Quando escritores se encontram
Gustavo Melo Czekster
Não faz muito tempo, estava tomando um café e alguém me comentou sobre a quantidade de escritores que caminham por ruas, estão em livrarias ou degustam beberagens em cafeterias de Porto Alegre. É verdade: no curto espaço de uma hora, tinha encontrado ou visto ou abanado para mais de dez escritores e escritoras. E eles continuavam aparecendo como se brotassem do chão, em uma cornucópia incessante, cheios de palavrinhas a escaparem por entre seus poros, histórias que deambulam por aí.
Sempre brinco que Porto Alegre possui escritores demais. Mas, na verdade, as pessoas de iguais interesses possuem a tendência de se juntarem nos mesmos pontos. Assim como existem lugares com muitos escritores, também há pontos onde se encontram desenhistas, pintores, engenheiros, psicólogos. Em geral eles não são sequer formalmente identificados, mas, certo dia, alguém está em determinado local e pensa na quantidade de colegas de profissão que está ao seu redor, e então tem a epifania: estão todos no mesmo local por que ali é o “local de todos”.
As pessoas vão até lá para encontrar os seus semelhantes, e ninguém sabe muito bem como chegou, mas virou o lugar em que vamos para ver e sermos vistos. Não sabemos o motivo de estarmos lá, mas estamos. Curiosamente, identificá-lo como ponto de encontro oficial é o indicativo da sua morte, e que logo será escolhido outro lugar. A melhor resposta para esta aparente contradição quem me forneceu foi um colega escritor em um bate-papo, quando perguntei onde ficava o “bar oficial dos escritores de Porto Alegre”. Segundo ele, no dia em que descobrirmos dito bar oficial dos escritores da capital gaúcha, teremos que deixar de frequentá-lo, pois vai contra o espírito solitário da literatura imaginar que podemos confraternizar todos sob o mesmo teto. Por isso, o ponto de encontro dos escritores é mais ou menos como o Clube da Luta do Palahniuk: ninguém fala sobre ele, mas todos estão lá.
Sempre existiram pontos de encontro de escritores e, como não poderia deixar de ser, eles estão repletos de histórias que saíram do seu interior. No ensaio “Meus encontros com Kafka”, Otto Maria Carpeaux descreve o dia em que se encontrou acidentalmente com Franz Kafka. Primeiro ele menciona o Café Românico, lugar tradicional de Berlim que reunia os maiores escritores de então. Sentados ao redor de uma mesa, ficavam “alguns grandes escritores de verdade: Döblin, Arnold Zweig, Werfel”, e “ninguém ousava aproximar-se sem ser especialmente convidado; o que não aconteceu nunca.” Circulando por tal ambiente, estavam jovens escritores, contemplando os mais famosos como se fossem cachorros esperando um resto de comida ou, no caso, alguma preciosa dica sobre o sucesso literário.
Às vezes, alguns escritores jovens eram convidados, como uma especial deferência, a seguir a conversa dos grandes autores em um dos apartamentos localizados no bairro boêmio e elegante do Bayrischer Platz. Carpeaux recebeu tal convite e, no apartamento, travou uma rápida conversa com Kafka:
“Conheci poucos entre os presentes. Fui sumariamente apresentado. Sentindo-me um pouco perdido no meio dessa gente toda, não tendo a coragem de aproximar-me do centro da reunião, da grande e belíssima atriz D. F. — que tinha fama de Messalina — retirei-me para um canto já ocupado por um rapaz franzino, magro, pálido, taciturno. Eu não podia saber que a tuberculose da laringe, que o mataria três anos mais tarde, já lhe tinha embargado a voz. E então se desenrolou ‘aquele’ diálogo:
‘Kauka.’
‘Como é o nome?’
‘KAUKA!’
‘Muito prazer.’
Foi este o começo e o fim do meu primeiro encontro com Franz Kafka. Ao sair do apartamento, perguntei a meu amigo e introdutor: ‘Quem é aquele rapaz magro com a voz rouca?’ Respondeu: ‘É de Praga. Publicou uns contos que ninguém entende. Não tem importância’.”
O Tempo e a Literatura acabaram negando o vaticínio do amigo de Carpeaux, e Franz Kafka veio a se tornar uma voz literária não só dissonante da época em que viveu, mas da própria Humanidade. Tornou-se maior do que os demais autores que estavam na mesa dos “grandes escritores”, o que só demonstra algo que Chesterton falou sobre Dickens no ensaio biográfico sobre o autor inglês: os seres humanos só reconhecem a genialidade de outra pessoa depois que ela morre.
Uma das vantagens dos escritores estarem nos mesmos lugares é a possibilidade deles interagirem entre si, o que pode ser uma garantia tanto de dissabores quanto de divertimentos. Assim como Otto Maria Carpeaux encontrou um Kafka esquecido no meio de outras pessoas, podemos nos surpreender com as pessoas que transitam por estes meios, que são a garantia de boas histórias.
Como tudo na vida, os melhores encontros acabam sendo os casuais. Existe uma estranha energia no mundo, que faz almas e pensamentos iguais se jogarem uns nos outros — às vezes de forma literal, algo que explica tanto os grandes amores quanto os ódios mais incandescentes.
O biógrafo Bernard Frank conta que, no século XIX, os escritores e artistas de Paris costumavam se juntar na casa de madame Barrère, que adorava reunir pessoas inteligentes sob seu teto. Pois neste cenário um jovem de 19 anos chamado Jules Verne estava descendo a escada com passos rápidos quando trombou — o termo mais adequado seria “atropelou” — com um homem de formas vastas e compleição robusta que vinha em sentido contrário. Eram épocas em que a menor desavença podia acabar com um duelo às margens do Sena, e o homem que subia a escada agitou a bengala na cara de Jules Verne, xingando-o de todos os impropérios possíveis. Verne olhou o homem de cima a baixo e, provavelmente encarando a barriga do outro e com certeza sendo irônico, perguntou;
- O senhor já jantou, cavalheiro?
- Perfeitamente, meu jovem, e comi nada menos do que uma tortilla de toucinho à moda de Nantes…
- As tortillas de toucinho à moda de Nantes feitas em Paris não valem nada, meu senhor, está me ouvindo?, é preciso colocar açafrão para que se descubra…
- Assim que você sabe fazer tortillas, meu jovem?
- Se eu sei fazer tortillas, senhor? Sei principalmente comê-las! O senhor ainda não experimentou nenhuma de verdade…
- Como o senhor é insolente! Tome aqui meu cartão, com meu endereço… é inútil que me dê o seu… apareça na quarta feira na minha casa para fazer uma tortilla…
Os dois se afastaram e Jules Verne saiu da casa de madame Barrère, indo visitar seu amigo, o compositor Hugnard. Contou a história do estranho encontro que tivera nas escadarias da outra casa, falou do diálogo e, ao pegar o cartão para ver com quem tinha esbarrado, soltou um grito de estupefação. Ele discutira tortillas — e entrara em um duelo gastronômico — contra Alexandre Dumas, o famoso autor de “Os três mosqueteiros” e “O conde de Montecristo”.
Os dois escritores acabariam se tornando excelentes amigos, sendo que Alexandre Dumas virou um dos primeiros leitores das obras fantásticas de Jules Verne. Foi um dos efeitos colaterais agradáveis do choque ocorrido nas escadarias da mansão de madame Barrère, e agora faz parte da aura literária que cerca a ambos os escritores. Grandes espíritos sempre acabam se encontrando e se reconhecendo, e este talvez seja o melhor motivo para continuarmos encontrando nossos iguais por aí: a sensação de estarmos falando com pessoas que nos entendem até mesmo quando não sabemos quem elas são.
Foi para levar tal espírito de comunidade a píncaros jamais vistos que, em 1887, J. M. Barrie — o autor de “Peter Pan” — radicalizou na sua intenção de reunir escritores e artistas. Pegou todo o pessoal que costumava andar por diferentes lugares na Inglaterra e formou a melhor maneira de congraçar pessoas de interesses e estilos múltiplos: um time de cricket.
O time de cricket criado por J. M. Barrie recebeu o nome de “Allahakbarries”, e jogou junto todos os verões de 1897 a 1913. Dois exploradores que viajaram para a África disseram que o nome significava “Heaven help us” (“Allahakbar”), com o acréscimo posterior de “ries”. No entanto, os membros do grupo acreditavam que era um efeito sonoro criado com o sobrenome de Barrie, pois “Allahakbar” não possui tal sentido, e era como se eles fossem “os rapazes de Barrie”. Boa parte deles acreditava também que o nome se relacionava com a sua imperícia, pois eram péssimos jogadores: alguns deles não sabiam sequer segurar um bastão, outros odiavam correr em um campo e era um time em que os seus integrantes preferiam ficar no banco descansando ao invés de jogar.
Na escalação dos “Allahahkbarries”, uma constelação literária poucas vezes repetida. Além do próprio J. M. Barrie, estavam Arthur Conan Doyle, Rudyard Kipling, H. G. Wells, P. G. Wodehouse, G. K. Chesterton, Jerome K. Jerome e A. A. Milne. Henry James assistiu a algumas partidas, mas jamais se encorajou a entrar em campo.
Outros escritores fizeram parte dos “Allahahkbarries”, que, infelizmente, entrou para a História do cricket como um dos piores times que já existiu na Terra. O único que sabia jogar algo era Arthur Conan Doyle, assim descrito de forma engraçadíssima por J. M. Barrie: “Um grande arremessador. Sabe as fraquezas do rebatedor pelas cores da lama nos seus sapatos”.
Os demais jogadores eram lamentáveis. A descrição dos problemas enfrentados por J. M. Barrie com seu time mostra muito bem a extensão do drama do treinador:
- Minutos antes da primeira partida oficial dos “Allahahkbarries”, Barrie presenciou um debate no vestiário. Os jogadores discutiam sobre qual o lado certo que deviam segurar o taco para acertar a bola;
- Um jogador francês imaginava que, quando alguém dizia “Over!” para uma bola arremessada fora do campo, a partida estava acabada. Quando a primeira bola saiu e o árbitro gritou “Over!” (o que aconteceu em 15 segundos de jogo), ele se afastou da jogada e saiu de campo, como se fossem normais partidas de cricket que durassem 15 segundos;
- Barrie descreveu a defesa do time como “quebra qualquer coisa que veja pela frente e, às vezes, até acerta a bola”;
- Barrie manifestou-se sobre a reclamação de um jogador sobre a forma da bola: “se ele não gosta do formato da bola, pode ir buscá-la antes que chegue o jogador do outro time adversário, bata nela de novo e ganhe o ponto”;
- Sobre os adversários do time em 1889: “parece que a beirada do campo era o local mais agradável de se ficar. Nada menos do que sete jogadores adversários preferiram permanecer lá ao invés de jogar”;
- Todo início de “temporada”, J. M. Barrie precisava escrever um manual para o próprio time sobre como jogar cricket e como se comportar na partida. Um dos conselhos amigáveis para seus jogadores: “quando vocês acertarem a bola com o taco, não vão comemorar com a plateia. Corram imediatamente até o próximo ponto. Não parem para celebrar.”
J. M. Barrie era um cronista detalhado das desventuras do seu time de cricket. No início, ele realmente acreditava na qualidade dos jogadores, mas logo foi cedendo às evidências da dura realidade. Reconhecia ser lento e deixar os companheiros em má situação no campo. Nas últimas anotações dos jogos, Barrie já dizia — sem disfarçar o despeito — que, quanto melhor escreve o homem, pior ele joga, o que explicaria as sucessivas derrocadas dos “Allahahkbarries”.
As partidas de cricket e a trajetória deste time formado por escritores acabou com o advento da Primeira Guerra Mundial. No último relato, Barrie escreveu, e a comparação do time fracassado com a situação da Europa é evidente: “A Última Partida de Cricket. Um ou dois dias atrás a guerra foi declarada — minha ansiedade e premonição — os rapazes jogando alegremente cricket em Auch, visto da minha janela. Eu os vejo caindo um a um, e restando cada vez menos e menos no campo”.
Em 1920, Barrie realizou uma última partida dos “Allahahkbarries”. Aos 70 anos, ele era o 12º jogador do time, e o único membro da formação original que ainda estava vivo. Era o alto custo dos tempos em que viviam, e um sinal de que tudo acaba passando, até mesmo as risadas e as amizades.
Todos estes inusitados encontros de escritores, seja Kafka ignorado em um apartamento em Berlim, seja Jules Verne discutindo tortillas com Alexandre Dumas, seja J. M. Barrie juntando todos os seus amigos escritores para formar um time de cricket, demonstram que o mais importante de tudo não é nos juntarmos com nossos iguais, mas nos divertirmos com as pessoas que nos são queridas. Pois, no final, isto é o que levamos da vida: os bons momentos que passamos juntos com quem gostamos e as risadas que trocamos. O resto não importa muito.
Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contosO homem despedaçado.