Quando a literatura chuta a porta da realidade
De Gustavo Melo Czekster
Muitas pessoas falam de como a realidade afeta a literatura, mas poucos discutem o contrário: aquele momento em que a literatura sai da segurança das páginas do livro e deforma o mundo em que vivemos, passando a fazer parte indissolúvel dele.
Dois anos atrás, estava em Montevidéu quando decidi seguir o “Guía Benedetti de Montevideo”. Através de um mapa disponibilizado na internet pela fundação que leva o seu nome, um leitor de Benedetti pode seguir a trilha descrita nos livros, poemas e contos. Como grande admirador da obra deixada pelo escritor uruguaio, não era tão difícil encontrar os cenários das suas histórias; era possível inclusive, com um esforço imaginativo, ver os seus personagens interagindo no meio das pessoas, ao ponto de ser impossível saber quem estava ali e quem só morava na minha imaginação (ou na de Benedetti). Por questões de tempo, só consegui realizar dois percursos, o da Ciudad Vieja e do Centro, mas foi uma sensação extremamente prazerosa passear pelos locais descritos em livros como “Gracias por el fuego”, “Montevideanos” e “La tregua”. Também estive em lugares não mencionados no guia, mas cujas descrições remetiam a pontos existentes na cidade. Era um dia de sol discreto, e foi interessante constatar como Montevidéu estava alterada pela prosa límpida de Benedetti, sempre capaz de perceber um ângulo inusitado em meio à dureza do mundo real.
Toda forma de expressão artística lança sombras sobre a realidade. Eu vejo movimentos de dança quando alguém se desvia de uma pessoa na calçada; percebo Monet me espiando dentro de algum por de sol indiferente, assim como recordo de Renoir no meio de um jardim deserto; jurei ter escutado Mozart quando, atrasado, corria para um compromisso profissional. A arte caminha por aí, alterando os nossos passos, e tenho a secreta convicção de que as pessoas fecham os olhos e ouvidos para as interferências artísticas que insistem em se interpor na sua rotina. É mais cômodo viver em um mundo repleto de arestas reais ao invés de mergulhar na insanidade gerada pelas múltiplas conexões da arte no nosso dia a dia.
Às vezes, o que nos salva do desânimo gerado pela realidade, esta onda implacável que insiste em esboroar os nossos sonhos, é a imaginação. A capacidade de pensar além daquilo que os sentidos detectam. Nos seus anos de pobreza, Honoré de Balzac necessitou morar em um casebre destituído de aquecimento e de móveis. As suas refeições diárias consistiam em um pão velho embebido em água. Para se ter uma ideia, tão pobre estava Balzac na época que, ao despertar de um cochilo e ver um ladrão tentando arrombar a gaveta da sua escrivaninha, deu uma gargalhada e disse “Não tens chance alguma de encontrar dinheiro na minha escrivaninha à noite, ainda mais quando eu, o proprietário legal dela, jamais consigo encontrar dinheiro algum durante o dia!”.
A forma que ele criou para lidar com a pobreza foi buscar refúgio na sua imaginação. Para tanto, o autor de “A comédia humana” escreveu nas paredes vazias do apartamento aquilo que desejava ver. Em uma delas, escreveu “Tapeçaria Gobelin com espelho veneziano”. Acima da lareira, escreveu “Pintura de Rafael”. Na parede do quarto, “Painel de madeira pau-rosa com cômoda”. Quando lia os seus escritos, o autor saía da realidade que tentava lhe sufocar e ia para outro mundo, um local confortável criado sob medida pela sua criatividade, em um procedimento que lhe impedia de enlouquecer.
Balzac também era um rematado glutão e, durante três longos anos, quando encarava o pão velho e a água, ele pensava nos maiores banquetes e, assim, a sua imaginação substituía a realidade. Em certa ocasião, um livreiro de Paris foi visitá-lo e desistiu de publicar a sua obra por acreditar que nada decente poderia sair de ambiente tão horrível. O livreiro destacou o frio no interior do apartamento e, assim como Balzac fez, podemos supor a incrível imaginação de um homem, capaz de sobreviver aos invernos parisienses pelo truque nada fácil de criar mentalmente um aquecedor que não existia.
As pessoas sofrem graças ao excesso de realismo. Se cedessem mais espaço para as suas imaginações, boa parte do consumismo desenfreado da atualidade e da busca quase insana por respostas impossíveis deixaria de existir. Viver em um mundo exclusivamente imaginário também é garantia de dor, mas saber oscilar entre a fantasia e a realidade permite-nos suportar as nossas próprias limitações.
A literatura é uma forma de estimular nosso escapismo das verdades que preferimos não ver, muito mais do que a ideia de “simulação da realidade como forma de preparação para aflições e alegrias futuras” como pretendiam as teorias clássicas. De acordo com elas, se uma pessoa lesse um livro sobre luto, estaria mais preparada para enfrentá-lo no instante oportuno; se lesse sobre o amor, poderia estar mais cautelosa quando ele surgisse. Além de simular situações, a literatura também serviria como conforto. Não é à toa que, no seu leito de morte, o último pedido de Balzac foi “Alguém mande chamar Bianchon… ele sabe como me salvar!” Bianchon foi o médico que o escritor francês colocou em “A comédia humana”. O pedido de Balzac tanto pode ser interpretado como um delírio quanto uma forma de pedir que a literatura venha salvar a sua vida.
Contudo, existem momentos que a ficção não só se mistura com a realidade como também lhe dá uma sova. Foi o que aconteceu com a obra máxima de Henryk Sienkiewicz, a “Trilogia”, constituída por “A ferro e fogo”, “O dilúvio” e “O pequeno cavaleiro”. Lançada na forma de folhetins publicados em jornal no início do século XX, a “Trilogia” mudou a noção de pátria da Polônia e, além disso, alterou a realidade de uma maneira que repercute até hoje.
No primeiro volume, “A ferro e fogo”, que descreve a luta dos poloneses contra os cossacos, Sienkiewicz inseriu um personagem secundário que logo caiu nas graças dos leitores: pan (“senhor”) Longinus Podbipieta, um “lituano gigante, de força indomável e coração sensível”. Com dois metros de altura, pan Longinus tinha uma espada tão pesada e portentosa que somente ele era capaz de erguê-la. Era um dos soldados mais ansiosos pela guerra, pois prometera manter um voto de castidade até o dia em que repetisse a proeza de um antepassado na Batalha de Grunwald, que arrancara as cabeças de três soldados inimigos em um golpe único. As frustrações de pan Longinus relacionavam-se com a falta de disciplina dos cossacos, que nunca ficavam perfeitamente alinhados por tempo suficiente para lhe permitir o golpe decisivo. Apesar de ser um homem descomunal e temível, ele era respeitador dos amigos (que aproveitavam para zombar do voto de castidade, em especial pan Zagloba, considerado, com justiça, o “Falstaff polonês”) e tímido ao ponto de ruborizar quando falava com mulheres.
Acho curioso quando elogiam a coragem de George R. R. Martin de matar personagens adorados pelos leitores em “As crônicas de gelo e fogo”, pois Sienkiewicz agiu muito pior. Depois de fazer os leitores se apaixonarem pelo caráter misto de delicado e selvagem de pan Longinus, depois das decepções dele tentando cortar três cabeças cossacas, depois de se apaixonar por uma mulher e ir para os combates com mais vontade ainda de se livrar do incômodo voto de castidade, Henryk Sienkiewicz colocou o quarteto central do livro em uma luta impossível. No final do capítulo, o “Leão Lituano” estava cercado por inimigos e, quando os seus aliados fugiram, ainda escutaram os gritos de júbilo do companheiro no momento em que, enfim, realizou a sua promessa, momentos antes de ser assassinado.
A morte de pan Longinus caiu como uma bomba no meio da Polônia. No domingo seguinte, as igrejas se encheram de leitores. Os padres tiveram que celebrar dezenas de missas em nome do personagem; os sinos tocavam de forma ininterrupta. No intervalo de um mês inteiro, boa parte dos poloneses guardou luto pela morte honrosa de pan Longinus. Não bastando, durante alguns anos, o nome “Longinus” foi o campeão entre os recém-nascidos poloneses, e é um nome que ainda hoje aparece nas certidões de nascimento. Estes fatos aconteceram antes do advento da internet, o que deixa a façanha do escritor polonês ainda mais memorável. Também vale destacar que, ao contrário dos tempos atuais, em que se matam personagens e, depois, se encontra uma forma de ressuscitá-los, naquela época a morte representava o fim verdadeiro, sem nenhuma possibilidade de retorno.
A morte de um personagem pode ser sentida como a morte de alguém da família? Sienkiewicz demonstrou que a ficção pode abandonar as folhas de um livro e repercutir na realidade, alterando-a de forma indelével. Ele não fez isto somente com pan Longinus: também criou Bohun, um vilão charmoso e atormentado por um amor tão impossível pela mocinha indiferente que as mulheres da Polônia em massa se apaixonaram pelo lado errado da guerra, além da famosa história da “colubrina de Kmicic”, um canhão fictício que estava no cerco de Jasná Gora e destruído por Kmicic, descrito com tamanha riqueza de detalhes que, hoje, nas proximidades da Catedral de Czestochowa, colocaram um canhão para satisfazer os leitores que continuam indo até a cidade para ver algo que existiu somente na ficção.
Mas não são os únicos exemplos. Nas palestras que ministro sobre a relação entre literatura e terror, sempre mostro o “kit vampiro”, uma mala muito vendida na Europa do passado, contendo estacas, um revólver com balas de prata, uma Bíblia e um colar de alhos. Até cinquenta anos após a publicação de “Drácula” de Bram Stoker, quando alguém ia viajar para Europa Oriental, era costume adquirir estas malas, pois não se sabia quando um vampiro poderia aparecer.
Também podemos lembrar da onda de suicídios que varreu a Alemanha após a publicação de “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Goethe, quando vários jovens se mataram por amor, influenciados pelos sentimentos descritos no livro. A literatura invade a realidade sem demonstrar escrúpulos, existindo o severo risco de, inadvertidamente, causar mortes e outros problemas.
Os exemplos de Balzac, mobiliando sua casa deserta com a força da imaginação, e de Sienkiewicz, criando um personagem que morreu dentro de um livro e foi velado na realidade, demonstram que a maior força de uma pessoa encontra-se no seu interior. Quando imaginamos, somos capazes de mudar qualquer realidade. Se existe algo que a literatura nos ensina é que não somos meros joguetes do Destino, mas escravos daquilo que pensamos, o que deixa a tarefa de criar e imaginar ainda mais vital, o oxigênio para a realidade.
Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contosO homem despedaçado.