Sobre a beleza das noites de chuva

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
4 min readNov 20, 2015

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Texto e fotos de Gustavo Machado

Eu já gostava da chuva mesmo antes de ter saído de dentro da barriga da minha mãe. Contaram-me que, em noites de tempestade, eu chutava forte o lado de dentro da barriga, como se pedisse pra sair e assistir aos raios clareando o céu. Quanto mais intensa a tempestade, mais eu gostava. Contaram-me tantas vezes sobre essas passagens que tenho a impressão de lembrar de certos trechos. Devem ter ficado armazenados em algum lugar da minha cabeça. Desses lugares que ficam intactos mesmo quando a gente vai crescendo, sabe?

Eu já gostava da chuva antes da vida adulta. Quando era criança, nos passeios noturnos, eu ficava de joelhos no banco de trás da caminhonete com motor dois tempos do meu pai. Se estivesse chovendo, era muito melhor. Ele e minha mãe discutiam e se xingavam nos bancos do motorista e do carona. Eu ficava olhando a chuva e as calçadas molhadas e brilhantes pela janela traseira. Apertava os olhos como se fosse um caso perdido de miopia e as luzes dos outros automóveis, dos semáforos, das vitrines, dos letreiros, dos postes de rua, todas elas se espichavam num efeito de distorção ótica que me proporcionava extremo prazer. Um prazer confortável, entende?

Eu já gostava da chuva antes de ter matado um homem que vestia o meu pijama e dormia ao lado da minha mulher, na minha cama, numa noite de chuva em que antecipei minha volta de uma viagem de negócios. Uma viagem a Nova York. Cheguei de mansinho na garagem, na casa. Meus filhos não estavam no quarto deles, deviam estar dormindo na vovó. Eu tinha presentes pra eles, brinquedos eletrônicos que eles adoravam. Tinha também um presente pra minha mulher: maquiagem e outras bugigangas que ela sempre encomendava. Fui até o meu quarto, embrulho embaixo do braço, e encontrei os dois dormindo de colherinha. Ou de conchinha, sabe como é? Deviam estar exaustos, não escutaram os ruídos que eu devo ter feito quando abri o armário, peguei a caixa de charutos, desenrolei minha pistola de uso militar. O homem só despertou quando ouviu o estalo da arma sendo engatilhada. Mal abriu os olhos e se virou para mim. Um único tiro, que pegou no osso do nariz. Minha mulher acordou com o disparo, claro, mas ficou em estado de choque tive de esperar calmamente três horas, sentado ao seu lado, até que ela conseguisse falar. Enquanto eu aguardava, fiquei observando a chuva que batia em pingos gordos contra a janela azulada pelas luzes da rua. Já viu uma janela assim?

Eu já gostava da chuva quando combinei com minha mulher o seguinte: um homem invadiu nossa casa; eu cheguei logo depois, consegui pegar minha arma e atirei nele, certo? Ela ficou em dúvida, não sabia se conseguiria conviver sendo cúmplice duma coisa assim. Eu disse que tínhamos uma outra alternativa: eu metia uma bala na cabeça dela também e depois pensava no resto. Ela preferiu a primeira. Mas eu mudei de ideia e atirei nela também, na hora em que ela tentava me pedir desculpas.

Eu já gostava da chuva antes perder meus filhos, de ficar lelé e ir morar na rua. Hoje, não fico mais desassistido por estar molhado. A única diferença é que o pessoal que entrega sopa a mim e aos outros mendigos não aparece. A sopa é resistente, mas acho que eles são de açúcar. Numa noite, cuspi num deles. Era um loirinho todo perfumado. Começou a chorar, com medo de ser contaminado com alguma doença, já que todos nós, ali, tínhamos ricas coleções de doenças. Não tive tempo de explicar aos meus colegas de marquise: levei uns sopapos e fui expulso por mau comportamento. Já tinha acontecido outras vezes. Eu sempre achava outro lugar. Coincidentemente, acontecia sempre em noites de chuva. Será que já parou?

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Gustavo Machado é autor dos romances Sob o céu de agosto, lançado no Brasil, em 2010, e na Alemanha, em 2013, e Marcha de inverno, publicado em 2014. O autor escreve semanalmente neste espaço.

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