mundo inteiro sendo gestado, ansioso para vir à tona e nos destruir.
Esse outro local chama-se Kcymaerxthaere e, assim como o nosso, está repleto de histórias. Elas são tão fortes que acabam transbordando para a nossa realidade. No momento em que escrevo este texto, existem 59 pontos de intersecção de Kcymaerxthaere com o nosso mundo, todos representados por placas relativas a eventos, estátuas, locais históricos, batalhas, grandes derrotas, que aconteceram nesse universo paralelo.
Aqui na Terra, caminha entre os humanos Eames Demetrios, que é o elo de ligação entre os dois mundos, registrando no nosso planeta os eventos acontecidos em Kcymaerxthaere. Elas assumem a forma de placas, que estão em locais tão díspares quanto uma colina na Islândia, um terreno baldio em Singapura, um jardim no Japão e uma praça na Espanha. Essa última placa fica em Madrid, na Plaza de La Luna, e conta a história do evento que se sucedeu no mundo paralelo, e que transcrevo aqui:
Hoy la llamamos la Plaza de la Luna pero su nombre original era Plaza de las Lunas, debido a que el resplandor de éstas demarcaban los límites de la plaza. En los tiempos de Kcymaerxthaere, cada 257 órbitas de nuestra luna visible, convergían en este lugar, eclipsándose, las 29 lunas visibles de las 29 dimensiones alternativas (cada una simbolizando los 29 infinitos negativos de cualquier xthaere), todas ellas en su plenitud (algunas eran más grandes que nuestro planeta), reunidas en este espacio. Esta conjunción de fuerzas puede ser la causa o la consecuencia de que esta Plaza sea un portal insólito de incalculable valor, una puerta aparentemente pacífica hacia La umbraesfera, la conexión entre todas las sombras, la oscuridad y las penumbras de este planeta que llamamosTierra.
Esta plaza era antaño peligrosa, ya que las distintas series dimensionales de sombras encadenaban sus zonas más oscuras, formando una ruta de viaje poderosa en la umbraesfera, que era transitada por los viajeros más audaces para evitar las ywrengs (fronteras del tiempo). Fueaquí, en la Plaza de lasLunas, donde Nobunaga-Ventreven, recién llegado de los gwomes de liquen, em el que denominamos Soria, siguió La ruta más veloz a Segoleno, un sitio tan inaccesible como remoto, pero que, una vez que se llega, el viajero se encuentra paradójicamente cerca de cualquier otro punto del universo. Allí, tuvo lugar el encuentro con Eliana Mei-Ning, La mujer de la voz inconcebiblemente bella, dejando su huella em La Batalla de Some Times (Algunos Tiempos), donde Kmpass, el Urgende Dios de la Direccionabilidad, fue derrotado cuanto intentó destruir toda La complejidad del mundo. Es función y deber de la Plaza de la Luna preservar la riqueza de Kcymaerxthaere, por ello celebramos aquí cada año lineal la gloria y el claroscuro que define al Festival de las Lunas Restadas.
Soa incrível que um mundo esteja surgindo do interior do nosso, mas esse não é o detalhe mais interessante. Kcymaerxthaere é uma realidade alternativa criada através de narrativas e, como todos sabem, as histórias são incontroláveis, rebeldes, violentas. Elas se encontram e estabelecem relações novas e, assim, talvez não seja tão surpreendente o fato do mundo paralelo ter escapado do controle do seu criador. Algumas placas que surgiram no mundo dizem respeito a histórias inéditas. O mundo alternativo, em um canibalismo criativo, agora se dedica a criar as suas próprias narrativas, sem controle algum — selvagem.
Ninguém sabe exatamente como isso está acontecendo, mas Kcymaerxthaere cresce em ritmo acelerado e, em breve, a tendência é que comece a substituir pequenos trechos da nossa realidade. É o legítimo caso em que fazer perguntas pode acabar nos levando a respostas indesejadas. Melhor ficar na ingenuidade da ignorância.
Assim como existem lugares com mistérios feitos de pedra e realidades alternativas que espreitam nossos passos, também existem algumas pessoas que não são realmente reais. Vale perguntar o que transforma uma pessoa em real: o fato dela ter CPF, endereço, família, amigos, um nome? Todos são elementos muito circunstanciais para afirmar que, no mundo, só existem seres humanos reais. É claro que alguns homens e mulheres inventados estão caminhando por aí, misturados a seres de carne e osso como eu e — acredito — parte significativa de vocês.
François Villon (1431–1463) foi um escritor que, mesmo tendo deixado obra, ninguém sabe se chegou a existir. Na tradição de Shakespeare e Homero, é uma daquelas pessoas que deixaram obras mais vistosas do que uma vida real. No entanto, a peculiaridade que o diferencia de outros escritores de existência duvidosa é ainda mais frágil — ninguém sabe ao certo se Villon realmente existiu. Temos evidências circunstanciais — um registro de matrícula em um colégio, uma sentença de trabalhos forçados, menções em cartas -, mas são tantos nomes diferentes considerados como variações do seu que também podem se referir a outras pessoas que não sejam esse poeta francês.
A própria vida de François Villon é incrível demais para ser verdadeira. A ausência de detalhes é tão significativa que a tentação de imaginá-lo como ser ficcional torna-se mais verossímil do que aceitá-lo como ser humano. Para começar, Villon passou toda a vida sob as graças de alguns dos mais influentes e poderosos nobres da França, tais como Guillaume de Villon e o duque de Orléans, que não só perdoavam as suas desfaçatezes como ainda lhe conseguiram dinheiro e posição social na corte. Ao mesmo tempo, Villon era um rematado criminoso, e quando uso essa expressão é no sentido dele ter sido um poeta que realmente gostava da vida ilícita. Nos seus primeiros anos de vida, ele fundou um grupo de delinquentes juvenis especializados em roubar viajantes desavisados. Depois começou a carreira individual de assaltante, passou a planejar roubos cada vez mais intrincados e, enfim, tornou-se um assassino frio e calculista.
De forma paradoxal, o poeta não era um criminoso muito esperto, e foi preso várias vezes. Passava mais tempo em masmorras e calabouços do que solto. Também existem evidências de que ele não só tenha sofrido violências nas prisões, como também experimentou todas as torturas possíveis e imagináveis que então existiam. Villon era o legítimo “bad boy” da sua época, muito antes de outros escritores mais badalados reivindicarem tal posição, considerando-se “malditos”. Assim, como passava muito tempo entre a corte e a prisão, François Villon aproveitava os momentos de ócio na cadeia para escrever poesias, e a sua obra nasceu dentro dos cárceres franceses, nos intervalos de torturas e audiências com juízes.
Em determinada ocasião, François Villon foi inclusive condenado à morte, e escreveu uma das suas poesias mais famosas, “A Balada dos Enforcados”, planejando-a usar como seu epitáfio. Esse poema tanto é provido de extremo lirismo e inquietude sobre o fim quanto de um humor irônico muito incomum para o período. Contudo, a pena de morte acabou sendo comutada para dez anos de banimento. Quando saiu da prisão, a lenda nasceu, pois o poeta sumiu e nunca mais foi visto. A partir de então, Villon se multiplicou: foi visto em brigas em tavernas; roubou nobres em um jogo de cartas; engraçou-se com uma mulher casada e com a filha dela — ao mesmo tempo; teve filhos e começou uma carreira respeitável como alfaiate (ou padeiro, há divergências também nesse ponto); esteve por trás de todas as artimanhas políticas do período; viajou para a Inglaterra como agente secreto do trono francês.
Como desapareceu sem deixar vestígios, o poeta acabou se transformando em um fantasma e, com o passar dos anos, suas evidências físicas cessaram de existir, mas a obra sobrevive. Os poemas de François Villon notabilizam-se por oscilar da linguagem mais vulgar às construções mais eruditas; conseguem opor, dentro de uma sequência de versos, o mais sublime nível de consciência humana às necessidades mais toscas. Não suficiente, estão na origem de quase todas as escolas literárias posteriores, desde o maneirismo até o classicismo. Entre os seus poemas, destaca-se a “Balada das Coisas sem Importância”, que muitas pessoas conhecem de forma quase instintiva mesmo sem nunca terem a lido, o que demonstra que Villon não precisa mais ser um homem, somente uma voz poética a bradar do meio do nosso DNA:
Conheço se há moscas no leite,
Conheço pela roupa o homem,
Conheço o tédio e o deleite,
Conheço a fartura e a fome,
Conheço a mulher pelo enfeite,
Conheço o princípio e o fim,
Conheço pela chama o azeite,
Conheço tudo, menos a mim.
Conheço o gibão pela gola,
Conheço o rico pelo anel,
Conheço o fiel pela sacola,
Conheço a monja pelo véu,
Conheço o porco pela tripa,
Conheço o irmão pelo latim,
Conheço o vinho pela pipa,
Conheço tudo, menos a mim.
Conheço a mula e o cavalo,
Conheço o carro e a carreta,
Conheço a galinha e o galo,
Conheço o sino e a sineta,
Conheço a flor pelo talo,
Conheço Abel e Caim,
Conheço o pote e o gargalo,
Conheço tudo, menos a mim.
Ofertório
Príncipe, conheço tudo em suma,
Conheço o branco e o carmim,
E a morte que o fim consuma.
Conheço tudo, menos a mim.
Não sabemos se François Villon algum dia existiu. Aliás, é muita presunção imaginar que uma obra poética precisa sair de um homem — quem nos assegura que uma poesia não pode sair do nada, das estrelas, do roçar dos ramos de uma árvore? É realmente imprescindível um aparato humano, com sua fortaleza de instável carne, a sustentar um texto com a sua sombra de uma origem baseada na sua biografia? Contudo, muitas pessoas tentaram responder ao seu mistério, sem perceber que a existência de um homem mais atrapalha a obra do que a auxilia. É melhor imaginar a literatura como algo puro, desvinculado das veleidades e idiossincrasias de uma única pessoa; melhor imaginar que a arte brota do chão ao invés de sair de uma pessoa desprezível ou criminosa, alguém indigno de ter criado poemas que mais se assemelham a mentiras e ironias do que algo capaz de elevar o espírito.
As melhores perguntas são aquelas que não conseguimos responder. Na época em que vivemos, o mundo se desespera para ter mais informações, mais certezas. Eu sigo o contrafluxo: procuro a pergunta que não se rende. A resposta impossível. O mistério escondido na neblina. A instabilidade da dúvida. Não tenho as respostas — sequer sou capaz de me entender, o que dirá entender os outros — , mas sei que a pergunta em torno da qual meu espírito se originou continua a animar minha existência com seu fogo frio.
Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.