Somos todos óbvios

Gustavo Melo Czekster

Editora Dublinense
Coleção Dublinense
10 min readOct 21, 2016

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Aconteceu ontem, mas acontece todo dia. Criar não é só se comprometer com algo, mas também se arriscar. Com orgulho, mencionei uma frase que criei após laboriosa reflexão: “somos simples ecos das palavras de outras pessoas.” Não levou dois minutos para alguém me dizer que lembrava o Ricardo Piglia, “existem frases escritas dentro das frases dos outros”, um dos fundamentos da intertextualidade. Na mesma hora, recordei Paul Valéry, autor da melhor definição para o processo intertextual na literatura, “o leão é feito de carneiros assimilados”. No breve espaço de dois minutos e meio, a frase que imaginava tão criativa desapareceu no fosso das ideias comuns, humilhada pelas gigantes que lhe anteciparam.

Não creio que ainda exista algo original no mundo. Algo que não tenha sido tentado, dito ou sonhado. Percebo muitas pessoas lutando para serem originais. Impossível que alguém não tenha pensado o que imaginamos hoje. Afinal, respiramos o mesmo oxigênio que, no seu ciclo infinito de oxigênio e gás carbônico e oxigênio, foi igualmente respirado por outras pessoas, por uma árvore, por animais e até por galinhas. Somos todos óbvios.

Chesterton falou sobre isso, mas sobre qual assunto o escritor inglês não se debruçou com a sua ironia? Certa vez me perguntaram o que faria se ganhasse na Megasena acumulada, e respondi que compraria uma casa isolada para passar o resto da vida relendo Chesterton, Cícero e o padre Antônio Vieira. Quanto mais velho fico, mais me impressiono com a vivacidade dos seus argumentos, e é um dos poucos escritores que leio rindo e aprendendo.

Foi Gilbert Keith Chesterton quem falou sobre as pessoas desconhecidas que, na aurora das coisas, tiveram ideias criativas, e, mesmo assim, não saberemos nunca quem foram:

“E entre aqueles benfeitores imaginários de todas as épocas, pareceu-me ver uma classe especialmente proeminente. Refiro-me às pessoas que, nos turvos primórdios dos tempos, uniram uma coisa a outra de modo artificial, mas permanente. Que sacerdote primitivo, por exemplo, casou pão e queijo? Quem foi o sábio visionário (de tempos posteriores) que, após esquadrinhar todas as florestas, e contar todas as frutas da terra, descobriu que amêndoas e passas procuravam umas pelas outras desde o começo do mundo? Quem, sobretudo, descobriu uma coisa tal como o feliz casamento entre música e literatura? Os homens do passado menos conhecidos são certamente os que fizeram essas combinações. E os homens do presente mais conhecidos são seguramente aqueles que estão retalhando tais combinações.”

Algumas semanas atrás, citei essa frase de Chesterton, sobre os homens do presente estarem retalhando o bom senso, quando me referi à esdrúxula combinação de salada de maçã, cenoura e repolho que me apresentaram em um restaurante. No entanto, a sabedoria de Chesterton vale também para outras relevantes questões que suscitei em mesas de bar, como a perene dúvida sobre quem combinou queijo e goiabada e, mais importante ainda, se tal combinação surgiu antes ou depois de Shakespeare escrever “Romeu e Julieta”, servindo de inspiração involuntária ou de homenagem duvidosa aos amantes de Verona. As pessoas verdadeiramente originais não possuem o seu nome escrito nos livros de História.

Toda a experiência humana é uma tentativa patética de escapar da obviedade. Em matéria de produção artística, a busca pela originalidade e a descoberta de não passar de um pastiche de segunda categoria de algo que já foi feito é mais cruel ainda. Os artistas ambicionam a originalidade: o fazer uma música que ninguém nunca escutou, o escrever um livro inesperado, o realizar uma escultura que subverta os padrões de todas as escolas artísticas. Vejo muitas pessoas buscando uma originalidade absoluta que jamais irão encontrar, e debochando daqueles que apresentam versões alteradas de ideias já existentes.

Sempre comparando com outros trabalhos do passado, o crítico se subroga na ideia de que somos todos copiadores de fórmulas anteriormente realizadas, mas o ideal seria ver como a obra se comporta dentro de si mesma, na sua “aparência de verdade” para ficarmos com Aristóteles, no seu “microcosmo estético” para ficarmos com Adorno ou no seu “acontecimento de verdade” para lembramos de Heidegger. A obra de arte se basta por si só e, assim como toda pessoa é única na suas singularidades e é um clichê se comparada aos demais indivíduos, o mesmo acontece com qualquer trabalho a que se pretende dar o estatuto de arte. Quanto mais luta para ser original, mais óbvio parece ser, justificando aquele antigo ditado das nossas avós: “se quiseres aparecer, coloca uma melancia na orelha”.

A melhor versão para a nossa impossibilidade de ser original foi acidentalmente proferida por T. S. Eliot. Ao analisar os trabalhos de três críticos, Strachey, Murray e Lewis, sobre as obras de Shakespeare, o poeta e crítico americano diz que as suas análises deixaram de ser sobre Shakespeare e passaram a ser sobre o quanto de Strachey, Murray e Lewis poderia ser encontrado dentro da obra de Shakespeare. Não era mais o bardo inglês, mas uma versão dele produzida pelo olhar dos seus críticos.

T. S. Eliot segue a ideia, afirmando que mesmo ele quando comenta Shakespeare, não o faz de acordo com a obra, mas seguindo seus pensamentos. Toda a originalidade do outro é ditada pelo o que nós achamos inusitado em relação à forma com que vemos o mundo. A pessoa que mistura queijo e goiabada pode ser original para quem nunca fez esta combinação, pode ser clichê para quem está acostumada a realizá-la e, no caso de quem se depara com junções absurdas entre doces e salgados no mesmo prato como eu, é um ser humano herético.

A originalidade é uma questão de ângulo de quem enxerga, não de quem produz. A conclusão final de T. S. Eliot, um pouco espantado, é que nem mesmo Shakespeare era original para si mesmo, pois, além de copiar outras obras, ele estava contaminado com as próprias experiências para saber se a sua obra era original ou uma cópia malfeita de outros trabalhos. Uma vez produzido algo, o próprio artista não mais se reconhece como criador incontestável e único do que realizou. Nem ele próprio serve de parâmetro de originalidade para si. O artista inovador não almeja tal condição, ela surge da sua obra ao natural.

O problema é quando imaginamos uma originalidade que não existe na vida real. Os mecanismos criativos operam por estranhos caminhos, e não é espantoso que uma pessoa no outro lado do mundo esteja pensando o mesmo que nós. Recordo a história de uma amiga que, na reta final da apresentação do seu doutorado nas ciências exatas, descobriu que um pesquisador na Rússia estava fazendo pesquisa muito similar. Em contato com essa pessoa que poderia colocar em risco todo o trabalho que realizara nos últimos 4 anos, a minha amiga descobriu que o trabalho não era idêntico, mas similar, e existe uma diferença gritante entre estes dois conceitos.

Passei por situação muito parecida no início do mês. Quem escreve, sabe o quão chato é estar produzindo uma história e alguém comentar que existe uma narrativa idêntica. No meu caso, queria escrever sobre um escritor que cria um personagem tão perfeito que se recusa a matá-lo, mesmo que tal morte fosse essencial para a trama. Pretendia, assim, criar uma inquietação narrativa sobre o próprio conceito de estar vivo: existem pessoas que precisam morrer para que a nossa história prossiga. A ideia surgiu de uma reflexão que fiz ao escutar depoimentos lacrimosos de futebolistas no Esporte Espetacular da Rede Globo, mas tal fato não é importante.

Quando estava no meio da minha escritura e sem saber como terminá-la, alguém me comentou de um conto de Arthur Schnitzler, escritor austríaco, no qual o autor se apaixona tão violentamente pela sua personagem que, ao invés de matá-la, prefere matar-se no mundo real. Procurei o conto, que lera muitos anos atrás, e estava no livro “Contos de Amor e de Morte”. Para minha angústia, a história era perfeita, muito melhor do que eu imaginara. Em “Meu amigo Ypsilon”, o autor não só se apaixona pela sua criação como passa a ver todas as mulheres reais em comparação à fictícia. Ele tem um mal de Stendhal às avessas: ao invés da Beleza exterior enlouquecê-lo, é a própria criação urdida em noites a fio que o assombra e o devasta.

Arthur Schnitzler

Com essa enorme sombra literária a se projetar sobre a minha incipiente criação, acabei desistindo da narrativa. Menos mal que não sou o primeiro com quem Schnitzler apronta uma dessas. O autor austríaco recebeu elogios (ou seriam reclamações?) de Sigmund Freud, por estar fazendo naturalmente na literatura aquilo que o pai da psicanálise levava um bom tempo para escrever após uma série de reflexões e de consultas. Freud ficou tão encantado — eu diria indignado — que mandou uma carta para Arthur Schnitzler em 1922, chamando-o de seu duplo:

“Sempre me atormentei com a pergunta sobre a razão por que em todos esses anos nunca procurei conhecê-lo nem conversar com o senhor (ignorando é claro, a possibilidade de que a minha tentativa não fosse bem recebida pelo senhor). A resposta contém a confissão que me parece íntima demais. Acho que evitei o senhor por causa de uma espécie de relutância em conhecer o meu sósia. Não que eu me incline facilmente a identificar-me com outrem, ou que pretenda fazer pouco da diferença de talento que me separa do senhor, mas todas as vezes em que me absorvo profundamente nas suas belas criações pareço sempre encontrar sob uma superfície poética os mesmos pressupostos, interesses e conclusões que alimento. (…) De modo que criei a impressão de que o senhor sabe, pela intuição — ou, antes, em virtude de minuciosa auto-observação — , tudo o que eu descobri mediante laborioso trabalho em outras pessoas.”

Arthur Schnitzler tinha esse péssimo hábito de estragar as ideias alheias, mas é bom existir em um mundo no qual já se faz presente a obra que sonhamos. Não tenho problemas em ser o autor ou o leitor de uma história que prezo e, em algumas circunstâncias, até prefiro ler algo a ter que escrever isso, dá muito trabalho e nem é tão compensador (Manguel fala o mesmo sobre as obras que imploramos em silêncio para que outros façam ao invés de nós mesmos, por falta de tempo, de força de vontade ou de habilidade).

No entanto, por mais óbvios que sejamos, existe algo no olho do artista que permite a ele ver a realidade de uma forma sempre inédita, ainda que existam obras similares (mas não idênticas). Em 1946, realizaram um concurso internacional de pintura em que os artistas convidados deveriam representar “A tentação de Santo Antão”, imagem que já tinha sido objeto de muitas interpretações desde a Renascença, entre elas a de Hieronymus Bosch. O próprio Gustave Flaubert tratou do assunto, mas pelo viés literário.

Não foi um concurso qualquer. Os juízes eram Marcel Duchamp, Sidney Janis e Alfred Barr. Entre os pintores concorrentes, estavam Paul Delvaux, Dorothea Tanning, Max Ernst e Salvador Dalí. Cada um apresentou a sua versão de “A tentação de Santo Antão”, mas, mesmo com a vitória de Max Ernst, as obras dos outros competidores acabaram se destacando. Entre elas, o quadro de Salvador Dalí, que possuía um conjunto de imagens díspares formando um típico desfile surrealista, incluindo elefantes equilibrando-se em pernas de pau.

Muitas análises foram feitas sobre tal pintura, mas o mais interessante é uma foto mostrando o dia em que Gala, a esposa de Dalí, está posando para o quadro. Na pintura, o corpo feminino aparece cortado em dois momentos: em um, a mulher se revela inteira, mas cobrindo os seios; em outro, seu rosto não aparece, somente os seios e o púbis. O próprio pintor admitiu que, nas imagens, estava homenageando Bernini, e não retratando a sua modelo: então, por qual motivo Gala posou? É interessante observar que, no contexto de “A tentação de Santo Antão”, de Dalí, o que menos aparece é a mulher despida, apesar de, na foto, ela ocupar posição central. O pintor espanhol estava diante de Gala com o intuito de representá-la, mas entre a realidade, aquilo que o seu olho detectou e a imagem decodificada no papel, muitas sensações, ideias e experiências acabaram sendo transmitidas.

Por maior que seja o desespero de parecermos originais em um mundo de comportamentos massificados, o exemplo de “A tentação de Santo Antão” conforme concebido por Salvador Dalí mostra que a originalidade não está no real, mas no que gostaríamos que ele fosse. Gala foi só um pretexto para Dalí realizar a sua obra, ocupando posição secundária. Contudo, quando se sabe que a intenção do pintor era fazer uma versão sensual do tema tantas vezes explorado por outros artistas, passa-se a ver a modelo despida no atelier não como finalidade, mas como meio de lembrar a sensualidade, que se encontra espalhada por todas as curvas e ângulos quase femininos do quadro.

Quando vejo pessoas dizendo que algo atual já foi feito melhor no passado ou jactando-se do próprio ineditismo, penso que deveríamos fazer o movimento contrário e abraçar de vez a ideia de que nunca seremos originais. Aprender com os modelos prévios, tentar recombiná-los, destacar suas características mais inesperadas, esconder o óbvio, brincar com os conceitos. O mais importante é nunca perdermos a nossa capacidade singular de ver o mundo e contá-lo do jeito que sentimos, não importando quem veio antes, não dando atenção para quem exige criatividade e originalidade o tempo todo. Se é bom ser inovador, melhor ainda é saber brincar com o convencional. Também existe alegria em ser óbvio.

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. É advogado e mestre em literatura comparada pela UFRGS. Lançou pela Dublinense o livro de contos O homem despedaçado.

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