Recebe o afeto que se encerra

Todos querem reagir, todos querem dizer que tudo vai mal, todos estão dispostos a soluções definitivas e exacerbadas. Todos têm justos motivos para tanto.

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readJul 10, 2015

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Por Gustavo Machado

Acordo, tomo banho e ligo a tevê, quero ver a temperatura. Passo por um deputado que pede a renúncia da presidente da República. Dedo em riste, olhos vidrados, defende uma saída honrosa enquanto é tempo. Troco de canal e vejo um outro parlamentar sendo preso. Troco de novo e há empresários da construção civil embarcando algemados numa caminhonete preta. Em outro noticiário, uma reportagem mostra o caso de um homem espancado até a morte por suspeita de assalto. Noutro, o caso de uma mulher que conseguiu registrar onze filhos inexistentes num programa de amparo social. Finalmente, o canal do tempo. Na rua, nove graus e três décimos. E acho que vem chuva.

André Feltes

Desligo a tevê, ligo o rádio, clic. Enquanto me visto, dois economistas falam nas prováveis consequências de um impeachment. Troco de estação e um jornalista político apresenta possíveis painéis de uma hipotética sucessão no poder. Saio com pressa e só na rua lembro que o rádio ficou ligado.

Adriana Franciosi

No meio do caminho, paro. Ao longo do balcão do café, há dois velhos alertando a outros que em torno deles se aglomeram: os militares de 1964 estão voltando de farda nova. Na época da ditadura não se roubava tanto, só tinha problema quem causava problema, dizem. Escuto, atento. Do outro lado, outros dois velhos cochicham sobre os haitianos que vendem bugigangas pela cidade. Segundo eles, são uma força auxiliar treinada, com armas escondidas, prontos para entrar em ação ao primeiro sinal de queda do governo socialista que nos rege. Nem sabia que nosso governo era socialista, eu penso, mordendo minha torrada. Mastigo, engulo e bebo café preto o mais rápido que posso. Saio.

Instantes depois, o taxista que me leva ao trabalho dirige o carro laranja como um maníaco. Seria um bom piloto, eu penso, refletindo sobre as disparidades sociais que impedem as sublimações. Ele acelera fundo, pisa forte no freio, entra duro nas curvas, gruda nos outros, costura, abre a janela e xinga. Como tenho pressa, não reclamo. Ele fala dos políticos que roubam sem vergonha e dos patrões que lucram sem vergonha e do povo que vive de jeitinhos, também sem vergonha. Como é que resolve, eu pergunto. Ele diz que começaria o conserto entrando no Congresso Nacional com uma metralhadora. E depois? Depois, entraria com a mesma metralhadora num shopping. Pago, saio, trabalho.

Joba Migliorin

No almoço, fico em dúvida sobre quase tudo enquanto, por algum motivo, me vêm à mente o Hino da Bandeira. E trechos de um ensaio biográfico de Paulo Francis. Não sei se vivemos uma era extremada, se as ruas foram tomadas por idiotas, se o idiota sou eu ou se tudo isso, junto. Penso e receio por um futuro próximo que lembre, em alguma medida, um Estado de desobediência civil. Claro que sou suspeito. Porque me impressiono com estas coisas como um hipocondríaco se impressiona com um espirro. E sou suspeito porque, como escritor, não é raro que eu misture mundo concreto e mundo imaginário. Espero que não seja um caso para camisa-de-força.

Também sou suspeito porque, nunca escondi, tenho uma certa queda, na literatura, pelas distopias. Não que me agrade a literatura apocalíptica panfletária, reducionista em forma e conteúdo. Mas me encantam as narrativas que incomodam o leitor acendendo, de forma indireta mas profunda, uma luz amarela de alerta.

Findo o almoço, começo a voltar lentamente ao trabalho. É fino e baixo o muro que separa ficção e realidade objetiva — se é que existe realidade objetiva. Então deve ser tudo um exagero meu. Mas fico pensando se estamos mesmo vacinados contra um possível retrocesso. Prefiro acreditar que não voltaremos a ser o país do futuro.

Parece que, como nunca, os distintos brasis sociais e antropológicos comprimidos no Brasil geopolítico tornaram-se antagônicos. Todos querem reagir, todos querem dizer que tudo vai mal, todos estão dispostos a soluções definitivas e exacerbadas. Todos têm justos motivos para tanto.

Estou escovando os dentes e cantarolando, aos sussurros. Complementarmente, parece que o prazo de validade de todas as instituições expirou. Pequenas rachaduras nas estruturas dos três poderes de Estado e seus correspondentes desdobramentos tornaram-se fissuras abissais por meio das quais pouco se vê. Coisa que acontece no país a cada trinta anos, aproximadamente. O que já é uma outra história.

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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