Ilustração de Jenniffer Valvert

Se arrependimentos matassem

Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
10 min readOct 13, 2016

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Existem alguns momentos decisivos na vida de todos nós: quando brigamos pela primeira vez, punhos descobrindo a dor inédita de bater na pele do outro; o instante em que se rompe a inércia e se busca o beijo; o segundo em que ficamos diante da morte e descobrimos o gosto do medo. Voltaremos a passar muitas vezes por essas experiências, mas a primeira ocasião sempre refulge na memória com a luz sombria do desconforto.

Uma ocasião de extrema importância que costumamos ignorar (ou, ao menos, não pensar a respeito) é quando ficamos diante do dilema: aceitamos algo que fizemos ou negamos? O dia em que, enfim, nos arrependemos de algo já realizado.

Acontece com todo mundo. É da natureza humana fazer atos dos quais, depois, irá se arrepender. Ter a chance de voltar atrás torna a todos nós covardes em potencial. Até São Pedro passou por isto, quando recusou conhecer Jesus Cristo por três vezes antes do cantar do galo. Não é demérito algum ter medo de negar as condutas e pensamentos anteriores. Cada um tem a sua consciência para lidar depois, e só quem perdeu algumas horas de sono queimando de vergonha pelas condutas tomadas em virtude da covardia sabe o verdadeiro sentido da vida, essa tonitruante sequência de vergonhas e humilhações com lapsos de sol.

Não foram poucos os artistas que, em algum momento das suas vidas, viram-se forçados a negarem aquilo que criaram. Recordo de uma história que escutei sobre Moacyr Scliar, que passou a vida inteira rastreando exemplares do primeiro livro lançado ainda jovem, e do qual tinha tanta vergonha que comprava os livros para lhes destruir e apagar tal nódoa criativa da sua trajetória de escritor.

Depois de passarem um tempo enorme imaginando algo, e gastarem outra quantidade de esforço significativa no intuito de realizá-lo, alguns artistas subitamente recusaram-se a continuar como autores da própria obra. Ainda assim, tão forte era a sua obra que ela se libertou e, apesar de tudo, ganhou o mundo.

Em alguns casos, os artistas foram ao extremo de não só repudiarem a criação, como se tornaram os maiores e mais ferozes críticos de si mesmos. Foi o que aconteceu com Ovídio, autor de “As metamorfoses”. Ele já era um autor reconhecido como o maior da sua época quando, após descrever as histórias dos deuses, decidiu aventurar-se por terreno mais inóspito: as relações entre homens e mulheres na sociedade romana. É provável que um pouco de arrogância tenha se apoderado do insuperável poeta, a sensação de que somente ele poderia contar a história de como os relacionamentos nasciam e morriam, das táticas de sedução, das hipocrisias que regem as mulheres e os homens. Ovídio imaginou estar acima de todos, e pagou por tal presunção.

Quando escreveu “A arte de amar” (Ars Amatoria), o poeta latino desprezou dois fatores: o primeiro foi o seu talento literário, pois o livro se tornou famoso em todas as casas de Roma, decorado por aristocratas e escravos. O segundo foi o conservadorismo do Imperador Augusto, famoso pela frugalidade e pelo desejo de controlar os excessos libertinos da sociedade (e da sua família, cujas condutas escandalosas eram escondidas sem muito sucesso), que se enfureceu ao tomar conhecimento do conteúdo erótico da obra. Era uma noite calma de verão quando a trovoada despejou-se sobre a cabeça do poeta, que recebeu a ordem de deixar imediatamente Roma e partir em exílio para Tomos, cidade hoje na Croácia. Ovídio deveria abandonar a civilização e a cultura romanas, que tanto apreciava, para morar em meio aos povos bárbaros.

Ovídio estabeleceu-se em meio às tribos bárbaras e, com o passar dos tempos, graças ao seu domínio cultural e ao manejo da palavra, tornou-se respeitado no lugar do exílio, tanto que aprendeu a língua local e escreveu nela um panegírico para o Imperador Augusto, “O Cântico do Triunfo”, que não sobreviveu aos tempos.

Quando estava no exílio, Ovídio só conseguia pensar no que perdera: as festas de Roma, os agitos sociais, a vida cultural. Tentando reverter a condenação, Ovídio lançou-se à tarefa de mandar longas cartas suplicando e adulando Augusto e, para tanto, renegou a própria obra. Transformou-se no maior crítico de “A arte de amar”, menosprezando o alcance do que escreveu, diminuindo o teor das lições, insinuando que suas palavras tinham sido distorcidas. Valia qualquer argumento para voltar para Roma.

Seus esforços para destruir a obra que lhe conduziu ao desterro foram inúteis, pois Augusto nunca respondeu às suas cartas e, após a morte do imperador, o novo, Tibério, manteve a condenação. Ovídio nunca mais retornou à Roma, e “A arte de amar” é ainda hoje lida e apreciada, o que demonstra que obras sobrevivem não graças aos seus autores, mas apesar deles.

Até mesmo quando morreu, Ovídio continuou com as suas lamúrias e “puxa saquismos”. Pediu para que “ao menos suas cinzas voltassem para Roma” e para que escrevessem na sua lápide “Eu, que aqui jazo, o poeta Nasão, cantor dos doces amores, pereci por causa dos meus talentos; mas tu, que passas, quem quer que sejas, se alguma vez amaste, não hesites em dizer; que os ossos de Nasão, enfim, repousem suavemente.” Uma alfinetada final, um louvor ao próprio talento literário e um pedido para que sempre falemos de amor, mesmo sendo estigmatizados e destruídos. Ovídio conseguiu fazer literatura até depois de morrer, e nunca desistiu de voltar para casa.

Existem artistas que acreditam que a melhor maneira de acabar com uma obra é criar outra semelhante em sentido contrário, como se a força de uma pudesse apagar a anterior. Quem fez isso foi o russo Ossip Mandelstam. Em 1934, ele declamou o “Epigrama de Stálin”, um poema de fôlego cuja história de como foi realizado e correu mundo é a maior prova de que a verdadeira obra de arte tem vida própria e autônoma. Como não se arrepiar com as suas primeiras estrofes?

“Surdos na terra que pisamos nós vivemos.
A dez passos de nós, quem ouve o que dizemos?
O alpinista do Kremlin eu ouço há meses:
É um assassino massacrando os camponeses.
Os dedos gordos como larvas mela
E, em chumbo, cai-lhe o verbo de sua goela.”

Elaborado de impulso no interior da casa onde Ossip morava com sua esposa, Nadjeda, o poema foi declamado para uma exígua plateia, constituída por Boris Pasternak, Anna Akhámatova e outras pessoas, que tentaram demover o poeta da loucura de pensar naqueles versos e assumiram o compromisso de não redigi-lo por causa do seu caráter polêmico. Contudo, uma das presentes naquele dia, Zinaida Záitseva-Antónova, amante de Ossip e de Nadjeda, resolveu escrevê-lo para melhor memorizar e, algumas semanas depois, o “Epigrama de Stálin” corria a União Soviética, incontrolável como fogo em palha seca.

Ossip Mandelstam foi preso. Deveria ser assassinado, mas Stálin temeu matar o poeta e ampliar o alcance dos seus versos, então preferiu mandá-lo para o exílio. A ordem de Stálin foi clara: Ossip deveria ser isolado, mas mantido vivo. Entre 1934 e 1937, muitas pessoas tentaram convencer o poeta a deixar o seu ofício, mas ele não conseguia, as poesias continuavam a atormentá-lo.

Tentando comutar a sua pena, sofrendo com doenças respiratórias, com o frio e com a fome, Mandelstam percebeu que não podia apagar a força do “Epigrama de Stálin”, a não ser que criasse uma força poética equivalente ou maior, capaz de substituir o poema anterior pela nova criação. Entregou-se com desespero a esta tarefa, elaborando poemas em honra a Stálin, panegíricos, louvores, mas a sua intenção manifesta era tão falsa que aumentava a força do poema proscrito. Até mesmo Stálin, que adorava um elogio, via a mentira das palavras de Ossip e não dava mostrar de ter recebido ou apreciado poemas como “A ode ao Pai dos Povos” e outros.

Em 1937, Ossip foi novamente preso por atividades contrarrevolucionárias e mandado para Vtoraya Rechka, onde acabou falecendo. Nadjeda tornou-se a memória viva dos poemas do marido, passando boa parte da sua vida a fugir de Stálin e carregando consigo, no interior da recordação, os poemas de Ossip. O próprio poeta desprezava as obras de exaltação a Stálin que realizou neste período nebuloso em que o medo falou mais alto do que a integridade, e solicitou para que ninguém nunca soubesse disso, mas Nadjeda manteve vivos tanto os poemas bons quanto os desprezíveis.

Mesmo tendo se arrependido do impulso poético que lhe levou a elaborar o “Epigrama de Stálin”, Ossip percebeu que a obra adquirira vida própria, independente de si, e não podia mais ser destruída, mas esquecida ou eclipsada. O arrependimento acabou sendo inútil, e um poema se transformou no motivo para a sua morte. Entretanto, a ideia de que obras literárias obedecem às leis da Física, e uma força só pode ser anulada por outra que lhe seja equivalente ou maior, mesmo sem funcionar (podem existir duas obras literárias em sentido contrário dentro do mesmo mundo sem que uma necessariamente destrua a outra), revela uma nova maneira de lidar com as consequências dos próprios atos.

É improvável que algum artista tenha se arrependido mais da obra realizada do que o pintor simbolista polonês Wladislaw Podkowinski. Em 1893, quando tinha 27 anos, o pintor fechou-se no seu atelier para produzir a obra que anunciou como “a mais decisiva da sua vida”. Um ano depois, essa pintura veio ao mundo: um quadro enorme, de quase 3 metros de altura, chamado de “Frenesi de Exultação” (1894), que exibia uma mulher nua cavalgando um cavalo furioso.

O título parece o de alguma obra de Sidney Sheldon ou de Harold Robbins, e não está tão longe de tal interpretação: “Frenesi de Exultação” representa o orgasmo feminino. No entendimento do artista, o êxtase sexual seria o valor mais importante a ser buscado nas relações humanas. O cavalo suado e com baba a escorrer pela boca significa o vigor sexual; a mulher enlaçada no pescoço do animal está imersa no gozo, e o quadro inteiro é uma alegoria para o momento exato da ejaculação. É possível sentir a tensão sexual aflorar de cada uma das cores que compõem a obra e, mesmo passados mais de 100 anos, o quadro ainda desperta pensamentos lascivos.

Desde o início, Podkowinski passou a apresentar problemas de relacionamento com a sua obra. Era atormentado pela criação. Não conseguia ficar no atelier, não enquanto o quadro estivesse no seu interior, e tentou colocá-lo à venda. Não apareceram compradores. O pintor reduziu o preço de forma paulatina e, ainda assim, ninguém surgiu. Quando ofereceram um valor, era tão baixo que mal pagava os gastos do material usado na pintura.

Podkowinski colocou o quadro em exibição em Zacheta, e viu a sua obra transformar-se em um grande escândalo. Filas de curiosos se formaram em frente ao quadro; estima-se que mais de 12.000 pessoas viram “Frenesi de Exultação”.

No trigésimo sexta dia de exibição, Podkowinski entrou na fila, esperou pacientemente a sua vez chegar e, poucos minutos antes de fechar a galeria, sacou a faca do casaco e esfaqueou “Frenesi de Exultação”. Acertou em cheio a mulher no dorso do cavalo. Teria rasgado o quadro de cima a baixo se não fosse impedido por outras pessoas. Foi prontamente levado para longe da própria obra e internado em um hospital, passando por severa crise nervosa, que acabou agravando seus problemas pulmonares. Faleceu dois dias depois. Apesar do motivo oficial da sua morte ter sido a deficiência respiratória, há evidências de que possa ter se suicidado.

O motivo para o homem esfaquear a própria obra nunca ficou claro. Muitas teorias foram formuladas. Uma delas é que a mulher retratada no quadro era uma paixão não correspondida do pintor polonês, o que explicaria a primeira navalhada ter acertado em cheio a figura feminina. Ficou claro o desconforto que ele passou a sentir desde que Wladislaw Podkowinski terminou “Frenesi de Exultação”; a obra deixou de ser um sonho idílico e, ao ser concretizada, transformou-se no mais terrível dos pesadelos. E quem a tinha trazido ao mundo era o mesmo artista que, assim como aconteceu com Ovídio e com Ossip Mandelstam, perdeu a capacidade de controlar a criação. A única maneira de acabar com aquela sensação ruim era destruir a pintura, mas Podkowinski falhou. Arrependeu-se por pensar e por executar “Frenesi de Exultação”, e, como o quadro sobreviveu ao ataque violento realizado pelo seu idealizador, a única alternativa para o homem era deixar de existir, pois não havia espaço no mundo para os dois, o criador e a criatura.

Em algum momento da vida, todos iremos nos arrepender de algo. Não sabemos se estamos certos, e ajustes de conduta e mudanças de pensamento são não só inevitáveis, mas sinais de saúde mental. Desconfio muito das pessoas que dizem não ter arrependimentos, assim como desconfio daqueles que afirmam ter noites tranquilas e dormirem sem remorsos. Tenho receio de quem engessa o pensamento de tal forma que não consegue mais mudá-lo. A ideia de evolução passa pelo conceito de adaptação, não de certeza. Entretanto, tenho uma única certeza, e a ela me curvo como se fosse o altar de um Deus perdido: na vida, só se arrepende daquilo que não se faz. Portanto, muitos erros cometerei e muitos arrependimentos terei, pois, assim como vocês, estou experimentando os limites à medida que caminho, e ainda é melhor ter algo de que possa me arrepender na vida do que não ter nada.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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